É proibido dar risadas?

 

Reflexões sobre a lei 10639/03 e a prática pedagógica em escolas municipais de São Paulo

Getty Images/iStockphoto

Dinha*

Não, eu não sou contra o riso. Nem sou uma daquelas pessoas mal humoradas que passam o dia praguejando a sorte e cultivando recalques. Mas a verdade é que, em sala de aula, pouca piada eu admito. Via de regra, as piadas em relação a outrem servem como instrumento diminutivo: quando a gente quer diminuir algo ou alguém, tascamos o riso.

Pois bem.

Durante meus primeiros três anos de carreira, como professora ingressante na Prefeitura de São Paulo, trabalhei em quatro escolas diferentes. Nelas, tive a oportunidade de desenvolver projetos e colher informações que, embora visíveis, ainda não haviam, até então, aparecido nos sensos do IBGE.

Entre 2009 e 2010, executei projetos pedagógicos em escolas municipais visando à aplicação da lei 10639/03. O projeto “África Brasil”, tinha como objetivo não apenas experimentar possibilidades de fazer a lei funcionar, mas fazê-lo, especialmente, valorizando o continente africano e seus descendentes na diáspora, buscando desvincular a história afro-brasileira do período escravista.

Os diagnósticos feitos no âmbito do projeto anteciparam os resultados obtidos pelo Censo 2010 do IBGE, que revelaram o fato de a população negra (composta por pretos e pardos autodeclarados) já ser maioria em nosso país. Em ambas as escolas pesquisadas, mais de 60% dos alunos e alunas se declararam pretos ou pardos. Essa proporção mostrara-se ainda maior do que a detectada pelo IBGE, em que 50,07% das pessoas se identificaram como negras.

Minha singela pesquisa escolar revelou também que, embora a população afrodescendente fosse grande, pouco se sabia a respeito do continente africano: mais da metade dos alunos e alunas pensavam que a África era um país ou mesmo uma ilha miserável que englobava o território do Haiti. Além disso, as pessoas negras eram associadas à feiura, desonestidade e inferioridade, sendo, constantemente motivo de piadas. E isto explica o título deste artigo.

Acontece que, no cotidiano das escolas, nós educadoras e educadores, muitas vezes, incorremos em erros graves em nossa prática pedagógica, devido à nossa permanência no senso comum e à nossa resistência em abandoná-lo.

Um bom exemplo é o que ocorreu em uma dessas escolas onde o projeto foi desenvolvido:

durante uma reunião pedagógica foi exibido o filme Pax, de Paulo Munhoz (2005). A animação apresenta, de forma bastante crítica e bem humorada, a reunião de quatro líderes religiosos em busca do melhor caminho para a que se encontre paz mundial. Todos os personagens são homens brancos, exceto o representante do Islã, que surge pardo aos nossos olhos. As pessoas de pele preta, propriamente dita, aparecem no curta apenas em duas situações: a primeira vem na figura de uma copeira revestida com as cores que representam a unificação africana.

A empregada aparece vestida com uma minissaia de listras pretas, verdes, vermelhas e amarelas, uma miniblusa extremamente decotada, e usa, nos grossos lábios, um batom vermelho vivo, mesma cor da miniblusa. Ao aparecer, a sensual figura “tira a comunhão espiritual” dos religiosos, remetendo-os aos prazeres da carne, ao mundo “inferior”, onde habitariam os seres também inferiores. Por fim, a última aparição negra, nem mesmo é uma pessoa, é um espírito, o “Preto Véio”, que se “incorpora” ao padre.

Enquanto isso, na sala de reunião pedagógica, os expectadores sorriem ao longo do filme e quando aparecem as duas personagens negras (Preto Velho e empregada) o sorriso dos e das colegas tornase uma súbita gargalhada.

Findo o “programa”, em meio à socialização das impressões que o filme nos provocou, inadvertidamente, toco no assunto do racismo implícito no riso dos e das professoras (lembremos que nossos alunos também sentem que negros são motivos de piadas) e (pra que eu eu fui falar assim?!), afirmo que se decido passar um filme desses aos meus alunos, antes eu os advirto sobre o racismo implícito, explico que não devem achar graça e chego ao extremo de proibir que dêem risadas.

E a reunião nossa desaba em protestos, muxoxos e incompreensão.

É óbvio que “proibir” os risos parece uma coisa ridícula. Entretanto, crianças tendem a compreender as proibições, especialmente as bem fundamentadas, como imposição de limites, de modo que logo elas entendem que sua “liberdade de expressão”, sua vontade de extravasar o riso, muitas vezes, fere a dignidade de outras pessoas.

O racismo, a lei 10639 e a nossa prática pedagógica 

A questão da aplicação da lei 10639/03 não se esgota no ensino de conteúdos a ela relacionados, e a ausência de cuidados mínimos, do ponto de vista pedagógico, pode ser tão perigosa quanto o ato de entregar objetos cortantes aos alunos sem antes estabelecer os limites devidos, sem antes delimitar os objetivos e direcionar os usos de tais objetos.

Como um objeto cortante, o racismo fere e deixa marcas, provoca reações físicas e psicológicas que, em pessoas adultas, traduz-se em hipertensão e outras doenças amplamente associadas à população negra.

Nessa lógica, seguir o conselho de um dos professores, de primeiro passar o filme, deixar que todos riam e só depois explicitar que o riso, nesse caso, revela um racismo tão arraigado que é quase irreconhecível para quem dele não está sendo vítima equivaleria a deixar que as crianças se mutilem para depois, só depois, fazer os curativos.

Creio que nosso papel enquanto educadores e educadoras é, neste caso específico, proteger não apenas os e as educandas, mas toda a comunidade escolar, buscando caminhar em direção a um país mais justo, a uma infância livre de racismo.

É nosso dever trilhar caminhos políticos e pedagógicos que não apenas identifiquem as sutilezas e multifacetas do racismo, mas busquem superá-lo sem que, para tanto, tenhamos que expor, constranger, desproteger ainda mais as vítimas desse crime.

Assim, na sala de aula, se vamos falar de África, que seja, em primeiro lugar, a dos grandes impérios, dos reis e rainhas; se vamos explorar as questões econômicas, primeiro falemos sobre as riquezas do continente (desde os metais preciosos até obras de arte que ainda hoje geram lucro à comunidade internacional e pouco se revertem em benefícios aos e às africanas); falemos sobre as relações internacionais que interferem na qualidade de vida e na distribuição da riqueza de todos, na exploração do trabalho e depois, por último, relacionemos tudo isso à consequente miséria que assola parte do continente africano. Se quisermos falar de escravismo, que o foco repouse sobre a questão econômica implícita, sobre a exploração do trabalho para enriquecimento de poucos, e na resistência, em suas múltiplas formas, no sentido de reverter essa situação; enfim, se vamos falar de Negritude, de pessoas negras, exploremos primeiro nossa beleza (e não a sensualidade estereotipada), nossa capacidade de organização, nossas conquistas ao longo dos séculos e, por último, só por último, a nossa vitimização.

O racismo é uma ferida aberta no peito da nossa sociedade, no peito das nossas crianças. Nosso dever é tratar essa ferida e não cutuca-la até que sangre, como muitos de nós, inadvertidamente temos feito.

Dinha: professora e autora dos livros De passagem mas não a passeio (Global, 2008) e Onde escondemos o ouro (Ed. Me Parió Revolução, 2013)

 

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