“Baianidade é um conceito de domesticação”
PRECONCEITO – Em entrevista exclusiva, o professor Abdias do Nascimento fala sobre racismo, sua estrutura social e de como superá-lo.
Eu não tenho mais nada para falar sobre racismo, ou qualquer outro assunto relacionado”, disse Abdias do Nascimento, antes de sua entrevista ao Caderno 2, proferindo quase uma incongruência.
Do alto de seus 88 anos de luta contra o racismo, como gosta de frisar, Abdias – doutor honoris causa pelas universidades Federal da Bahia e do Estado do Rio de Janeiro, professor emérito pela Universidade de Nova Iorque, EUA, e ex-senador pelo Rio de Janeiro – é uma sumidade, que precisa ser sempre ouvida quando o tema é luta por igualdade social e conscientização da nação negra.
Em passagem pela Bahia para o lançamento da segunda edição de seu livro O Brasil na Mira do Pan-Africanismo (Editora da Ufba – Edufba), ocorrido na última quinta-feira, no Centro de Estudos Afro-Orientais – Ceao, Abdias clamou, em brados entusiastas, que “a raça negra irá tomar o poder e mudar o panorama brasileiro em todos os setores da vida nacional”.
Por estas e outras declarações de peso, ele foi ovacionado, não só pela comunidade negra soteropolitana presente no local, mas também pelo reitor da Ufba, Heonir Rocha, e pelo diretor do Ceao, Ubiratan Castro. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.
P – Como o senhor avaliaria a situação do negro no Brasil hoje?
R – São 88 anos “ralando” nessa luta, enfrentando situações de racismo, humilhação, perseguição. Em qualquer escola, até hoje, a criança negra é sempre menosprezada e humilhada com livros para crianças brancas, referências brancas, e isso é uma agressão. Agora, existem as denúncias e, timidamente, os meios estão dando espaço para atitudes contra o racismo, mas não há uma transformação total. Mas, através do movimento negro, estamos conseguindo uma reação.
P – E por que não há uma transformação total?
R – A comunidade negra está dopada. Por isso, ações contra o racismo não causam repercussão. Os negros não sabem os seus direitos, não sabem que fazendo certas reivindicações não estão pedindo nada além de seus direitos. Existe uma grande falta de informação e conscientização que faz com que o negro não apóie lutas a seu favor. Se tivéssemos a conscientização da comunidade negra, estaríamos muito além do que estamos hoje, já havíamos tomado o poder, não porque temos esta ambição, mas, por uma mera questão democrática, por sermos maioria.
P – O que falta à comunidade negra brasileira para se conscientizar?
R – Nós não conseguimos nos conscientizar, por culpa de mais de 400 anos de lavagem cerebral, da destituição de tudo. A família negra brasileira foi totalmente desintegrada. O negro foi destituído de sua personalidade humana, sem falar das coisas culturais. Isto foi um processo cruel de genocídio – porque genocídio também significa dizimar toda uma cultura, uma língua, e, sem esses instrumentos, o negro perdeu sua identidade. Até hoje, ele a está caçando, num grande esforço para resgatá-la. E um povo sem identidade é um povo fraco, sem meios de resistência capazes de superar a subjugação.
P – Como reverter esse quadro?
R – É preciso um ‘desrecalcamento’ da comunidade negra, que está assim por ser vítima de séculos de repressão. É difícil encontrar um negro ligeiramente consciente, que não esteja aterrorizado de ser vítima da violência ou perseguido. Para combater isso, não são só necessárias as leis para punir o racismo. É preciso a oportunidade de se inserir na comunidade, com igualdades de condições para ser vitorioso em qualquer situação.
P – O senhor fala de folclorização da cultura negra em seu livro. Folclorizar é uma coisa pejorativa?
R – O folclore não é uma coisa ruim, mas da forma como qualquer movimentação cultural do negro é tratada como folclore, já é uma humilhação. Folclore é, para as classes dominantes, algo que não tem estética, sem criatividade; quer dizer que o negro não tem capacidade criadora.
P – Como o senhor encara o conceito de baianidade?
R – O conceito de baianidade é um conceito de domesticação. Se fosse democrático, veríamos governantes negros na Bahia. Até na Câmara dos Vereadores não encontramos representações da raça. O conceito de baianidade é para a elite dos herdeiros dos senhores de engenho, da casta que sempre comanda a sociedade baiana.
P – O grito de Eu Sou Negão, dado por Gerônimo em 85/86, inaugurou uma nova fase da música baiana, mais voltada para a valorização da afro-descendência. Isso contribuiu com a luta pela igualdade social?
R – Vale botar sempre a cara para fora, mas é preciso não perder a relação com aquilo que é profundo e verdadeiro e o que deveria ser. Se o artista coloca seu trabalho na rua e afasta-se de seu núcleo principal, perde a relação não só com os valores sociais mas com a referência, para que tenha uma produção futura de mais autenticidade e relação com seu grupo artístico. Afinal, o artista é sempre um profeta de seu povo, anunciando os seus sonhos.