A pseudobrincadeira dos alunos da Unesp não tinha como objetivo integrar as moças à sociedade dos agressores. Ao contrário: manifestou ultraje, brutalidade, estupidez
A agressão de um grupo de alunos da Unesp contra colegas suas que veio à tona esta semana merece, obviamente, o mais enfático repúdio. Foi um ato covarde, que suscita solidariedade para com as moças assim humilhadas. Mas não basta experimentar tais sentimentos: é preciso refletir sobre o fato, que faz parte da série de violências entre jovens a que se deu o nome de bullying (de bully, valentão); por sua vez, esse tipo de assédio se inscreve num contexto mais amplo, ligado em última análise às formas sociais de exercício da agressividade.
Recapitulemos: com a conivência dos participantes de uma festa, alguns estudantes puseram em prática algo que já vinha sendo trombeteado pelo Orkut, em particular na comunidade Rodeio de Gorda. Segundo os jornais, tratava-se de agarrar uma jovem gorda e prendê-la nos braços ou mesmo montar nas costas dela, como se faz com os animais num rodeio. A coisa tinha o sentido de uma competição: o tempo seria cronometrado, e prêmios atribuídos aos “bravos toureiros” que conseguissem se manter no dorso da “gorda bandida” por mais segundos.
De onde pode ter vindo semelhante ideia? Duas pistas: os termos rodeio e gorda. O primeiro é uma variante da tauromaquia, que remonta à civilização cretense; outras modalidades do mesmo esporte são as touradas espanholas e as demonstrações dos cowboys no Velho Oeste. Em todas elas, porém, há algo conspicuamente ausente em relação ao que fizeram os alunos da Unesp: o equilíbrio entre os contendores (suposto ou real, não importa aqui), cada qual entrando no embate com suas características próprias: força, chifres ou cascos do lado do animal, astúcia e perícia do lado do homem.
Era esse equilíbrio que, por cruenta que fosse a luta, fazia com que fosse considerada um combate leal, no qual era posta à prova a coragem do toureiro ou do peão. A evolução dos costumes nos fez mudar de ideia e atribuir mais valor à compaixão para com o animal que à valentia daquele que o desafiava. O motivo disso é o mesmo que nos indigna no tal “rodeio” – a convicção de que não há equilíbrio, mas abuso da vantagem proporcionada pela superioridade de um dos contendores. No caso dos bichos, vigora a superioridade da inteligência humana, que nos fez criar técnicas de domesticação, inventar métodos de pesquisa capazes de gerar conhecimento a partir de experiências com cobaias, etc.
Estamos no cerne do problema: o que era visto como apresentando aos dois lados chances semelhantes de vitória passa a ser percebido como uso ilegítimo de uma vantagem sobre o mais fraco. Tal fraqueza pode ser de vários tipos: física, no caso de forças desiguais; de número, no caso de pessoas pertencentes a uma minoria; narcísica, se a vítima for portadora de alguma característica considerada negativa. Esta última classe abrange uma infinidade de situações, por um motivo que a psicanálise esclarece bem: a tendência do ser humano a se diferenciar do outro, e a ver nessa diferença um elemento que nos torna melhores que os portadores dela.
A transformação da diferença em marca de inferioridade provém da necessidade de manter estáveis os parâmetros da nossa identidade, o que envolve a adesão às razões e aos valores que os tornam desejáveis. Daí nasce a convicção de que é melhor ser como somos, e que os que não são assim são de algum modo piores – convicção que, como se sabe, está na origem do preconceito.
Ora, a estabilidade e a coesão das identificações estão sujeitas a oscilações, que desencadeiam angústias frequentemente intensas. Para as dominar, colocamos em ação mecanismos de defesa, entre os quais se conta a projeção sobre o outro daquilo que rejeitamos em nós mesmos. Esse movimento torna possível a canalização da agressividade, porque cria a figura ambígua de um adversário simultaneamente desprezado, odiado e temido, do qual esperamos atos hostis. Para impedir que nos atinjam, o recurso mais eficaz é nos anteciparmos a eles, de onde a agressão a seus possíveis perpetradores. O bullying é um exemplo desse tipo de situação.
