Por Selma Rocha
A necessidade de que a educação pública tenha qualidade para que os alunos aprendam é, hoje, uma espécie de consenso nacional. Mas esse consenso é acompanhado de outro: é preciso formar os professores porque eles são os principais responsáveis pelo sucesso dos alunos em sala de aula.
É muito importante para o país o estabelecimento de um consenso em torno da ideia de que a educação pública deve ter qualidade para a maioria dos cidadãos, filhos e filhas de trabalhadores. Há alguns anos a perspectiva de qualidade da educação estava associada no imaginário da sociedade apenas às escolas privadas dirigidas à elite da sociedade. Aqui em São Paulo, essa situação ainda é uma forte realidade.
Superamos, felizmente, em termos da política nacional de educação, a visão que focalizava o ensino fundamental como objeto de investimentos, em vez de dar atenção ao conjunto da educação básica e ao ensino superior. Superamos também a ideia de que primeiro seria necessário colocar crianças e jovens na escola para depois tratar da qualidade da educação.
O governo federal, desenvolvendo efetivamente uma política educacional voltada a todos os níveis e modalidades de ensino, está contribuindo para a superação da falsa, perversa e histórica contraposição entre quantidade e qualidade.
Essa orientação de política educacional foi concretizada nas várias mudanças da Constituição e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação.
Bem, mas então o consenso deve se estabelecer em torno de qual concepção sobre qualidade?
O debate sobre essa questão é tão legítimo quanto necessário e urgente, considerada ainda a situação de desigualdade social no país e as profundas mudanças que ocorreram nos padrões e velocidade da comunicação e da informação, nas últimas duas décadas.
Em busca da compreensão desse significado na política educacional para os alunos da cidade de São Paulo encontrei no site da Secretaria Municipal de Educação, a seguinte indicação:
As escolas da Rede Municipal de Ensino de São Paulo trabalham, desde 2008, com as orientações curriculares, que são as expectativas do que os alunos precisam aprender a cada ano da educação infantil e do ensino fundamental. É a primeira vez que a cidade de São Paulo tem um currículo com conteúdos a serem ensinados em todas as escolas municipais.
E ainda:
No projeto curricular, a escola leva em conta sua realidade, os resultados de aproveitamento dos alunos e ajusta o que o aluno sabe ao que precisa aprender.
O que essa breve orientação revela?
Comecemos pelos alunos. Como se pode notar “o que os alunos precisam aprender” independe deles, isto é independe da maneira como brincam, simbolizam, representam e pensam; comparam, relacionam e abstraem; independe da maneira como se comunicam, independe de seus ritmos e tempos de sua forma de processar o conhecimento e de criar, de suas experiências culturais, afetivas e sociais.
Em verdade, as orientações curriculares e as avaliações são as medidas para qualquer aluno já que, supostamente, se conhece o que cada um deve aprender e como diz a passagem citada trata-se de “ajustar”.
Por isso, tem lugar os processos de recuperação paralela, as salas de aceleração e outras medidas que subtraem da escola o seu papel de investigação e criação. Assim, a função da escola é reduzida a de homogeneizar conhecimentos, como se desse procedimento dependesse a realização do direito à educação.
Esses procedimentos tornam muitas escolas chatas para os alunos e para os professores, e ajudam muitas vezes a produzir violência porque a reprodução de conteúdos dá origem a um ritual sem significado e maçante, que desmotiva e impede o prazer em buscar e construir conhecimento.
Na verdade, trata-se da recorrente e costumeira perspectiva da educação bancária que, como afirmou Paulo Freire, reduz o aluno à condição de depositário de informações e conceitos e rouba-lhe a condição de sujeito.
Em verdade a complexidade das relações do homem com a cultura, a natureza e a sociedade, o nível de desenvolvimento tecnológico e a velocidade, os sofisticados padrões de controle ideológico em nossa época desafiam a escola, como nunca, a se constituir em espaço de investigação e criação para que os estudantes desenvolvam capacidades em diferentes campos.
Vale dizer que, quando falamos em investigação na escola, não estamos nos referindo à pesquisa científica, que deve ser realizada na universidade.
Falamos sim da importância de que a escola observe e analise as necessidades e possibilidades de seus alunos, consideradas as várias fases do desenvolvimento de cada grupo e de cada um, isto é, vá além da identificação de problemas comportamentais (fato muito comum nos Conselhos de Classe), sociais, culturais e insuficiências cognitivas. A escola não pode tratar os alunos das famílias pobres como um poço de lacunas. Por isso, é preciso verificar e interpretar a experiência de cada aluno para fazer as escolhas conceituais e de conteúdo a partir de objetivos que impulsionem o desenvolvimento das crianças, jovens e adultos.
A escola não é o mero desaguadouro do conhecimento produzido nas instituições de pesquisa. Ela pode produzir investigação e conhecimento e alimentar a dúvida, a criação e a pesquisa entre as crianças e jovens. As chamadas orientações curriculares podem e devem ser referenciais, que não podem e não devem substituir as escolhas que a escola deve fazer.
Nesse contexto, o trabalho do educador é muito importante e a formação também. Mas nem uma coisa nem outra bastam isoladamente.
O trabalho de investigação e elaboração em uma escola não se faz, e não se deve fazer, apenas de maneira individual. É preciso reflexão e elaboração coletiva. É impossível pensar sozinho sobre a realidade de 30, 35 ou até 40 alunos e acertar sempre. Não há premiação que dê conta dessa questão, por isso ela é indevida. Transfere para o professor responsabilidades que ele nunca poderá cumprir sozinho e por isso não mede competência ou incompetência. A formação do educador, a depender de como for realizada, pode contribuir muito para esse processo, mas é indispensável que se crie uma dinâmica de gestão pedagógica que promova e incentive o trabalho coletivo nas escolas e a reflexão de maneira articulada com a Secretaria de Educação.
Creio que esse é o desafio. Nas próximas semanas, falarei mais sobre isso, inclusive, sobre experiências práticas que já aconteceram em São Paulo e em outras cidades.
Selma Rocha é mestre em História pela USP, doutoranda em história na mesma universidade, professora de história, consultora em Educação. Foi assessora da Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura de São Paulo entre 1989 e 1992, Secretária de Educação de Santo André e presidente da Fundação Santo Andre entre 1997 e 2000 e chefe de gabinete da Secretaria de Educação entre 2000 e 2001.
Fonte: SpressoSP