Como estão os Direitos Humanos da população negra? Uma análise dos dados do Censo 2022 (IBGE)

17/12/25
Por Jaqueline Santos

Os Direitos Humanos Universais são a base da dignidade humana, representando aqueles direitos que pertencem a todas as pessoas, sem distinção de raça, gênero, nacionalidade ou qualquer outra condição. Seu fundamento é a igualdade formal de direitos, ou seja, a premissa de que todos são iguais perante a lei e, portanto, merecem o direito à vida, à educação, ao trabalho e à renda, à liberdade e à expressão. Eles são inerentes, inalienáveis e indivisíveis, estabelecendo um patamar mínimo e inegociável de proteção para todos, já que a violação de um direito implica a concretização plena de qualquer outro direito que esteja sendo garantido – por exemplo, uma família sem acesso à emprego e renda não consegue viabilizar segurança alimentar e nutricional, o que impacta a trajetória educacional de suas crianças que estão tendo acesso à educação.

No entanto, a experiência histórica e social demonstrou que a igualdade abstrata e formal não é suficiente para superar desigualdades estruturais. É aí que surgem os Direitos Específicos, voltados a grupos em situação de vulnerabilidade ou desvantagem, como mulheres, crianças, idosos e a população negra e indígena. Eles não visam conceder privilégios, mas sim promover a equidade, tratando os desiguais na medida de suas desigualdades. Seu objetivo é garantir que esses grupos enfrentem as barreiras sociais e culturais que os impedem de usufruir plenamente dos direitos universais.

O não cumprimento dos direitos específicos e o desrespeito aos mecanismos internacionais de combate à discriminação, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965) e da Declaração de Durban (2001), impactam diretamente a população negra. A falha em garantir a igualdade simbólica e material perpetua um ciclo de desvantagem racial. Na prática, isso se manifesta na persistência do racismo e da discriminação que resultam em taxas desproporcionais de pobreza, menor acesso à educação de qualidade, maiores obstáculos no mercado de trabalho e, tragicamente, na violência e na letalidade policial. A ausência de equidade racial significa que o direito universal à vida, à educação e ao trabalho, embora formalmente garantido, é vivido de forma precária e desigual por negras e negros.

Com base nos dados percentuais do Censo Demográfico 2022 do IBGE, a população negra (soma de pretos e pardos) constitui o maior grupo étnico-racial no Brasil, representando 55,51% da população residente (sendo 10,17% pretos e 45,34% pardos). Isso representa uma diferença de 12,05 pontos percentuais a mais que a população branca, que corresponde a 43,46% do total.

Ao analisarmos a distribuição por sexo, as mulheres negras formam o maior contingente populacional do país, totalizando 28,08% (23,09% de pardas e 4,99% de pretas). Elas são seguidas pelos homens negros, com 27,44% (22,26% de pardos e 5,18% de pretos), mulheres brancas (22,88%) e homens brancos (20,58%).

Tabela 1 – Elaboração própria, de Geledés Instituto da Mulher Negra

Pela primeira vez na história do país, o Censo Demográfico de 2022 investigou a população quilombola, que apresentamos em separado por não ser definida a partir do critério de cor ou raça, mas sim como povo e população tradicional. Dessa forma, é importante ressaltar que, embora seja majoritariamente negra, a população quilombola pode incluir pessoas de diferentes grupos de cor ou raça.

A pesquisa revelou que há um total de 1.330.186 pessoas que se identificam com essa origem, com uma representação equânime entre os sexos: 50,0% de homens e 50,0% de mulheres. No que se refere à localização, os dados demonstram que apenas 12,6% (ou 167.769 pessoas) vivem em territórios quilombolas oficialmente delimitados, enquanto 87,4% (ou 1.162.417 pessoas) residem fora dessas localidades. Este desequilíbrio pode indicar um cenário de violação do direito à terra e à moradia para esse grupo populacional.

Tabela 2 – Elaboração própria, de Geledés Instituto da Mulher Negra

Contudo, ser a maioria numérica da população negra (55,51%) não se traduz em condições socioeconômicas dignas. Os dados do Censo Demográfico 2022, assim como outras pesquisas sociais, revelam a permanência e o aprofundamento das assimetrias raciais que estruturam a sociedade brasileira. Tais informações explicitam a iniquidade em todas as faixas etárias, demonstrando a impossibilidade de reversão das violações dos direitos humanos da população negra em um cenário que privilegia a igualdade simbólica (formal ou constitucional) em detrimento de ações políticas e econômicas efetivas que sejam capazes de romper com a precarização estrutural e com as desigualdades históricas.

