Ou: porque a crítica ao academicismo de negros e negras precisa ser olhada com cuidado.
Por Tulio Custódio Do Medium
Como alguém que estudou academicamente intelectuais negros, acredito na dificuldade que há, para negros, de se colocarem no debate científico e acadêmico como protagonistas e legítimos no discurso e produção.
Nesse sentido, tem algo a mais: valorizar a produção teórica e ideológica de negros, como Abdias do Nascimento, Carolina de Jesus, Guerreiro Ramos, entre outros, passa não só por reconhecer a reflexão e contribuição destes como intelectuais, bem como entender que não é com título ou lugar na academia — mesmo que alguns del@s tenham logrado, com dificuldade, essa posição — que podemos “legimitar” quem eles foram e a importância de seu legado.
Aliás, uma das coisas mais valorosas que aprendi estudando intelectuais negros é: não é analisando apenas cátedras ou títulos que se dá valor ao pensamento produzido ou se dá espaço e legitimidade ao conhecimento. Ponto.
Não obstante, tenho percebido um movimento frequente em debates e discussões públicas — que, desde o começo já recorto, é o lugar no qual estou propondo essa reflexão — acerca de uma crítica ferrenha do chamado “academicismo” de vozes ou militantes negr@s. Ou seja, a crítica de que muito dos temas, pautas e debates desses se finalizariam na máxima “vá ler tal referência!”, “falta leitura“, entre outros. No limite, que essas mesmas vozes academicizadas não valorizariam o lugar do não-acadêmico, da reflexão proveniente da vivência, da experiência de vida. E, enfim, a partir disso,”a treta está armada”.
Primeiro: eu particularmente acho sim que falta leitura. De todo mundo. Minha, sua, de todo mundo. Existe um legado imenso de reflexão, conhecimento e teoria produzidos, e nós, como humanos, não damos conta de tudo. Portanto, “falta de leitura” sempre será um argumento legítimo. Porém impossível de se esgotar em si, porque a todos e todas faltará sempre (SEMPRE) mais leitura. Logo, não é esse o meu ponto.
Meu ponto é que precisamos ter certo cuidado com a força política que essa crítica pode adquirir ou a quais perspectivas políticas ela pode se misturar. O primeiro argumento é, e sabemos todos sobre, que existiu um extremo esforço por parte da militância negra em toda história recente (pré e pós período da abolição da escravatura) para que o negro tivesse condições de estudar e se formar da dita academia — na institucionalização formal da educação, que, entre outras coisas, abria portas de ascensão e pertença social aos que logravam tal possibilidade. Mais do que acesso, a possibilidade de assumir o lugar até então legitimado de produção teórica e científica, também seria uma das consequências espetaculares de termos cada vez mais negros e negras com acesso a universidade, e às cadeiras de produção científica. Podemos nós falarmos de nós mesmo, por nós mesmos. Legal.
Volto ao ponto do início: títulos não são garantia ou legitimidade única de produção de conhecimento importante, de impacto e validade para transformação. Trocar isso — dizer que agora precisa de diploma para falar — seria no mínimo um contrassenso ou pelo menos extremamente contraproducente para diminuir as lacunas abissais de desigualdade de acesso e inclusão. Mas não é “troca”. É “E“.
A militância crítica que não necessariamente teve acesso e possibilidade ou mesmo escolheu (por mais problemático que possa ser o emprego desse verbo aqui, sim existe uma parcela) não seguir as vias acadêmicas para construção e lugar de fala não deve ser de maneira alguma desvalidada frente a um contingente (que cresce, mas ainda é ínfimo) de negros e negras que têm acesso às cadeiras universitárias e conquistam mais espaços diante de sua produção e contribuição científica.
Aliás, mesmo minha perspectiva de visão sendo limitada — afinal, penso muito na produção social e política de reflexão, e não significa isso quando falamos em acesso: carreiras científicas nas áreas de exatas, biológicas também devem ser contempladas nesse acesso — , é realmente bastante interessante ver como esse lugar pode ter efeitos diretos na perspectiva do “somos nós falando de nós mesmos“. É ocupação. E se antes ocupamos as fileiras da ação política, agora, cada vez mais, estamos também ocupando espaços de produção científica e teórica.
Por isso esse texto. A crítica sobre academicismo de militantes é válida. Sim. Afinal, é sim importante que os novos e novas acadêmicos estejam cientes acerca de uma série de expectativas e possibilidades que seu pensamento, em ambiente de debate público, possa ter diante das pessoas que não estão ocupando os mesmos lugares de debate. No entanto, quando estamos falando de academia, é importante elucidar que existe um campo — socio e historicamente constituído — sobre o qual tais críticas públicas podem ter impactos mais extremos.
