O primeiro parágrafo do novo Plano de Ação de Gênero de Belém (GAP) é uma determinação clara dirigida aos Estados Parte: “elevar sua ambição, bem como promover a igualdade de gênero, a transição justa da força de trabalho e a criação de trabalho decente e empregos de qualidade, de acordo com prioridades de desenvolvimento definidas nacionalmente”. Nesse sentido, o que pode ser entendido enquanto elevar a ambição e será que ambição foi realmente atendida no documento que insere a equidade de gênero nas políticas climáticas?
Para responder a isso, e avaliar os resultados desse do GAP, vale a pena recorrer ao papel estratégico que os documentos de submissões enviados antes dos processos negociais formais tem. Nesse sentido, me refiro tanto aos documentos enviados pelos Estados, mas também aos enviados pela sociedade civil. Vale destacar, que esses documentos são importantes por muitos motivos: subsidiam o trabalho dos co-facilitadores que mediam as negociações, orientam o secretariado da UNFCCC na organização de workshops, reuniões mandatadas e estratégias de comunicação, alimentam as constituencies, nesse caso em especial a Constituency de Gênero, grupo reconhecido pela UNFCCC que institucionaliza a participação da sociedade civil na agenda de gênero e clima e a partir disso influenciam as formulações políticas dos próprios países. Além disso, muitas submissões são apresentadas em nome de blocos inteiros de países, como G77+China, Grupo de Negociadores Africanos ou Grupo Sur, e servem de referência para análises do IPCC e para o trabalho de agências da ONU, como a ONU Mulheres. Todos esses atores e instrumentos formam esse ecossistema em que posições, análises e disputas se retroalimentam e estruturam o conteúdo das decisões que serão finalmente aprovadas em COPs, como o Plano de Ação de Gênero.
É dentro desse ecossistema que se tornou evidente, ao longo da preparação e da realização da COP30, a força da egrégora de mulheres que atuam na linha de frente das mudanças climáticas. Somos defensoras que protegem comunidades, famílias, culturas, biodiversidades, economias e modos de vida. Somos detentoras de tecnologias sociais, saberes e práticas ancestrais que asseguram a continuidade da vida mesmo em contextos marcados pelo aprofundamento dos impactos climáticos. Nós somos uma longa lista que não aceita ser reduzida: ribeirinhas, trabalhadoras informais, diplomatas, pesquisadoras, rezadeiras, mães de santo, periféricas, evangélicas, lésbicas, travestis, indígenas, jovens, meninas, quilombolas, migrantes, mulheres com deficiência, mães solo, mulheres em privação de liberdade afrodescendentes e tantas outras. Uma pluralidade de mulheres que se articula cotidianamente e que uniu esforços para nomear necessidades reais, denunciar desigualdades e influenciar políticas públicas em nível nacional e internacional.
Durante o processo preparatório desta COP, três espaços de articulação da sociedade civil foram particularmente importantes para nós de Geledés e neles estivemos diretamente envolvidas: o Grupo de Trabalho de Gênero do Observatório do Clima, que reuniu mulheres de diferentes regiões e campos de atuação; uma ampla articulação de mulheres brasileiras comprometidas com justiça climática, racial e de gênero; e todas as etapas preparatórias da Constituency de Gênero, que nesta COP contou com uma presença latino-americana fortalecida, resultado direto do fato de a COP ocorrer na América Latina. Esses espaços foram fundamentais para consolidar as demandas da sociedade civil brasileira, especialmente do Sul global. E é importante destacar que tais demandas foram fundamentais para qualificar à submissão oficial do Brasil, ou seja, a posição do Brasil sobre essa agenda, que apresentou elementos importantes para um GAP mais interseccional, como o fortalecimento de dados desagregados, o reconhecimento da economia do cuidado, a proteção de defensoras, a valorização de saberes tradicionais e de territórios, a criação de mecanismos de financiamento responsivos ao gênero e a garantia de participação qualificada das mulheres do Sul Global, especialmente as afrodescendentes.
O novo GAP atende parcialmente esse chamado, especialmente ao incorporar, pela primeira vez, o reconhecimento explícito de mulheres e meninas afrodescendentes como sujeitos da ação climática. Trata-se de um avanço histórico dentro da UNFCCC. Mencionar afrodescendentes significa reconhecer que desigualdades raciais estruturam de forma decisiva a vulnerabilidade climática. Esse passo abre possibilidades inéditas para disputar políticas públicas racialmente orientadas, monitoramento racializado, financiamento com foco em justiça racial e construção de indicadores que articulem raça, gênero e território.
Outro avanço relevante é a inclusão de um eixo específico para a proteção de defensoras de direitos ambientais. Em países como o Brasil, defensoras são em sua maioria quilombolas, indígenas, ribeirinhas, periféricas, marisqueiras, de terreiro, jovens e lideranças comunitárias, que enfrentam riscos específicos resultantes de racismo ambiental, criminalização e violência territorial. O GAP avança ao prever oficinas regionais, diretrizes de segurança, análises de risco e mecanismos de reporte. A proteção de defensoras torna-se institucionalizada, uma conquista que se soma a um resultado político relevante no Brasil: a ratificação do Acordo de Escazú no Senado brasileiro, instrumento central para a proteção de defensoras e defensores na América Latina.