Os dados sobre pessoas de até 5 anos de idade por existência e tipo de registro de nascimento, segundo a cor ou raça, revelam que a taxa de registro de nascimento é altíssima para essa faixa etária no Brasil (99,32%), mas ainda há 77.684 crianças sem o documento – das quais 44.363 são negras (57,1%), 10.461 indígenas (13,4%) e 22.671 são brancas (29,1%). A análise das porcentagens de crianças sem registro de nascimento é o ponto mais crítico, sendo que a população negra (soma de pretos e pardos) apresenta uma taxa de crianças de até 5 anos sem registro de 0,53%, enquanto a população branca registra uma taxa de 0,33%. Isso significa que a taxa de omissão do registro civil às crianças negras é aproximadamente 1,63 vezes maior do que para as crianças brancas. Ao consolidar os dados, a população negra, que totaliza 8.226.097 crianças na amostra, concentra um total de 44.363 crianças sem registro de nascimento. Em contrapartida, a população branca, com 6.919.080 crianças, possui 22.671 crianças sem registro. Dessa forma, a população negra tem 21.692 crianças a mais sem o documento básico se comparada à população branca. O grupo indígena é o mais vulnerável à omissão de registro, com uma taxa 12 vezes maior que a média nacional (0,51%), significativamente superior a todos os outros.

Tabela 3 – Elaboração própria, de Geledés Instituto da Mulher Negra

Ao olharmos para as pessoas com deficiência de dois anos ou mais por cor ou raça, o Censo 2022 revela uma taxa de deficiência geral de 7,26% na população brasileira. A maior prevalência de pessoas com deficiência é observada no grupo de pessoas pretas, atingindo 8,55%, o que está consideravelmente acima da média nacional. Se considerarmos a população negra como a soma dos grupos preto e pardo, a taxa de deficiência é de aproximadamente 7,42%, superior tanto à média nacional quanto à taxa da população branca, que é de 7,07%. Neste sentido, os dados apontam para uma maior incidência de deficiência na população negra, especialmente no grupo preto, e uma incidência menor nos grupos branca, amarela e indígena em comparação com a média do país.

Tabela 4 – Elaboração própria, de Geledés Instituto da Mulher Negra

Ao analisar os dados de educação do Censo de 2022, o indicador de alfabetização é um dos mais reveladores dessas desigualdades. No Brasil, a taxa de alfabetização geral é de 93%, enquanto a de não alfabetização é de 7%. Se considerarmos a taxa de alfabetização de pessoas de 15 anos ou mais, por cor ou raça, tomando a população negra como a soma dos grupos preto e pardo, encontramos profundas disparidades nas taxas de alfabetização e não alfabetização. No grupo das pessoas não alfabetizadas, a população negra não alfabetizada (1,1% de pretos + 3,9% de pardos) soma 5,0% do total do grupo, enquanto a população branca não alfabetizada representa 1,9%. Isso significa que a população negra contribui com 3,1 pontos percentuais a mais para o grupo de não alfabetizados do que a população branca. Considerando que o total de não alfabetizados é de 7,0%, o grupo negro representa aproximadamente 71,4% (5,0/ 7,0) da população não alfabetizada do país.

Em uma perspectiva interseccional, dentre os 7% não alfabetizados, 2,63% são homens negros (37,5% do total), 2,37% de mulheres negras (33,8% do total), 0,92% de homens brancos (13,1% do total) e 0,98% de mulheres brancas (14% do total). Desta forma, a população negra compõe 71,3% das pessoas não alfabetizadas no país.

Tabela 5 – Elaboração própria, de Geledés Instituto da Mulher Negra

Os dados sobre alfabetização da população quilombola revelam outra faceta das desigualdades raciais. Globalmente, a taxa de alfabetização atinge 81,01% das pessoas quilombolas, enquanto 18,99% da população se declara não alfabetizada. É notável a disparidade de gênero na alfabetização geral, onde as mulheres quilombolas demonstram maior acesso, com 82,89% de alfabetização e 17,11% de não alfabetização, em contraste com os homens quilombolas, que apresentam taxas de 79,11% e 20,89%, respectivamente.