O anti-academicismo não é algo novo. A priori, e há algum tempo, presente nos setores mais conservadores do debate público nacional (incluindo de mercado), a crítica sobre o conhecimento acadêmico como “etéreo, distante e não-eficiente” não é algo que surgiu agora com as redes sociais. Mais além, essa crítica tem se alastrado cada vez mais entre setores progressistas, de ação e prática sociais, que — por problemas da própria academia e sua (grande) porção elitista — mais têm dificultado o diálogo ou mesmo tentado tornar tais setores base de “seu objeto de estudo”, estéreo, sem fala, sem protagonismo intelectual e legítimo. Entendo — e respeito — esse desconforto quando há discursos do intelectual afastado da realidade (física, cultural, social, e, para inserir o ingrediente crítico, muitas vezes racial) querendo “tomar para si como objeto pleno de entendimento e domínio” o discurso do outro. O outro geralmente o pobre, mulher, negro, marginalizado, etc etc.
Porém, quando a crítica se volta aos mesmos negros e negras — que historicamente estiveram sempre alijados em grande parte da pertença aos quadros de produção intelectual e acadêmica — , uma atenção deve ser despertada. Há um vínculo amplo (mas não difuso) entre o lugar do discurso público do anti-academicismo e as consequências para acesso, realidade e produção científica efetivas. Sim. O acesso às vagas e cadeiras universitárias podem ser ampliados com as políticas de ações afirmativas. Ok, mas é no terreno da política científica que reside a manutenção e ampliação (ou restrição) dos espaços científicos de produção. E isso não é dado: é política. Estou falando de bolsas, estou falando de cadeiras e departamentos. Estou falando de mecanismos concretos para que, diante da possibilidade de acesso, esses mesmos negros e negras que estão na universidade possam permanecer e produzir. Quantos professores e professoras negros, em termos proporcionais, temos nas Universidades públicas? Quantos pesquisadores e pesquisadoras negros estão com bolsa plena para pesquisa e desenvolvimento? Isso é assunto do terreno da política científica.
E para falar de política científica, vale ressaltarmos dois eventos recentes, que demonstra de certo modo como a questão é complicada. Recentemente houve dois golpes ferrenhos contra produção científica e representação política, que atingem diretamente esses pesquisadores negros e negras (aí, desculpem, também em um terreno talvez específico da produção científica em humanidades — mas talvez esteja bem errado, e seria ótimo ver números em outras áreas): (1) redução de verbas para programas de pós graduação feita pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior); e (2) “enguardachuvamento” de alguns ministérios sobre a pasta única chamada de Ministério das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos.
Sobre redução das verbas. A Capes é uma das responsáveis para manter programas de pós graduação no país. Universidades públicas — em especial as federais, mas também, de certo modo as estaduais de excelência — dependem muito dessa verba para custeio de seus programas. E parte desse custeio vai para… bolsas de estudo. Programas de mestrado e doutorado, em grande parte por exigirem dedicação exclusiva, demandam que seus alunos e pesquisadores vinculados tenham bolsa. Pois bem, com o corte de cerca de 75% do orçamento, de uma maneira ampla e irrestrita, houve uma redução efetiva de potenciais bolsas de estudos em diversos departamentos país afora. Agora, vamos ligar os pontos: dedicação exclusiva é necessária para que pesquisadores possam “somente” se dedicar a suas pesquisas e não precisarem trabalhar (fora do programa de pós). O que ocorre na prática é: as bolsas não são fartas e, em cidades grandes como São Paulo e Rio de Janeiro, tornam a “opção” acadêmica quase como “voto de pobreza”- dado os custos de vida nessas cidades [lembrando, claro, que ainda assim essas pessoas estão em situação de privilégio, frente a 90% da população que depende de salário mínimo, abaixo, claro, do valor dessas bolsas… sem mimimi de classe média, claro.]-, o que faz com que muitos estudantes recorram a “bolsas familiares” (vulgo “mesada”ou “ajuda de custo da família”) para lidar com período da pesquisa. Pois é, vocês já imaginam quem pode fazê-lo…
Nesse contexto, e olhando os números da estatística e bom senso histórico, boa parte dos negros e negras que adentram esse ambiente — muitos dos quais sem qualquer possibilidade de contar com “bolsa familiar”, pois a renda deles acaba sendo contada como ajuda de custo para família — dependem bastante das bolsas de estudo. Menos bolsas, menos alunos dependentes de bolsa para fazerem suas pesquisas. Menos bolsas, menos alunos negros e negras de origem social não privilegiada na pós graduação. O filtro elitista da academia, a despeito da política de ações afirmativas para acesso, fecha o tempo para manutenção e permanência dos mesmos.
Em relação a redução de ministérios. Claro que poderia entrar em todo argumento político disso acerca da redução dos custos públicos, cortes etc etc. Porém, foco mais pontualmente no lugar de legimitidade que um ministério.