Outro tema de extrema relevância global e nacional que aparece de forma inédita é a economia do cuidado, mencionada explicitamente no item 3.9. O GAP reconhece que os impactos climáticos recaem de forma desproporcional sobre mulheres responsáveis pelo cuidado, que no caso brasileiro são majoritariamente afrodescendentes, indígenas e periféricas. O cuidado, portanto, emerge como um indicador de desigualdade socioeconômica e racial que conecta gênero, território, mudanças climáticas e justiça social. Essa inclusão dialoga com debates globais presentes no HLPF, na CSW, na FfD e no G20, e também com esforços nacionais como a elaboração da Política Nacional de Cuidado e o Plano de Ações Integradas Mulheres e Clima. Certamente precisamos acompanhar minuciosamente esses avanços para garantir que não operem na lógica de universalização das mulheres, mas pelo contrário sejam capazes de atuar no enfrentamento das profundas desigualdades.
Além disso, é relevante destacar indicadores interseccionais indiretos que, embora não racializados, criam condições para identificar desigualdades estruturais. O mais relevante é o eixo de dados desagregados, que estabelece diálogos globais obrigatórios, capacitação nacional para desagregação, marcos de reporte e integração dos dados ao Global Stocktake. Esse desenho abre um campo estratégico para disputar dados racializados e territorializados, elementos historicamente ausentes na política climática. Outro indicador indireto é o monitoramento de quem recebe apoio financeiro para participar das COPs, esse pode ser um instrumento essencial para revelar desigualdades de acesso baseadas em raça, classe, território, idade e origem social. O mesmo vale para programas de mentoria e redes de negociadoras, que poderão ser observadas por recortes regionais e sociais.
A comunicação climática acessível é outro marcador interseccional presente no GAP. O plano determina que materiais sejam produzidos em formatos e linguagens acessíveis para rádios comunitárias, mídias locais e grupos linguísticos diversos, abrindo caminhos para alcançar mulheres de quilombos, aldeias, periferias urbanas e regiões rurais com acesso digital precário. Soma-se a isso o eixo de segurança, conduta e bem-estar, que estabelece mecanismos de denúncia e monitoramento contra assédio e violência. Mulheres negras, indígenas e trans são as que mais sofrem com hipersexualização, exclusões e outras violências que permeiam esses espaços; por isso a existência de padrões de conduta e ferramentas institucionais de proteção constitui um elemento crucial para fortalecer uma abordagem interseccional. O que nos resta disputar é que esses mecanismos também alcancem as violências raciais, racismo e discriminaçao racial as quais mulheres afrodescendentes são constantemente submetidas nesses espaços.
Ainda que esses avanços sejam relevantes, permanecem brechas importantes que precisam ser enfrentadas. A racialização dos dados continua ausente de forma explícita, embora o desenho do GAP permita disputá-la. O rastreamento territorial também é um campo de oportunidade, considerando que oficinas regionais, formações locais e implementação nacional podem ser monitoradas para garantir que alcancem comunidades urbanas, rurais, tradicionais, quilombolas, indígenas e periféricas. O eixo de financiamento segue como espaço central de disputa, especialmente porque o GAP prevê diálogos estruturados com GCF, GEF, Fundo de Adaptação e Fundo de Perdas e Danos e outros mecanismos que precisam ser pressionados para financiar iniciativas territorializadas e lideradas por mulheres racializadas e afetadas por múltiplas vulnerabilidades.
Em síntese, o novo GAP 2026–2034 não é plenamente interseccional, mas apresenta avanços significativos, tanto explícitos quanto indiretos, que nos aproximam de uma política climática global capaz de reconhecer desigualdades estruturais e incorporar justiça racial e de gênero como pilares de ação. A nomeação de mulheres afrodescendentes, a proteção de defensoras, a inclusão da economia do cuidado e a criação de mecanismos de dados, participação, comunicação e segurança configuram um conjunto de indicadores que expressam a força acumulada de décadas de incidência das organizações feministas negras, indígenas, quilombolas e periféricas. A disputa agora se desloca para a implementação: será necessário racializar dados, financiar organizações da base, proteger defensoras, territorializar ações e garantir meios materiais de participação. O GAP abriu as portas, precisamos garantir que elas permaneçam abertas e que possamos seguir esticando a corda da justiça climática com justiça racial e de gênero.
Leticia Leobet é cientista social formada em Antropologia pela Universidade Federal do Paraná. Atua como consultora internacional em Geledés — Instituto da Mulher Negra, com foco em Desenvolvimento Sustentável. Representa Geledés em mecanismos de participação da sociedade civil, tanto em nível nacional quanto internacional. Leticia é co-chair do Stakeholder Group de Afrodescendentes nas Nações Unidas e ativista do movimento negro.