Ao analisar a distribuição por localização, a população residente fora de territórios quilombolas detém uma taxa de alfabetização ligeiramente mais alta (81,12% das 892.807 pessoas alfabetizadas) em comparação com a população em territórios quilombolas (80,25% das 122.227 pessoas alfabetizadas) – o que demonstra que o acesso aos direitos têm sido mais difícil para quem se mantém nos territórios tradicionais. Consequentemente, a taxa de não alfabetização é marginalmente maior entre quilombolas vivendo dentro dos territórios quilombolas (19,75%) do que entre aqueles que vivem fora deles (18,88%).

A disparidade de gênero se mantém em ambas as localizações, com as mulheres apresentando consistentemente taxas de alfabetização superiores. O grupo com a maior taxa de alfabetização é o de mulheres fora de territórios quilombolas (83,02%), ao passo que o grupo com o maior desafio de alfabetização são os homens em territórios quilombolas, que registram a menor taxa de alfabetização (78,64%) e a maior taxa de não alfabetização (21,36%).

Tabela 6 – Elaboração própria, de Geledés Instituto da Mulher Negra

A frequência escolar atinge seu pico nas idades de escolarização obrigatória, registrando 86,7% para o grupo de 4 a 5 anos, 98,26% para o grupo de 6 a 14 anos e 85,25% para a faixa de 15 a 17 anos, demonstrando alta universalização nestes níveis. No entanto, as taxas caem drasticamente nas pontas do espectro: apenas 26,46% das crianças de 0 a 3 anos frequentam a escola e, após o pico da juventude, a taxa é de 27,68% para jovens de 18 a 24 anos e despenca para 6,1% para a população de 25 anos ou mais, refletindo o término do ciclo regular e a participação em cursos superiores ou de educação de jovens e adultos.

As desigualdades são notáveis entre os grupos. A população indígena exibe a menor taxa de frequência nos períodos cruciais de escolarização: apenas 66,28% na faixa de 4 a 5 anos, um fosso de mais de 20 pontos percentuais em relação à média total (86,73%). Este grupo também registra a menor taxa para 15 a 17 anos (78,37%) e 18 a 24 anos (27,48%). Em contraste, a população branca mantém as taxas mais altas em quase todas as idades pós-infância, incluindo 6 a 14 anos (98,49%) 15 a 17 anos (86,75%) e 18 a 24 anos (32,4%) . Já os grupos parda e preta (que somados formam a população negra) têm taxas semelhantes entre si, mas consistentemente ligeiramente inferiores às dos brancos nas faixas de 6 a 24 anos, indicando um menor acesso à educação continuada. 

Ao interseccionar os dados, entre 15 a 17 anos as taxas de frequência escolar são maiores para mulheres brancas (87%), mulheres amarelas (86,74%) e homens brancos (86,4%) e mais baixa para mulheres indígenas (76,6%), homens indígenas (80,04%), homens negros (84%) e mulheres negras (84,6%). Quando partidos para o grupo de 18 a 24 anos, as diferenças vão ficando significativamente maiores – 43,22% para mulheres amarelas, 41,93% para homens amarelos, 34,78% para mulheres brancas, 29,9% para homens brancos, 26,5% para mulheres negras e 22,6% para homens negros.

Tabela 7 – Elaboração própria, de Geledés Instituto da Mulher Negra

Em termos de escolaridade, a maior fatia da população (35,84%) se encontra no nível “médio completo e superior incompleto”, enquanto a taxa de conclusão do nível “superior completo” é de apenas 16,75% do total de adultos. As disparidades educacionais por cor ou raça são particularmente evidentes nas extremidades do espectro de instrução. No nível mais alto, “superior completo”, a população branca é predominante, respondendo por 10,45 pontos percentuais do total, o que representa mais de 62% de todos os indivíduos com esse nível de formação. Em forte contraste, a população negra (parda e preta) soma apenas 6,08 pontos percentuais no mesmo nível. Inversamente, no grupo com o mais baixo nível de instrução (“sem instrução e fundamental incompleto”), a população negra constitui a maioria, contribuindo com 19,97 pontos percentuais dos 31,98% totais desse grupo, ou seja, negras e negros são 62,45% do total de pessoas sem instrução.

