“Eu posso ouvir um amém?”, clama o reverendo Martin Luther King em um quarto de hotel em Memphis, Tennessee (Estados Unidos), horas antes de ser assassinado no dia 4 de abril de 1968. O público, emocionado, responde em uníssono: “Amém!” No palco, ao lado do ativista norte-americano, uma mulher assiste a tudo e chora. Estamos quase no fim da peça O Topo da Montanha, de Katori Hall, em um teatro de um bairro nobre de São Paulo. Dentro de instantes, Lázaro Ramos (Luther King) e sua esposa há 11 anos, Taís Araújo (a surpreendente camareira no espetáculo), serão aplaudidos de pé. Respingados por lágrimas, os dois agradecerão os gritos de “Bravo!” vindos do público. Reverberando o discurso da peça, também vão pedir a todos que passem o bastão da generosidade, do afeto e da tolerância.
“Posso dizer um negócio? Eu acho que em 2015 nós vivemos um auge dos nossos desejos de artista. Ampliou a nossa voz e o discurso que a gente quer fazer. Pra mim é um auge”, diz Lázaro, enquanto Taís concorda com a cabeça, no camarim do teatro horas antes do espetáculo em uma sexta-feira de dezembro. Ela se acomoda no sofá enquanto ele se esparrama em um canto. Definitivamente, já entraram no panteão dos casais famosos da arte nacional, como Tarcísio Meira e Glória Menezes. E mesmo internacional. O jornal inglês The Guardian publicou extenso material há alguns meses comparando os dois aos astros pop norte-americanos Jay Z e Beyoncé (também casados na vida real). “Só que a conta bancária é bem diferente”, brinca Taís.
O polêmico texto que atualmente apresentam no palco se concentra na véspera do disparo que matou Martin Luther King, talvez o maior símbolo da luta contra a segregação racial. Porém, em vez de fazer uma hagiografia padrão, os diálogos e as ações nos conduzem por um labirinto de sensações e complexas abordagens sobre a violência, a igualdade e a morte. Tudo isso sem perder a ternura. Lázaro e Taís recebem o público antes do início da peça. É um momento em que abraçam as pessoas, fazem perguntas e em que há uma espécie de congraçamento. “Isso é muito especial num período em que você vai para a rua e só se fala de brutalidade, corrupção, roubo, violência. Aqui é um local de acolhimento”, comenta Lázaro, que também dirige e produz o espetáculo. Mesmo sabendo de cor todos os meandros da pregação de Luther King a favor da não violência, o ator admite que enfrentaria sérios problemas se tivesse vivido na época do líder que interpreta. “Se eu sentasse numa lanchonete e alguém me jogasse leite na cara e me desse um soco, eu iria revidar e morrer no primeiro protesto. Eu não aguento tomar tapa, ser ofendido e ficar calado. Eu sou um dos que iriam morrer”, afirma.
Se a gente voltar só algumas horas no tempo, no mesmo dia a dupla estava na ponte aérea vindo do Rio de Janeiro, onde moram com os dois filhos, João Vicente, de 4 anos, e Maria Antônia, prestes a completar 1. “Já passamos da exaustão”, brincam. Além de lotarem os 506 lugares do teatro onde se apresentam de sexta a domingo na capital paulistana, gravam no solo fluminense a série Mister Brau, novo trunfo da Rede Globo nas noites de terça-feira. Nos 13 episódios da primeira temporada, Lázaro é Brau, cantor e compositor de sucesso estelar. Taís faz Michelle, empresária, coreógrafa e mulher de Brau. Após alcançarem a fama, vão morar num condomínio de luxo e causam estranhamento na vizinhança.
“A série é uma loucura. Eu nunca tive tanta popularidade na minha vida”, diz Taís enquanto se serve de café e observa fotos, desenhos e agradecimentos que Lázaro colocou nas paredes. “Uma coisa que nunca me aconteceu: colega de trabalho na Globo vindo pedir foto!”, completa o marido. “As pessoas me abordam muito mais hoje do que quando fiz [a novela] Da Cor do Pecado, por exemplo”, ela arremata.
Carioca, formada em jornalismo, Taís Bianca Gama de Araújo Ramos, de 37 anos, estreou na televisão em 1996 no folhetim Tocaia Grande, na extinta Rede Manchete. Ao fazer, na sequência, a protagonista de Xica da Silva, imediatamente alcançou fama nacional. Desde então foram 11 novelas, sete filmes e dez peças. Também cumpriu o papel de apresentadora do programaSuperbonita, no GNT. “Eu falo que estou tendo a vida que sempre sonhei, só não sabia que dava tanto trabalho”, ri.
Todo esse sonho artístico está sendo dividido com Luis Lázaro Sacramento de Araújo Ramos, 37, nascido em Salvador, Bahia. Filho de uma empregada doméstica e de um operário, ele começou a trajetória nos palcos em 1986 no Bando de Teatro Olodum. Espalhou marcos pela carreira. No tablado, com a peça A Máquina, entrou no circuito nacional. No cinema, aos 21 anos fez Madame Satã, de Karim Aïnouz, filme sobre famoso transformista carioca. Na TV, Foguinho, de Cobras e Lagartos, ainda hoje circula pelo imaginário popular. São, no total, 20 longas, cinco novelas, 30 espetáculos teatrais e ainda dezenas de entrevistas para o programa Espelho, que comanda no Canal Brasil. Paralelamente lança livros infantis e prepara agora dois títulos adultos.