O fim da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) — com seu enguardachuvamento” como pasta em um ministério marmitão-das-questões-sociais — põe fim a um lugar símbólico e legítimo público, do Estado, de promoção de políticas públicas consequentes às pesquisas e contribuições acadêmicas feitas por negros e negras nos mesmos bancos e lugares assumidos e conquistados na academia.
Põe fim símbolo a um sistema — mesmo que longe de perfeito — da possibilidade de se consolidar um lugar no Estado para que a produção científica possa dar lugar a políticas públicas e, além disso, a possibilidade no Estado de reconhecimento efetivo de iniciativas e lideranças negras (acadêmicas ou não) na produção e no seu legado ao país.
Em suma, para ilustrar, nunca vi uma homenagem a Carolina de Jesus no Ministério das Cidades, acerca de sua reflexão como mulher favelada sobre a marginalidade das habitações. Nunca vi uma homenagem ou reconhecimento a Guerreiro Ramos no Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão sobre sua contribuição a teoria das organizações.
Tão pouco vi uma homenagem do Ministério das Relações Exteriores a intelectuais negros como Abdias do Nascimento e Lélia Gonzalez por sua circulação internacional e atividades fora de importância fora do país. Deveríamos, mas nunca. Mas é em um lugar como SEPPIR que esse tipo de reconhecimento pode se dar — de novo, como ideal, afinal nem sempre isso é factível.
É em um lugar como SEPPIR que políticas públicas voltadas para promoção da igualdade racial, fruto de pesquisas e reflexão teórica teriam lugar para serem efetivadas. SEPPIR, e sua existência, é de um lugar político para efetivação da luta pela igualdade racial e seus âmbitos de representação, reconhecimento e produção (também científica) em torno do tema.
Ok, mas qual a conexão disso com as críticas anti-academicistas? O discurso de deslegitimação do lugar (e demandas) de militantes ou atores políticos e sociais na academia se coaduna com o processo desmantelamento do ensino e pesquisa públicos na arena política e social, também públicas. O discurso anti-academicista, por mais importante que possa ser, quando aplicado ao elo mais fraco da corrente (os negros), acaba convergindo contra a possibilidade de assumirmos mais postos, lugares e contextos que, historicamente, nos foi negado.
De novo: a crítica a acadêmicos é muito importante. Afinal, ainda mais quando falamos de pessoas que fomentam pesquisas e reflexão feitas com dinheiro público, é essencial alinhamento no debate público sobre a produção feita por esses.
Porém, é no desmerecimento do tão somente “isso é acadêmico demais” que reside, publicamente, um processo mais amplo de desmantelamento da pesquisa publicamente financiada, legitimada e com possibilidades efetivas de impactar a vida pública a partir de políticas públicas. Ou seja, esse campo acadêmico também é um campo “instável”” e há lutas específicas dentro dele que precisam ser articuladas para tornar esse espaço mais efetivo para ascensão, protagonismo e representação de negros e negras que nele adentram.
Não: não são as críticas de redes sociais que criam isso. Mas elas, e essa é a parte crítica sobre que debate público estamos fazendo, podem convergir com interesses mais amplos de tirar do Público esse lugar. De destina-lo — como já vemos há algum tempo certas propostas — ao âmbito do privado. Instituições privadas financiando pesquisas.
Parece ok, mas no Brasil não temos um Vice Presidente negro ou uma CEO (presidente) negra na Fundação Ford bancando pesquisa sobre quilombos ou sobre realidade das mulheres negras no mercado de trabalho. Não possuímos fraternidades negras oriundas das instituições de ensino que financiam constantemente pesquisa e formação de outros estudantes e pesquisadores negros.
Ou tão pouco possuímos associações de empresários negros (com muita grana) com fundações e institutos financiando pesquisas privadas para promoção da igualdade racial e como reduzir a desigualdade econômica e social dos negros. Não temos. E isso não parece estar no horizonte do mercado — mesmo com todo o papo de responsabilidade social etc -, dado que é nessa esfera que o discurso da meritocracia e de privilégios (de classe, raça, gênero) encontram seus maiores (não únicos, vale ressaltar) defensores.
A crítica sobre excessos do academicismo devem ser feitas, assim como os intelectuais negros e negras da academia devem participar mais e mais dos debates públicos. Ou mesmo empreender nessa esfera [escreverei mais sobre em um próxima oportunidade]. Não é um “OU”, e sim um “E”: precisamos de ativistas, militantes e vozes na academia E fora dela. Precisamos de olhares críticos analisando as práticas e dinâmicas de reprodução das desigualdades dentre E fora da academia. Precisamos ocupar tudo. É sempre E. Não OU. Nem “não”.
O sonho moderno, a meu ver, de inclusão plena é recheado de Es: negros na política, no mercado, na academia, na rua, no shopping, na capa de Forbes. Protagonizado. E, e não OU. Nós, negros e negras, não podemos, ainda, nos dar a esse luxo, nem cair nessas amarras. Ainda.