Por fim, a análise por sexo no nível mais alto de instrução demonstra que as mulheres (9,96% do total) superam os homens (6,79% do total) na conclusão do ensino superior. No entanto, se interseccionarmos os dados, somente as mulheres brancas estão no topo da pirâmide educacional – dentre os 16,75% de pessoas com ensino superior, 6,15% são mulheres brancas, 4,3% homens brancos, 3,7% mulheres negras e 2,4% homens negros. Na base da pirâmide educacional, ou seja, dentre os 31,98% das pessoas sem instrução e fundamental incompleto, 10,4% são homens negros,  9,57% mulheres negras, 6,06% de mulheres brancas e 5,64% homens brancos.

Tabela 8 – Elaboração própria, de Geledés Instituto da Mulher Negra

Os dados sobre o número médio de anos de estudo da população com 11 anos ou mais de idade apontam para uma média geral de 9,5 anos. As disparidades raciais são significativas, com a população amarela apresentando a maior média, com 12,0 anos de estudo, seguida pela população branca, com 10,3 anos. Em contraste, a população negra (parda e preta) e a população indígena registram os menores níveis de escolaridade. Os grupos parda e preta compartilham a média de 8,9 anos, ficando 1,4 anos abaixo da média da população branca. 

A pirâmide dos anos de estudo começa com homens amarelos no topo (12,1 anos), seguidos de mulheres amarelas (11,9 anos), mulheres brancas (10,5 anos) e homens brancos (10,1 anos), seguidos de uma base com mulheres negras (9,2 anos), homens negros (8,6 anos), mulheres indígenas (7,6 anos) e homens indígenas (7,4 anos). Ou seja, a ideia geral de que as mulheres têm mais anos de estudo só vale se considerarmos a média por gênero, sendo 9,8 anos para mulheres e 9,3 anos para homens, mas mulheres de grupos historicamente discriminados – negras e indígenas – estão em situação muito mais desfavorável do que os homens amarelos e brancos.

Tabela 9 – Elaboração própria, de Geledés Instituto da Mulher Negra

Os dados da tabela de pessoas com nível superior completo, por áreas gerais, específicas e detalhadas de formação do curso graduação concluído, segundo os grupos de idade, o sexo e a cor ou raça, indica padrões de concentração, refletindo a segregação em campos do conhecimento. As mulheres, que constituem a maioria das pessoas com curso superior completo, concentram-se fortemente nas áreas ligadas ao cuidado e ao ensino. O campo da educação é o principal polo, absorvendo 20,80% das mulheres formadas, seguido por serviço social, com 5,04%, e forte presença em odontologia e medicina.

A população negra (preta e parda) também exibe sua maior concentração no campo da educação, com uma média de aproximadamente 17,3% – superando o percentual de concentração da população branca (11,8%) nesta mesma área. Outras áreas de destaque são Direito e Serviço Social, sendo este último um importante campo de formação para as mulheres negras.

Por sua vez, a população branca apresenta uma distribuição mais ampla, mas com foco em áreas de maior prestígio social e técnico. A maior concentração é registrada na educação (11,80%), com forte representação em direito (10,45%). Além disso, o grupo demonstra uma forte participação em áreas técnicas, como engenharia, produção e construção (10,03%), o que é particularmente impulsionado pela presença de homens brancos. Desta forma, enquanto a população negra se concentra mais em educação, a população branca tende a ter uma distribuição mais equilibrada com proeminência em direito e áreas de engenharia.

A educação, que representa 13,79% das formações em ensino superior, é a área em que as mulheres negras estão mais concentradas (25%), estando abaixo apenas de mulheres indígenas (29,68%). Em seguida, temos homens indígenas (18,8%), mulheres brancas (18,2%), homens negros (5,3%) e homens brancos (2,54%). Já em medicina, que concentra 2,14% das pessoas com nível superior, o indicador sobe para 4,95% dos homens amarelos com ensino superior, 4,20% de mulheres amarelas, 3,17% de homens brancos, 2,19% de mulheres brancas, 1,6% de homens negros e 1% de mulheres negras.