“A gente sempre teve pudor de trabalhar junto se não fosse uma coisa útil, necessária, forte, com a qual a gente se sentisse feliz, completo”, fala sobre a atual parceria com a esposa. “Hoje é fácil ficar 24 horas por dia junto porque é muito relevante. Acho muito relevante mesmo.” O casamento enfrentou uma crise em 2008. Eles chegaram a se separar, mas voltaram após alguns meses.
Além de discutirem a questão racial todas as semanas no teatro e na TV, recentemente foram alvo de ataques na internet. A página do Facebook de Taís recebeu ofensas racistas em outubro do ano passado. Ela acabou processando os criminosos. O caso segue na Justiça. “Não tem que atender demanda desse povo, né? Não devemos dar tanta importância”, ela afirma. “O fato não mudou em nada minha postura e minha atuação.” Lázaro completa falando que a página dele também entrou na mira de comentários ofensivos: “Eu botei a resposta imediatamente. Falei: para os babacas de plantão que estão vindo aqui, eu estou muito bem. E a única resposta que tenho pra vocês é a hashtag ‘#vápraputaquepariu’. Sumiram todos. Pronto”.
A peça O Topo da Montanha narra fatos e acontecimentos do final da década de 1960 nos Estados Unidos. Mas de uma forma impressionante ela acaba tocando em questões que hoje vivemos no Brasil, como a violência contra os pobres e o racismo. Por que fazer esse texto agora? Ele atingiu o público da maneira que esperavam?
LÁZARO: Para mim, é o melhor espetáculo que já fiz na vida. O espetáculo mais maduro, mais eficiente.
TAÍS: Eu acho a maneira mais inteligente e moderna de falar desse assunto [segregação]. É comunicando, aproximando, não colocando como um problema exclusivamente meu ou dele, mas sim como um problema de todos nós. Quero discutir com quem pensa diferente de mim.
LÁZARO: Eu queria fazer um espetáculo que, para além desse conteúdo reflexivo todo, fosse muito elegante e bom de assistir. E eu tenho uma tese.
TAÍS: Ele é cheio de teses.
LÁZARO: Graças a Deus. Mas eu entendi um pouco em que estágio da minha vida e da minha carreira eu estou. Eu gosto de discutir questões sociais nos meus trabalhos. Gosto de trazer uma reflexão, dar uma provocada no público para pensar um pouco além. Mas quanto mais o tempo passa, mais eu fico pensando que é importante você trazer ludicidade, entretenimento, algo de novo na carpintaria dramatúrgica. E isso é muito difícil de fazer. Porque às vezes você tem o tema político na sua arte, aí acaba fazendo uma bandeira e se esquece de trazer uma sofisticação artística maior. Não que fazer um teatro político não seja sofisticado.
Em 2015, vocês atingiram um auge tanto de popularidade quanto artístico. Como se sentem em relação a isso?
LÁZARO: O ponto em que eu me deparo com tudo isso é que a arte tem um limite. Tem coisas para mudar o país que fazem parte da política pública. Fazem parte da escolha dos nossos representantes. Porque eu me sinto num auge com tudo o que eu sempre quis como artista, mas eu tenho um limite. E não adianta ficar sonhando e achar que a arte pode ser responsável por tudo, porque não será. É uma porta de entrada importantíssima. Mobiliza e sensibiliza. Mas se a gente não tiver uma atuação política para saber escolher melhor nossos representantes, se a gente não entender quais são as políticas que esses caras estão votando para o nosso dia a dia, se a gente não souber qual é o foco principal que este país precisa… Não vai pra lugar nenhum. Aí que vem o desespero. A esperança vem da arte, da beleza, da transformação, mas o desespero é porque eu não vislumbro uma melhora. Nos nossos representantes não tem melhora.
TAÍS: Lá, não. Mas todo dia que eu estou ali, no palco, quando acaba a peça, eu vejo 506 pessoas aqui dentro deste teatro, lotando todo dia. Pô, cara, eu tenho três dias por semana 506 pessoas querendo ouvir sobre isso.
LÁZARO: Mas nós somos 200 milhões de habitantes e eu acho que o que muda mesmo o país é dinheiro, educação, bons representantes políticos…
TAÍS: Claro, amor. Mas isso a gente não tem.
LÁZARO: Mas daí é que vem o desespero!
TAÍS: Mas a esperança vem dessas pessoas que estão querendo ouvir falar sobre isso.
Tanto a peça quanto a série, por abordagens diferentes, acabam falando sobre o momento político e social que estamos vivendo no país hoje. O Lázaro comentou sobre as limitações da arte. Já pensaram ou pensam em uma atuação mais direta, sendo candidatos a algum cargo eletivo, por exemplo?
TAÍS:Deus me livre.
LÁZARO:Eu recebo uns convites… Mas estou tentando achar pessoas que não queiram entrar na política, mas que tenham um talento político, e falando para eles entrarem na política. É disso que eu estou sentindo falta, de ter uma nova geração sendo formada, um novo pensamento, uma nova proposta. Essa geração que está aí realmente tem que sair logo, correndo. A geração inteira.
TAÍS: Geração retrógrada. Quem pode parar esses caras? A gente pode parar esses caras?
LÁZARO: Tem um funcionamento muito eficiente, que foi combatido durante um tempo, mas que sempre esteve aí, dominando. Eles vão se transformando para retomar o poder. Na verdade, estamos passando por aí, pelos ex-donos do Brasil que agora querem voltar a ser donos
e que têm uma técnica de comando que é muito eficiente. Fisiologismo, propinas, é o jeito que o país foi fundado. É assim que este país funciona o tempo todo. Eu fico tentando achar pessoas que queiram refundar o país em outras bases. Essa é uma preocupação política direta agora.