Preso durante as manifestações de 2013 e condenado por porte de explosivos (uma garrafa de água sanitária e outra de Pinho Sol), o catador Rafael Braga Vieira continuará preso após julgamento em segunda instância, embora sua pena tenha sido reduzida de cinco anos e dez meses de reclusão para quatro anos e oito meses. Desde a noite de ontem (25) foi realizada uma vigília pela sua libertação em frente ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
Favela 247 – Na noite de ontem (25), começou uma vigília em frente ao Tribunal de Justiça do rio de Janeiro, no Centro, em favor da libertação de Rafael Braga Vieira, jovem, negro e pobre, e único condenado pelos protestos do ano passado. Rafael é catador de lixo, e foi preso por portar uma garrafa de água sanitária e outra de detergente Pinho Sol. Embora especialistas digam que seja impossível fabricar um explosivo com essas substâncias, e de Rafael dizer nem saber os motivos do protesto em que foi preso, foi condenado por posse de explosivos pela justiça, e sem direito a responder em liberdade, já que já tinha duas passagens anteriores por furto em sua ficha criminal, como informamos aqui no Favela 247.
Após oito meses de prisão, e apesar dos esforços dos manifestantes e de advogados do Instituto de Defensores dos Direitos Humanos (DDH), o julgamento em segunda instância manteve Rafael preso, embora sua pena tenha sido reduzida de cinco anos e dez meses de reclusão para quatro anos e oito meses.
Leia abaixo reportagem de Matias Maxx para a Vice, e entrevista com o advogado do DDH Carlos Eduardo Martins Silva, que fez a sustentação oral da defesa de Rafael.
Por Matias Maxx, para a Vice
O RAFAEL BRAGA VIEIRA VAI CONTINUAR PRESO
Há pouco mais de um ano, a sociedade, a mídia, o governo e, sobretudo, as suas forças de repressão foram surpreendidas pela maior onda de protestos no Brasil em décadas, provavelmente a maior de sua história. No Rio de Janeiro, o ápice das chamadas Jornadas de Junho deu-se no dia 20, quando cerca de um milhão de pessoas com pedras e paus colocou o Caveirão pra correr na Av. Presidente Vargas. A polícia não ia deixar barato e alguém teria de pagar o pato, então, naquela mesma noite, a uma distância razoável dali, PMs prenderam o morador de rua e garimpeiro urbano Rafael Braga Vieira por portar uma garrafa de água sanitária e outra de detergente Pinho Sol. A alegação: as duas seriam coquetéis-molotov. Rafael tinha passagens na polícia por furto, o que não agradou a opinião pública ou os magistrados, e ele foi julgado em tempo recorde e condenado a cinco anos de reclusão.
Oito meses depois da prisão, entrevistei Rafael no presídio de segurança máxima Bangu V. Lá conheci um jovem simples, sem a menor ideia em que estava envolvido, e com a triste conformação de quem já nasceu condenado. De maio pra cá ativistas autônomos, o Instituto de Defensores dos Direitos Humanos (DDH) e alguns outros grupos formaram o “Comitê pela libertação de Rafael, Caio e Fábio”, comprando a briga das até então únicas pessoas presas no levante de protestos do Rio de Janeiro. Com a crescente onda de prisões às vésperas da final da Copa do Mundo, seu rosto começou a aparecer em banners exibidos em passeatas e em memes espalhados pelos timelines.
O julgamento do recurso na segunda instância foi marcado para as 13h do dia 26 de agosto; no dia anterior à sessão, os ativistas deram início a uma vígilia a partir das 17h. Cerca de trinta pessoas atenderam ao evento, que contou com distribuição de sopão, um ato ecumênico, exibição de curtas, DJs, rap, poesia e uma estranha performance em que o artista Glaucus Noia se cobriu de lama. Na manhã seguinte, foi realizada uma pequena coletiva com uma das advogadas do IDDH que acompanha o caso: mais do que perguntas, os participantes exibiam suas histórias próprias, de injustiças testemunhadas. Num outro momento, um cara me contou que estava na lista das pessoas presas às vésperas da Copa, mas como seu nome saiu impresso errado, a polícia foi a 12 endereços diferentes, recolhendo câmeras e computadores de outras pessoas, e nunca achou o cara. Em várias conversas como esta ficou bem claro que a caça às bruxas promovida às vésperas da Copa não tinha fundamento nenhum, e que a tentativa de transformar coletivos tão diferentes entre si em organização criminosa era absurda, infundada e desesperada. Todos estavam muito esperançosos que Rafael ganharia sua liberdade, uma vez que, além de ser muito claro que ele não participava dos protestos, o laudo da perícia técnica realizada nas garrafas apontava apenas uma quantidade ínfima de material inflamável num dos recipientes.