Tabela 10 – Elaboração própria, de Geledés Instituto da Mulher Negra

Os dados de acesso ao ensino superior ainda são desiguais em termos de raça, gênero e classe, mas essa disparidade diminuiu significativamente se compararmos com os dados do início do século. Este é um resultado das lutas históricas dos movimentos negros e da institucionalização das políticas de ações afirmativas. Mas, se houve mais acesso de grupos historicamente discriminados às universidades, como isso se reflete no mercado de trabalho? 

Ao analisar a situação de ocupação da população de 14 anos ou mais de idade por sexo e cor ou raça, identificamos importantes disparidades no mercado de trabalho. A população negra (parda e preta) constitui a maioria, enquanto a população branca vem em seguida. Globalmente, 50,21% da população está ocupada, e 43,59% está na situação de não ocupada.

As diferenças são notáveis por gênero e raça. Em relação ao sexo, a taxa de ocupação dos homens é de aproximadamente 62,92% (28,31% ocupados em 44,99% da população), significativamente maior do que a taxa de ocupação das mulheres, que é de cerca de 44,86% (21,90% ocupadas em 48,82% da população). No que diz respeito à raça, a população branca apresenta uma taxa de ocupação de aproximadamente 55,31% (22,59% ocupados em 40,84% da população branca), superior à taxa da população negra, que é de cerca de 52,27% (27,19% ocupados em 52,02% da população negra), evidenciando uma desvantagem de 3,04 pontos percentuais para a população negra.

A população negra representa também uma fatia ainda maior da população não ocupada, totalizando cerca de 57% de todos os indivíduos não ocupados no país. Este dado sugere que, em termos absolutos e proporcionais, a população negra enfrenta barreiras mais elevadas na inserção e manutenção da ocupação, uma vez que representa a maior parte tanto dos ocupados quanto, com maior peso, dos não ocupados.

Do total de pessoas ocupadas (50,21%), 15,8% são homens negros, 12,25% homens brancos, 11,37% mulheres negras e 10,34% mulheres brancas. Já dentre os 43,59% de pessoas desocupadas, 15,13% são mulheres negras, 9,71% homens negros, 11,48% de mulheres brancas e 6,77% de homens brancos.

Tabela 11 – Elaboração própria, de Geledés Instituto da Mulher Negra

Considerando a população ocupada, é preciso refletir sobre a remuneração e quais tipos de ocupação dos diferentes grupos por cor ou raça e gênero. Os dados do IBGE – Censo Demográfico 2022, que detalham o valor do rendimento nominal mensal médio de todos os trabalhos, revelam uma profunda hierarquia salarial no Brasil, estruturada por cor ou raça e sexo. A maior remuneração média absoluta é observada entre os homens amarelos, com um rendimento de R$ 6.591,78, um valor que supera em 231,24% a média nacional de rendimento (R$ 2.850,64). No extremo oposto, a menor remuneração média é registrada pelas mulheres indígenas, com apenas R$ 1.621,18, representando somente 56,87% da média nacional. Essa diferença entre o rendimento mais alto e o mais baixo aponta que os homens amarelos chegam a ganhar mais de 4 vezes o valor recebido pelas mulheres indígenas.

A análise por sexo reforça a desigualdade de gênero, visto que, em média, as mulheres (R$ 2.506,20) recebem apenas 80,45% do rendimento médio dos homens (R$ 3.115,29). No entanto, a disparidade racial é ainda mais acentuada. O rendimento médio total segue uma hierarquia: amarela (R$ 5.941,50) > branca (R$ 3.658,88) > parda (R$ 2.186,26) > preta (R$ 2.061,08) > indígena (R$ 1.683,37). As populações negra (parda e preta) e a indígena encontram-se nos patamares mais baixos de remuneração.

Especificamente, o rendimento do grupo branco (R$ 3.658,88) é consideravelmente superior ao da população negra, sendo cerca de 77,52% maior do que o rendimento do grupo preto (R$ 2.061,08) e 67,36% maior que o rendimento do grupo pardo (R$ 2.186,26). Dentre a população negra, as mulheres pretas (R$ 1.833,89) e mulheres pardas (R$ 1.934,79) são particularmente penalizadas, com seus rendimentos médios atingindo apenas 27,8% e 29,3%, respectivamente, do rendimento do grupo mais bem remunerado (homens amarelos), consolidando a intersecção de raça e gênero nas piores posições da distribuição de renda.

