Espetáculo patético. Médicos estrangeiros são obrigados a cruzar um corredor polonês de manifestantes em jalecos brancos gritando slogans que julgam ser de grande elevação espiritual – “Revalida!”, “volta pra casa”, “escravo, escravo…”. A nau dos insensatos parecia ecoar no dia seguinte, na imagem publicada de um médico cubano, negro, visivelmente constrangido pelo protesto de que era alvo, em Fortaleza. E as insanidades prosseguiram: da tuiteira que indaga como lidar com médicas parecidas a domésticas a comentaristas tratando os vaiados como “agentes cubanos”. É triste, bate até um desalento. Não funciona dizer que é culpa do governo, saída fácil a escamotear o pior. Trata-se de preconceito.
Sabemos não é de hoje que a medicina no Brasil se fez uma profissão tão branca quanto a roupa que distingue seus profissionais – apenas 1,5% deles se declaram negros, segundo o IBGE. Dado estatístico, de uma constatação empírica – afinal, quantos clínicos ou cirurgiões negros você conhece? Não é de hoje que este país sofre da má distribuição de seus médicos, o que faz com que vastidões continuem desassistidas para o atendimento básico, o que dizer então dos casos em que se requer atendimento especializado. Como não é de hoje que, embora tenhamos o SUS, predomina em nossas vidas, bem como em nossas expectativas de futuro, a visão mercadológica da medicina, no sentido de que o melhor estará sempre reservado a quem pode bancar. Mas, ainda que saibamos de tudo, vale indagar se os atores do protesto terão vaiado apenas os profissionais de fora, inscritos no programa oficial.
Saiu vaiada a medicina social brasileira. Como saíram vaiados profissionais que deram e dão duro para fazer com que a saúde seja um direito de todos neste país. Hoje pretendo usar este espaço para lembrar de um deles, por coincidência negro e, mais coincidência ainda, neto de escravos.
Chamava-se Justiniano Clímaco da Silva, mas a clientela o tratava como “Doutor Preto”. Fez história no Paraná, precisamente em Londrina, onde trabalhou até morrer, em 2000, aos 93 anos. Destacou-se numa cidade muito pobre até idos de 1930, depois enriquecida pela cafeicultura – cidade em cujos anais consta a saga vitoriosa dos colonos brancos, de origem europeia, nem tanto a força de trabalho dos negros libertos. E não foram poucos – no século 19, os escravos representavam 25% da população do Estado.
Pois bem, Justiniano Clímaco nasceu preto e pobre em Santo Amaro da Purificação, na Bahia, em 1908. Filho de carpinteiro e criada doméstica, cismou de imitar o Dr. Bião, médico da cidade. Queria ser como ele. Então virou preto, pobre e pretensioso. Tanto fez que lhe arrumaram estudos num seminário e cama na casa de uma tia em Salvador. Daí, preto, pobre, pretensioso e persistente, não virou padre, mas bacharel em Ciências e Letras. Depois virou professor do ginásio, deu aulas de matemática e latim, o que pagaria o preparatório para a Faculdade de Medicina da Bahia. Entrou. Fez o curso. Formou-se em 1933 numa classe com 95 alunos, contabilizados aí uma única mulher e ele, o único negro. Topou com a notícia de que a Companhia de Terras Norte do Paraná, firma inglesa que loteava uma vasta área do Estado, recrutava braços para a lavoura, apesar do avanço do tifo e da febre amarela. Pensou: se tem doença, precisa de médico. É lá que eu vou.
Assim começa a maior viração do Doutor Preto, 50 anos de clínica, mais de 30 mil pacientes, fundador de hospitais na região e tema de trabalho acadêmico de Maria Nilza da Silva, da Universidade Estadual de Londrina (UEL). A pesquisa da socióloga, da qual participou a aluna Mariana Panta, dá conta de um “escravo da medicina”, usando expressão do médico cubano vaiado em Fortaleza. Justiniano Clímaco chegou em 1938 a uma Londrina sem luz elétrica para acionar o infravermelho que trouxe de Salvador. Fervia e flambava os próprios instrumentos, não tinha raio X, anestesiava os pacientes com máscaras de clorofórmio, rastreava tumores por apalpação, ouvia pulmões e corações longamente. Dizia: “Clínica geral tem que ser feita assim: sem pressa”. Foi pioneiro no uso da penicilina ao tratar doenças sexualmente transmitidas, que proliferavam numa fronteira agrícola com gente de tudo quanto é lugar. Com o tempo, arrumou um Ford 28 para atender na roça e levar casos graves até Curitiba – 400 quilômetros por terra, dois dias de viagem.
Cobrava de quem tinha para pagar. E aceitava uma leitoinha, ou um queijo caseiro, por serviços prestados. Da clínica que abriu inicialmente, Casa de Saúde Santa Cecília, passou a se articular com os mais influentes para criar instituições como a Santa Casa de Londrina e a Sociedade Médica de Maringá. Chegou a arrancar do presidente Dutra os tostões necessários para um hospital de tuberculosos em Apucarana, depois transferido para Londrina. Hoje ali funciona o Hospital Universitário, centro de referência médica do norte do Paraná. Um belo dia Doutor Preto achou que seria bom provar do poder. Disputou uma vaga como deputado estadual, foi o quinto mais votado, mas odiou os anos na política, vividos solitariamente numa pensão em Curitiba. Queria voltar para a clientela. E dela não mais se separou.
Voltou também para a garotada do ginásio, ele que se tornara poliglota – falava além de grego e latim, alemão e francês. Perguntavam-lhe por que dar aulas, afinal, já suava o jaleco. “Docendo discitur”, respondia. Ensinando é que se aprende. Só um dia perdeu as estribeiras com paciente.
O sujeito marrento o interpelou no corredor do hospital, perguntando pelo Doutor Clímaco. Ouviu um naturalíssimo “sou eu”. E rebateu com um insultuoso “não vem não, negão, vai logo chamar o médico”. Preconceito não só fere, como turva os sentidos. Justiniano Clímaco agarrou o homem e jogou-o no rua. Sem consulta. Fez cardiologista seu único filho, adotivo, e doou tudo para a cidade, inclusive a maleta de médico. A casa onde morou até morrer foi derrubada, mas seu nome continua de pé numa unidade básica de saúde. Neto de escravos, Doutor Preto teria algo a dizer aos médicos brasileiros que hoje vaiam médicos cubanos.
Fonte: Estadão