O que está em questão quando se discute um projeto de lei sobre creche noturna? É grande a dificuldade, por parte de muitas mães, pais e responsáveis por bebês e crianças pequenas, para conciliar a vida profissional e as demandas da vida pessoal!
Por Célia Regina Batista Serrão, do UNIFESP
As jornadas de trabalho numa sociedade capitalista e globalizada são as mais variadas. Muitos pais e mães exercem suas atividades profissionais em horários que avançam em parte do período da noite, outras(os) estão alocadas(os) em jornadas noturnas. Há ainda os pais e as mães que estudam no período noturno. Temos também que considerar que pais e mães que trabalham no chamado “horário comercial” saem de seus empregos entre 17h e 18h30. Caso a creche ou a pré-escola não estejam nas proximidades de seu local de trabalho, terão que recorrer a terceiros para buscar seus filhos e filhas e cuidar deles até a chegada do pai ou da mãe.
Para iniciar essa discussão, recuperamos a “palavra de ordem” do movimento feminista e do movimento de mulheres no processo da elaboração da Constituição Federal de 1988: “O filho não é só da mãe!!!!”, que culminou na instituição do direito da criança à educação, desde seu nascimento, e o direito de trabalhadoras e trabalhadores terem seus filhos e filhas assistidos em creches e pré-escolas públicas e gratuitas. Assim, faz-se necessário tratar a questão como algo que implica mulheres e homens, e contrapô-la ao pensamento hegemônico, que atribui somente à mulher, mãe, a responsabilidade pelo cuidado e pela educação de bebês e crianças, como bem nos provoca bel hooks (2019, p. 13):
O fato de que ninguém fala em homens deixarem o trabalho para ser pais em tempo integral demonstra até que ponto o pensamento sexista sobre papéis prevalece. A maioria das pessoas em nossa sociedade ainda acredita que as mulheres são melhores na criação de filhas e filhos do que os homens.
Essa questão implica, ainda, a sociedade e o poder público, não só porque a Educação Infantil constitui direito de bebês e crianças pequenas, e de seus pais e mães trabalhadores, mas porque a sociedade, em especial o mundo do trabalho, e o poder público têm responsabilidade para com a infância e a reprodução das futuras gerações. A maternidade e a paternidade têm função social e política!!! O que significa que é necessário, segundo Qvortrup (2011, p. 329), “tornar plausível a ideia de que as crianças são um bem público e não meramente assunto privado”. E ele continua:
Com base nas experiências históricas, também a economia moderna deve reconhecer a reprodução como indispensável para o desenvolvimento. Nossa economia moderna é, provavelmente, a primeira na história a ignorar o fato de que a reprodução é condição sine qua non para sua sobrevivência. (QVORTRUP, 2011, p. 331)
Nessa perspectiva, a questão é tratada em outro patamar e dimensão, propiciando elementos para formular alguns questionamentos sobre propostas de “creche noturna”. É preciso discutir as diferenças entre a ampliação do horário de atendimento nas creches e pré-escolas e uma proposta para atendimento de bebês e crianças pequenas no período da noite. Segundo resolução do Conselho Nacional de Educação, as creches e as pré-escolas compõem a Educação Infantil, primeira etapa da Educação Básica brasileira. São instituições não domésticas, de atendimento no período diurno, reguladas e supervisionadas pelos órgãos educacionais. Assim, poder-se-ia pensar numa instituição, que não creche e pré-escola, específica para atender às necessidades de pais e mães trabalhadores noturnos. Porém, problematizo: esse seria o melhor caminho? Como sociedade, não teríamos outras alternativas para lidar com tal necessidade? Por que a conta deve ser paga apenas pelos bebês, pelas crianças e por seus familiares?
Focalizando com maior atenção a situação, percebe-se um recorte de classe social: os destinatários de propostas desse tipo são os bebês e as crianças de trabalhadores e trabalhadoras. Quem deixaria, com tranquilidade e prazer, seus filhos e filhas dormirem, diariamente, em um lugar que não a sua casa? Só aqueles e aquelas que não dispõem de outro recurso.
Se concordamos que crianças são um bem público e não privado, temos que gestar condições para que cresçam e se desenvolvam em situações propícias, ou ao menos dignas, e isso exige pensar em outros arranjos: licença expandida, seja no tempo de um dos responsáveis, seja em revezamento entre mãe, pai ou outro parente; diminuição da carga horária de trabalho da mãe, do pai ou do responsável; prioridade para pais, mães e responsáveis por bebês e crianças pequenas na escolha das jornadas de trabalho e do período de férias… Enfim, há que se considerar a complexidade da situação! Há muito o que ser discutido, para além da proposta de criação de instituições específicas para atendimento noturno de bebês e crianças pequenas.
Referências:
hooks, bel. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.
QVORTRUP, Jens. A volta do papel das crianças no contrato geracional. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 16, n. 47, maio/ago. 2011, p.323–332.
*Pofessora do Departamento de Educação da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (EFLCH/Unifesp) – Campus Guarulhos e membro do Fórum Paulista de Educação Infantil (FPEI).