A PM e sua Tropa de Choque acompanharam o ato à distância desde sua véspera. À medida que o horário do julgamento se acercava, o patrulhamento era reforçado não só em frente à entrada principal do Tribunal de Justiça do Rio como também na entrada da 3ª Câmara Criminal, onde foi realizado o julgamento. Por volta do meio-dia começou uma faxina simbólica: uns vinte litros de agua sanitária e Pinho Sol foram derramadas em frente ao Fórum. Após fazer as fotos bacanas que ilustram esta matéria, me dirigi à 3ª Câmara para tentar acompanhar o julgamento, mas fui barrado:
– Estou indo lá na terceira câmara.
– No julgamento do black bloc? Não, só advogado tá podendo acompanhar…
Enquanto isso, ativistas tentavam entregar um abaixo-assinado a Leila Mariano, a presidente do Fórum, pedindo a liberdade de Rafael. Foram recebidos por uma assessora de imprensa, que já alertou que aquilo não ia fazer diferença nem influenciar a decisão do colegiado. Eu já estava indo à sala da assessoria de imprensa tentar desenrolar minha entrada; encontrando a galera, tive a oportunidade de ser o único a registrar a entrega do documento sob pedidos de que não identificasse a assessora. De volta à entrada principal do fórum, pude perceber que o número de ativistas tinha aumentado, assim como o aparato policial, que fazia uma linha em frente à entrada do edifício. Não demorou para sair a sentença: a condenação de Rafael foi mantida, tendo apenas sendo diminuída em quatro meses.
Em meio a lagrimas e coros indignados que bradavam “racistas, racistas”, conversei com Carlos Eduardo Cunha Martins Silva, o advogado do IDDH que fez a sustentação oral do julgamento:
VICE: Como foi a audiência? Foi bem rápida, né?
Carlos Eduardo Martins Silva: É, no julgamento lamentavelmente os termos prejudiciais da sentença foram mantidos em relação ao Rafael. Ele continua condenado em regime fechado e apenas a pena dele foi diminuída em alguns meses, o que concretamente não melhora a situação dele. A nossa ideia é que a gente recorra a Brasília, porque acreditamos que, da forma que foi colocado e julgado, o caso não apreciou todas as circunstâncias envolvidas e que lamentavelmente levaram a essa condenação. A gente espera que Brasília possa, sob certos aspectos, reformar o que o Tribunal de Justiça consolidou, que é a condenação de Rafael.
E havia tido uma perícia que comprovou que não era material explosivo. Como foi essa história?
A perícia comprovou que uma das garrafas não era material [explosivo], e a outra que continha álcool disseram que tinha ínfima possibilidade e mínima aptidão para funcionar. Só o que questionamos era que, se não fosse reconhecida a falta de propriedade do objeto para funcionar como molotov, que era ao menos em segunda instância e extraordinariamente, para que a gente pudesse ter uma diligência para dissipar a incongruência do laudo. Ou seja, “mínima” ou “ínfima” são vocábulos que induzem a quase zero. Então, em realidade, ele não deveria ser criminalizado pela questão desse suposto artefato que continha álcool. Se o juízo reparador tivesse alguma dúvida para condenar, deveria ordenar um novo exame para dissipar essa contradição.
Mas a prova já não foi destruída?
Bom, entramos com um embargo e quero crer que não foi destruída essa prova. Entramos com um embargo em primeira instância para a manutenção dessa prova e não houve notícia dos autos, até o presente momento, da destruição, mas quero crer que não tenha sido feito.
Vimos uma audiência fechada para o público, com o Choque na porta. Isso é normal?
Bom, isso foi justificado pelos julgadores como uma medida para garantir a segurança e a estabilidade do julgamento. Essa foi a justificativa formal deles.
Mas, por exemplo, em outros casos relativos aos protestos, como no caso do cinegrafista Santiago, foi uma audiência aberta…
É, o caso do Santiago foi júri popular e existe uma outra dinâmica. De qualquer forma, acredito que as relações do Judiciário devem sempre se pautar pelo princípio da publicidade nos julgamentos. É isso que guia o Poder Judiciário e o que a Constituição nos garante. Saibamos o que o Poder Judiciário faz e como ele trata os cidadãos do Brasil.
Você está acompanhando outros casos de prisões nos protestos?
Vários casos. Todos os casos que passam pelo Instituto de Defensores dos Direitos Humanos, nós acompanhamos.
Você acha que tem uma diferença de como este caso está sendo tratado em relação aos outros casos?
Acredito que não. Acredito que muito dos tratamentos aqui presenciados têm a ver com a necessidade de repressão severa aos movimentos advindos das jornadas de junho. Acho que, nesta repressão e nesta resposta do judiciário à sociedade, às vezes acontecem nas entrelinhas alguns componentes políticos. Enfim, acho que é o mesmo tratamento que outros casos mereceram na oportunidade.
Fonte: Brasil 247