Tabela 12 – Elaboração própria, de Geledés Instituto da Mulher Negra

Ao analisar a distribuição percentual das pessoas ocupadas de 14 anos ou mais na semana de referência, classificadas por posição na ocupação, sexo e cor ou raça, a categoria com a maior concentração de indivíduos ocupados é a de empregado no setor privado, exclusive trabalhador doméstico, que absorve mais da metade da população, com 51,66% do total. No polo oposto, a menor concentração se dá na categoria de trabalhador familiar auxiliar, com apenas 0,86%.

Ao analisar a distribuição por cor ou raça e sexo, o maior grupo único dentro da população ocupada é o de homens brancos, que representa 24,4% do total. A análise das categorias que representam os extremos do mercado de trabalho demonstra uma inserção desigual. Na posição de maior poder e formalidade, a de empregador (com pelo menos um empregado), a maior concentração é observada entre os homens brancos (1,43% de 3,28% do total de ocupados nesta categoria). Por outro lado, na categoria de maior vulnerabilidade e informalidade, o trabalho doméstico, a maior concentração é das mulheres negras (2,48% do total de 3,8% de ocupados nesta categoria). Na categoria de conta própria (sem empregados), os homens pardos (7,49%) e homens brancos (7,29%) representam a maior parte – essa distribuição sugere que a população negra tende a se concentrar em categorias de maior vulnerabilidade, enquanto a população branca detém maior participação nas posições de empregadores.

Tabela 13 – Elaboração própria, de Geledés Instituto da Mulher Negra

Com relação à seguridade social, ao coletar os dados sobre pessoas de 14 anos ou mais de idade ocupadas na semana de referência, por sexo, cor ou raça, condição de contribuição para instituto de previdência oficial no trabalho principal, identificamos profundas desigualdades no acesso à seguridade social, estruturadas mais uma vez por cor ou raça e sexo. A taxa geral de não contribuição atinge 32,75% da população ocupada, o que significa que mais de um terço dos trabalhadores não têm garantia de previdência pelo trabalho principal.

Em termos de cor ou raça, os maiores e menores indicadores de não contribuição (taxa de vulnerabilidade previdenciária) apresentam um contraste acentuado. A população negra (parda e preta) é uma das mais vulneráveis, com taxas de não contribuição de 38,00% (parda) e 36,59% (preta). Ambas são significativamente superiores à taxa da população branca, que é de 26,69%, evidenciando uma grande disparidade racial no acesso à proteção social.

Ao analisar a distribuição por sexo, observa-se que as mulheres estão mais vulneráveis à desproteção previdenciária. A taxa de não contribuição para as mulheres ocupadas é de 41,01%, sendo o maior indicador de não contribuição por sexo. Em contraste, a taxa para os homens ocupados é de 34,26%, que se configura como o menor indicador de não contribuição por sexo. Isso significa que, proporcionalmente, as mulheres ocupadas têm uma desvantagem de aproximadamente 6,75 pontos percentuais em relação aos homens no acesso à previdência.

Em termos de peso absoluto (percentual sobre o total da população ocupada), os homens brancos representam as maiores concentrações de contribuintes, com 17,57% do total de ocupados, respectivamente. No entanto, o maior peso de não contribuintes recai sobre a população negra, que representa 20,41% dos 32,75% dos não contribuintes – ou 62,3% do total -, com destaque para os homens negros (12,3% do total de 32,75% ocupado não contribuinte) e mulheres negras (8,11% do total de 32,75% ocupado não contribuinte), confirmando que os grupos raciais mais vulneráveis são os mais representados no volume total de pessoas sem proteção social.

Tabela 14 – Elaboração própria, de Geledés Instituto da Mulher Negra

A escolarização e o acesso ao emprego e à renda impactam no acesso a outros direitos fundamentais, como o direito à moradia digna. Os dados do Censo 2022, que analisam a população residente em favelas e comunidades urbanas, indicam uma concentração demográfica extremamente desigual, marcada por cor ou raça. A população dessas áreas é predominantemente negra (72,4%) – considerando a soma dos grupos pardo (56,81%) e preto (16,13%). Em contrapartida, a população branca representa 26,62% das pessoas vivendo nesses territórios. 

