Maria Inês Nassif
Todo o temor dos setores de centro-esquerda nas eleições do ano passado residia no fato de a candidata ungida por Lula, Dilma Rousseff, não ter as mesmas qualidades do ex-presidente. Os primeiros nove meses de governo, todavia, mostram que, em alguns casos, ela transformou suas desvantagens em vantagens.
O talento de Luiz Inácio Lula da Silva para lidar com as multidões; sua expertise em diálogo, adquirida nas mesas de negociação com os patrões como sindicalista; a ascendência sobre o PT, por ter sido, desde a criação do partido, a ligação entre os quadros de esquerda e as massas; e até um tendência ao pragmatismo acabaram concentrando todos os elementos de governabilidade em suas mãos, nos seus dois mandatos (2002-2010).
O carisma e o talento político, e algumas apostas bem sucedidas – que permitiram a inclusão de grandes contingentes pobres à sociedade de consumo – se sobrepuseram a condições extremamente desfavoráveis do seu mandato. Lula lidava com uma elite política rachada ao meio: na base de apoio, tinha que lidar com a política de clientela de partidos tradicionais, à direita ou ao centro; na oposição, com um udenismo que tinha grande potencial de instabilização do regime. Sem fazer o governo dos sonhos da esquerda de seu partido ou dos movimentos sociais, a guinada à direita do PSDB e o “lulismo” das bases acabaram limitando a ação dos grupos mais radicais. Seu vínculo com a CUT também neutralizou o movimento sindical.
Todo o temor dos setores de centro-esquerda nas eleições do ano passado residia no fato de a candidata ungida por Lula, Dilma Rousseff, não ter as mesmas qualidades. A presidenta eleita não tem vínculos históricos com o PT ou com os movimentos sociais, não tem prática de negociação – nem no movimento sindical, nem com os partidos políticos – e não é uma líder popular. Os primeiros nove meses de governo, todavia, mostram que, em alguns casos, ela transformou suas desvantagens em vantagens. Depois de oito anos de governo de um líder político como Lula, era obrigatória a reautonomização dos partidos e dos movimentos sociais.
A crise política e a radicalização à direita do PSDB e do PFL juntaram esses atores em torno de Lula. O governo Dilma acena para uma certa organização da vida institucional, pelo menos no que se refere às forças que deram apoio orgânico à sua candidatura. A disputa política tende a ser menor no cenário institucional e se desloca para a sociedade. Governo vira governo, partido vira partido, movimento sindical vira movimento sindical e movimentos sociais viram movimentos sociais.
O Congresso do PT, realizado no início de junho, é um exemplo. O partido saiu da toca e construiu sua própria agenda política, com itens que o governo não necessariamente assumirá, como a regulamentação da mídia. A reforma política, se comove governo e partido, está nas mãos do partido: a opinião pública precisa estar convencida disso e a luta se dá no Legislativo, entre os partidos políticos. A CUT reassumiu a bandeira da redução da jornada de trabalho sem o correspodente corte em salários. O MST aproveitou uma evidente preferência do governo por medidas destinadas ao incentivo da produção na propriedade familiar, tem sido ouvido nas suas reivindicações por crédito e tecnologia para assentados e deve colocar a reforma agrária no campo de luta social (até hoje não foi feita nenhuma desapropriação para fins de reforma agrária no governo Dilma).
Sem grandes vínculos com o partido e com os movimentos sociais historicamente ligados a Lula, Dilma tem gasto mais tempo com eles do que seu antecessor. O ex-presidente entendia esses setores como uma extensão de seu mandato. E tinha o “lulismo” como amortecedor de demandas mais radicais. Desde o episódio dos “aloprados” – em 2006, a Polícia Federal deu flagrante em petistas que tentavam comprar um dossiê contra o candidato ao governo pelo PSD, José Serra – , Lula botou a direção do PT na geladeira. O deputado Ricardo Berzoini, então presidente do partido, amargou o desgaste do episódio junto ao governo até o fim de seu mandato na presidência do PT. Quando José Eduardo Dutra, quadro da confiança de Lula, assumiu a presidência petista, a campanha eleitoral já estava em andamento. O PT se concentrou nas eleições; Lula, no governo e nas eleições.
Com uma composição muito elástica da base parlamentar, Lula evitou conversar diretamente com os movimentos sociais. O que garantiu um certo controle sobre os movimentos mais radicais foi a radicalização à direita da oposição. Não havia interesse desses setores me enfraquecer o governo, depois de terem sofrido um período negro de criminalização nos governos tucanos. A CUT também perdeu o poder de ação, embora os trabalhadores do setor público tenham mantido alguma militância.
Dilma devolveu poder à direção do PT, ao abrir um contato direto com o atual presidente da agremiação, Rui Falcão. Abriu sua agenda para políticos. E, além de ter conversado pessoalmente com líderes de movimentos sociais, manteve o canal aberto com esses setores via Gilberto Carvalho, nomeado secretário-geral, que tem um diálogo inquestionável com eles.
O racha do DEM, o PSD, também foi um grande presente para a presidenta. Com uma base parlamentar muito grande, os pequenos partidos de direita tendem a ser neutralizados com os novos integrantes da base. O governo também pode se dar ao luxo de abrir mão de parte dos votos do PMDB para aprovar matérias de seu interesse. Tanto é assim que a presidenta tem feito as mudanças no Ministério a cada escândalo, devolvendo aos partidos da base o ônus pelo desgaste dos malfeitos dos titulares das pastas por eles indicados.
É certo que muita água vai correr debaixo da ponte até terminar o primeiro mandato de Dilma – e mais água ainda se ela conseguir a reeleição. Mas o fato é que os primeiros meses de seu governo mostram que Dilma é Dilma e Lula é Lula. Cada um lida com as dificuldades de governo com as qualidades que possui.
(*) Colunista política, editora da Carta Maior em São Paulo.
Fonte: Carta Maior