Casamento não é liquidação de verão nem semana de Black Friday para ter data limite
por Flávia Oliveira no O Globo
Respeito, elogio, admiro, celebro, louvo, reverencio a rede de solidariedade que se formou em torno dos casais homoafetivos empurrados para o casamento por medo da intolerância e do autoritarismo galopantes. É belo e simbólico o afeto de empenhar serviços gratuitamente em nome do amor. Mas a militância histórica contra a discriminação por orientação sexual não merece terminar confinada em bunkers de solidariedade. O Brasil não pode se tornar o país que confunde direito com benefício por prazo determinado.
É disso que trata a formalização apressada de uniões de pessoas do mesmo sexo às vésperas da posse do presidente da República que, supostamente, baniria por decreto uma conquista, não dos gays ou das lésbicas, mas da sociedade brasileira. Se numa canetada o chefe do Executivo pode dar fim a direitos sociais, ninguém em juízo perfeito pode dizer que as instituições democráticas estão funcionando.
Moças e moças, rapazes e rapazes tiveram a união estável declarada legal pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em maio de 2011. A mais alta Corte do país equiparou os relacionamentos homoafetivos aos heterossexuais em decisão unânime, por dez votos a zero — só o ministro Dias Toffoli, hoje presidente do Supremo, declarou-se impedido por ter atuado no caso como advogado-geral da União. Dois anos depois, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) proibiu que autoridades se recusassem a habilitar ou celebrar o casamento civil ou a conversão em casamento da união estável entre pessoas do mesmo sexo.
O CNJ agiu porque, mesmo depois de o STF reconhecer o direito, alguns cartórios não se sentiam obrigados a formalizar as relações. A Resolução 175/2013 pacificou o tema ao deixar claro que notários ou registradores estavam proibidos de recusar — logo, obrigados a reconhecer — as uniões homoafetivas, independentemente de entendimentos pessoais.
Naquele ano, o IBGE passou a contabilizar os casamentos de pessoas do mesmo sexo. De 2013 a 2017, as Estatísticas do Registro Civil computaram 11.727 casamentos entre cônjuges masculinos e 13.682 femininos. Em meia década, 25 mil casais formalizaram relacionamentos. Outros tantos homossexuais, por confiança na Justiça e na democracia, passaram a dormir tranquilos por terem conquistado o mesmo direito que cônjuges heterossexuais acessavam naturalmente. Agora, vivem insones pela ameaça de revogação.
Mesmo respeitando e acolhendo os casais que estão acelerando as uniões para não perderem direitos, é preciso brigar pelos brasileiros e pelas brasileiras que não tiveram a felicidade de ter um par disposto a casar nesta reta final de 2018. Casamento não é liquidação de verão nem semana de Black Friday para ter data limite. Não é certo uma representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) recomendar que casais se unam às pressas, por medo de uma transição de poder comprometida com agenda discriminatória e inconstitucional.
Antes de as urnas confirmarem a vitória do candidato que mistura igreja e Estado e desqualifica o debate sobre minorias, o Brasil já vinha exercitando a naturalização do absurdo. Prova disso foram as vezes em que o presidente eleito, Jair Bolsonaro, teve de responder sobre machismo, racismo e homofobia ou declarar obediência à Constituição. O medo da proibição do casamento homoafetivo é mais uma evidência. Professor de Direito Constitucional e membro do Ministério Público do Rio de Janeiro, Guilherme Peña afirma que nenhuma tentativa de revogação passaria no Supremo. Ele evoca o que juristas chamam de efeito cliquet, expressão dos alpinistas para o movimento que só permite subir, nunca descer: “Conquistas sociais não podem retroceder, só avançar. É o que chamamos de vedação do retrocesso social”.
Anos atrás, a Coordenaria de Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio, Carlos Tufvesson à frente, lançou uma campanha contra a LGBTfobia que ensinava: “Se um de nós não tem direitos civis, nenhum de nós tem direitos civis”. Por isso, lutemos.