Em termos de sexo, a população residente nessas comunidades tem um ligeiro predomínio de mulheres (51,7%) sobre os homens (48,3%). A maior concentração absoluta em qualquer subgrupo é a de mulheres negras, que sozinhas representam 35,5% da população total – 27,4% pardas e 8% pretas. No extremo oposto, os homens brancos representam apenas 12,5% do total. Essa distribuição evidencia que a maior parte da população residente em favelas e comunidades urbanas é composta por mulheres e pessoas negras, destacando o impacto da desigualdade racial na configuração desses assentamentos.

*Tabela 15 – Elaboração própria, de Geledés Instituto da Mulher Negra

Ao buscar detalhar a condição de ocupação dos domicílios particulares permanentes segundo a cor ou raça, não identificamos profundas disparidades na segurança e no custo da moradia.  Em termos de composição demográfica, a população negra constitui a maioria dos moradores em domicílios particulares, representando 55,64% do total nacional (112.456.827 pessoas), enquanto a população branca representa 43,31% (87.548.134 pessoas). Ao analisar a segurança da moradia, a população negra apresenta um menor percentual de domicílios próprios, com 71,78% de seus moradores nessa condição, ficando 1,91 ponto percentual abaixo da população branca, que registra 73,69% de domicílios próprios. Mas, como vimos no dado anterior, a real diferença no acesso à moradia é que a população negra está concentrada em favelas e comunidades urbanas.

Essa pequena desvantagem se reflete no custo e na vulnerabilidade da moradia. A população negra possui um maior percentual de domicílios alugados, atingindo 21,21% de seus moradores, contra 20,58% da população branca, indicando um maior peso de gastos com aluguel. A desigualdade é ainda mais acentuada nas condições de maior vulnerabilidade: o percentual de domicílios cedidos ou emprestados é de 6,12% para a população negra, superior aos 5,01% da população branca. Em síntese, a população negra, embora majoritária no país, detém menor posse de imóvel próprio e maior incidência de moradias em condições de aluguel e cedidas.

*Tabela 16 – Elaboração própria, de Geledés Instituto da Mulher Negra

Os dados sobre a existência de conexão domiciliar à Internet revelam uma disparidade significativa entre a população negra (soma dos grupos pardo e preto) e a população branca. Ao calcular a taxa de acesso à internet dentro de cada grupo, a população branca registra o maior indicador de acesso (“sim”), com 92,52% de seus membros em domicílios com internet. Em contraste, a população negra apresenta uma taxa de acesso de 87,24%, ficando 5,28 pontos percentuais abaixo da população branca. Essa desvantagem se reflete no maior indicador de vulnerabilidade (sem acesso, ou “não”), onde a população negra atinge uma taxa de 12,76% de seus membros, o que é aproximadamente 1,7 vezes a taxa da população branca, que é de 7,48%. Em termos de contribuição absoluta para o total de domicílios sem internet, a população negra contribui com 7,10 pontos percentuais para o total nacional (10,64%), enquanto a população branca contribui com 3,24 pontos percentuais.

Neste sentido, apesar de ser a maioria demográfica, a população negra possui um acesso significativamente menor à conexão domiciliar à internet e uma vulnerabilidade substancialmente maior de exclusão digital em comparação com a população branca.

*Tabela 17 – Elaboração própria, de Geledés Instituto da Mulher Negra

O acesso à moradia significa acesso à moradia digna com infraestrutura? Os dados do Censo Demográfico sobre o acesso à canalização de água revelam mais uma disparidade entre a população negra e a população branca. Ao analisar a qualidade do acesso dentro de cada grupo, a população branca registra o maior indicador de acesso principal à rede geral, com 86,62% de seus membros nessa condição. Em contraste, a população negra fica atrás, com uma taxa interna de acesso principal de 80,25%, uma diferença de 6,37 pontos percentuais. Essa desvantagem se reflete no maior indicador de pessoas que não possuem ligação com a rede geral, onde a população negra atinge uma taxa interna de 15,79% de seus membros, o que é significativamente superior à taxa da população branca, de 10,07%. Em suma, a população branca desfruta da maior cobertura de acesso à rede geral, enquanto a população negra enfrenta uma vulnerabilidade consideravelmente maior e a população indígena possui os piores indicadores de acesso à infraestrutura hídrica básica.