Progresso. Para entendermos o Rodeio de Gorda outro aspecto deve ser levado em conta: a crescente limitação dos meios socialmente aceitos para o exercício da agressividade. Já não se podem fazer coisas que nossos avós consideravam inócuas (por exemplo a chacota em relação a deficiências corporais, formas de humor grosseiras ou obscenas), úteis (castigo físico em crianças, humilhação dos alunos “burros”) ou necessárias (recusa de direitos a minorias sexuais em nome da moral). Não há como negar que isso constitui um progresso, talvez o mais importante na civilização desde a conquista das liberdades individuais e políticas que resultou do Iluminismo e das revoluções inglesa, americana e francesa. Mas o custo psíquico desse avanço é bem maior do que poderíamos supor – e esse fato exige consideração.
Nas sociedades humanas, o controle da violência se dá por mecanismos de vários tipos: medo do castigo em caso de transgressão, interiorização das normas, instituição de práticas que permitem o escoamento dela de modo relativamente inofensivo (por exemplo, o esporte). Um desses mecanismos é o ritual de passagem, pelo qual o candidato se submete a situações que podem envolver, além do esforço e da persistência indispensáveis para comprovar que é digno de entrar no grupo a que deseja pertencer, dor física ou moral. É o caso das demonstrações de coragem ou resistência exigidas em certas tribos para que o jovem ascenda à categoria de guerreiro, ou do trote aos calouros, atualmente muito questionado. A diferença entre esses ritos e o bullying salta aos olhos: naqueles, o indivíduo submete-se de bom grado às provações e, uma vez ultrapassadas estas, é admitido no círculo dos que as superaram. Isso faz com que a violência eventualmente envolvida no processo não seja percebida como arbitrária, pois é condição para a pessoa obter o que deseja.
É possível que o enfraquecimento do prestígio atribuído aos rituais de passagem, e a consequente diminuição da possibilidade de exercer e sofrer violência de maneira regrada, esteja na raiz de algumas das maneiras pelas quais ela irrompe na sociedade contemporânea. Sem idealizar o passado – houve barbárie suficiente na História para que não caiamos nesse engodo -, o fato é que a agressividade inerente ao ser humano precisa ser exteriorizada, e, na ausência de formas reconhecidas como legítimas para que isso aconteça, ela tende a emergir sob a forma de comportamentos impulsivos.
Isso não exclui a existência de formas “legais” para abusos (pense-se no nazismo, na segregação racial, nas ditaduras de todos os tipos), mas também é provável que a pobreza de meios capazes de neutralizar razoavelmente eventuais excessos, e de punir os que os cometem, contribua para que explosões de crueldade se tornem cada vez mais frequentes na sociedade atual.
Voltemos ao ataque dos estudantes às suas colegas. Ele sugere a existência de fantasias ligadas à virilidade (montar ou trepar é o que o macho faz com a fêmea), de medos quanto à imagem corporal e, portanto, quanto à identidade (quem é gordo são elas, não eu), de animalização da mulher (“touro bandido” é o difícil de montar). Claramente, não visava a integrar as jovens à sociedade dos agressores. Ao contrário, manifestou apenas brutalidade, vileza e estupidez.
O fato de os rapazes terem pedido desculpas publicamente e proposto colaborar num futuro evento sobre violência contra mulheres pode sinalizar algum arrependimento, mas não me parece suficiente para uma reparação adequada; o mesmo pode ser dito das consequências administrativas e das indenizações legais que seu ato venha a gerar. Sabe-se que a única medida eficaz contra o bullying é o envolvimento dos possíveis molestadores num programa adequado de conscientização, que inclua igualmente as possíveis vítimas e os possíveis espectadores, cuja omissão significa aprovação tácita do que estão presenciando.
Fica lançada a proposta: que os ditos estudantes criem no Orkut e em outras redes sociais sites para se opor às diversas versões de assédio moral que ofereçam a especialistas, aos alvos delas e ao público canais de discussão sobre essa forma particularmente maligna de ferir nossos semelhantes.
RENATO MEZAN É PSICANALISTA, PROFESSOR TITULAR DA PUC-SP E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE FREUD, PENSADOR DA CULTURA (COMPANHIA DAS LETRAS)
Fonte: Estadão