“Cidadão, não. Desembargador, com contatos. Melhor do que você”

FONTEPor Leonardo Sakamoto, da UOL

Abordado pela guarda civil de Santos, o desembargador Eduardo Siqueira se negou a colocar máscara, obrigatória por decreto, tripudiou o agente de segurança, tentou dar carteirada para não ser multado, ligou para o secretário de Segurança do município para que o gestor colocasse o “analfabeto” do servidor público no seu devido lugar, rasgou a multa e jogou no chão. Sim, pediu o combo bizarro completo.

Não é a primeira vez que o magistrado comete a mesma infração. Nunca é.

A pandemia tem gerado um rosário de cenas como essa, protagonizadas por semoventes que acreditam estarem acima dos demais por contarem com mais dígitos em suas contas bancárias ou com um cargo luminoso pago pelo contribuinte.

Como já disse aqui anteriormente, isso é parte do esgoto que já corria, mas Bolsonaro tornou orgulhoso de si. E por conta de um presidente da República que prega que prefeitos e governadores não têm o direito de tolher a “liberdade” das pessoas na pandemia, pessoas como o desembargador sentem-se no direito de relinchar contra quem está garantindo as medidas de saúde pública.

O indefectível “você sabe com quem está falando?” fede mais quando vem de servidores que prometeram defender o bem coletivo.

Sim, o “Estou aqui com um analfabeto” e o “Você sabe ler? Então leia bem com quem o senhor está se metendo”, de Eduardo Siqueira ligando para o secretário de segurança do município para mostrar que faz e arrebenta, é pior do que o “cidadão, não, engenheiro civil, formado, melhor do que você”, do casal que destratou um fiscal da vigilância sanitária, na Barra da Tijuca, no Rio.

O guarda civil não era analfabeto, mas isso foi usado como xingamento pelo desembargador.

Ser analfabeto diz mais sobre a incompetência de uma sociedade e de um Estado em garantir condições dignas do que da falta de mérito de uma pessoa. Ao usar o termo como xingamento, portanto, imagina-se como o magistrado deve lidar com casos que chegam às suas mãos envolvendo iletrados em disputa com doutores. Com uma lacuna na formação representando uma falha de caráter.

Burrice, como já disse aqui, não é a falta de um conhecimento específico ou separar sujeito e predicado por vírgula. Muita gente não entende isso e desvaloriza os outros por não compartilharem dos mesmos padrões de fala, do mesmo conhecimento técnico ou do mesmo universo simbólico.

Burrice é, na verdade, encarar preconceitos violentos como sabedoria. A burrice é incapaz de aceitar o próprio erro, transferindo a culpa ao outro. Burrice, aliás, não pede desculpa. Pois a burrice de um indivíduo acha que é absolvida pela burrice de um outro indivíduo ou do coletivo.

Burrice não aceita a existência de qualquer fato que vá na direção contrária de sua convicção. Diante de denúncias ou críticas baseadas em fatos e leis, brada que isso é falso por não admitir o conteúdo. E a burrice, como manifestação da negação, avança quando há governantes, parlamentares e magistrados que acham possível construir uma sociedade melhor e mais justa jogando na lata do lixo os instrumentos usados para refletirmos sobre seus erros e acertos. O certo é o que eu acho certo, independentemente do resto.

Tanto quanto a pandemia, a burrice violenta viraliza orgulhosa nestes dias. Exemplos como o do desembargador que ganham o debate público deveriam servir para dissuadir quem se sente acima dos outros. Mas, ao que tudo indica, acabam servindo como inspiração.

Em tempo: Ironicamente, Siqueira coordenou a área de Saúde do Tribunal de Justiça de São Paulo.

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