Tabela 18 – Elaboração própria, de Geledés Instituto da Mulher Negra

Ao analisar o acesso ao saneamento de alta qualidade (rede geral, rede pluvial ou fossa ligada à rede e fossa séptica), identificamos que a população branca desfruta da maior cobertura. A população branca registra o maior indicador de acesso a essa infraestrutura entre os principais grupos, com 83,53% de seus membros atendidos, superando os 70,03% da população negra.

Essa diferença se reverte e se agrava nos indicadores de baixa qualidade e vulnerabilidade (fossa rudimentar, vala, rio/mar, ou sem banheiro). A população negra apresenta uma taxa de 29,04% de seus membros nessas condições precárias, o que é quase o dobro da taxa registrada pela população branca, que é de 16,07%. Desta forma, a população branca é o grupo com maior acesso a saneamento de alta qualidade e menor vulnerabilidade, enquanto a população negra enfrenta uma desvantagem considerável, e a população indígena detém os piores indicadores de infraestrutura sanitária.

Tabela 19 – Elaboração própria, de Geledés Instituto da Mulher Negra

Ao analisar o melhor indicador de destino do lixo, que é a coleta (rede geral ou caçamba), a população branca desfruta do melhor serviço. A taxa interna de domicílios com lixo coletado é de aproximadamente 94,71% para a população branca (41,19% de 43,49% do total nacional), o que é superior aos 88,37% da população negra (49,03% de 55,48% do total nacional). Contudo, devido ao seu peso demográfico.

A disparidade se torna mais grave no pior indicador, que é o descarte inadequado, sendo o lixo queimado na propriedade a forma mais expressiva. A população negra registra um índice de 10,20% de seus domicílios utilizando essa prática insalubre (5,66% de 55,48% do total nacional), o que é mais do que o dobro do índice da população branca, que é de 4,41% (1,92% de 43,49% do total nacional). Em termos de contribuição absoluta, a população negra contribui com 5,66 pontos percentuais para o total nacional de lixo queimado, quase três vezes mais que a população branca (1,92 pontos percentuais). Neste sentido, a população branca possui maior acesso à coleta de lixo e menor vulnerabilidade a práticas insalubres, enquanto a população negra concentra desproporcionalmente o descarte inadequado por meio da queima.

Tabela 20 – Elaboração própria, de Geledés Instituto da Mulher Negra

O aprofundamento das assimetrias raciais

Os dados analisados do Censo Demográfico 2022 do IBGE evidenciam a permanência e o aprofundamento das assimetrias raciais que estruturam a sociedade brasileira, tornando a discussão sobre Direitos Humanos inseparável da pauta racial. Embora a população negra (preta e parda) constitua a maioria demográfica do país, essa superioridade numérica não se traduz em condições socioeconômicas dignas, mas sim em uma vulnerabilidade sistemática em quase todos os indicadores sociais. A população negra registra as piores taxas de não alfabetização, menor média de anos de estudo e sub-representação nos níveis mais altos de instrução, além de enfrentar maior insegurança no mercado de trabalho, menor rendimento médio e maior exposição à precariedade habitacional e à ausência de infraestrutura básica, como água canalizada, esgotamento sanitário e coleta de lixo. 

Tal cenário demonstra que a mera garantia formal dos Direitos Humanos Universais é insuficiente para romper com a lógica do racismo estrutural. Torna-se, portanto, imperativo reconhecer e implementar ativamente os Direitos Específicos, que promovem a Equidade, tratando os desiguais na medida de suas desigualdades. Somente através de ações políticas e econômicas efetivas, desenhadas para desmantelar as barreiras históricas e promover a igualdade material, será possível reverter o ciclo de desvantagem racial e garantir que o direito universal à vida, à educação e ao trabalho seja plenamente vivido por toda a população.

Apesar de avanços possibilitados por políticas afirmativas na perspectiva racial que ampliaram as oportunidades educativas e no setor público, e por contarmos com um conjunto de normas jurídicas que criminalizam o racismo, o que identificamos é que a desigualdade estrutural persiste e que a garantia formal de direitos não se traduz em igualdade material para a população negra.


Jaqueline Santos – Consultora Programa Educação e Pesquisa-Geledés

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