Quando foi publicado pela primeira vez, em 1992, às vésperas da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – a Rio 92 –, Há um Buraco Negro entre a Vida e a Morte já nascia como um texto insurgente. Escrita por Arnaldo Xavier e Nilza Iraci da Silva, e publicada por Geledés – Instituto da Mulher Negra em parceria com a Soweto – Organização Negra, a obra questionava o silêncio histórico sobre o papel do povo negro nas formulações ambientais e denunciava o racismo como estrutura que atravessa o próprio conceito de “desenvolvimento sustentável”.
Num tempo em que o discurso ecológico ainda era dominado por perspectivas eurocentradas e despolitizadas, Xavier e Iraci produziram uma reflexão radical: a de que a degradação ambiental e o extermínio da população negra fazem parte de um mesmo processo civilizatório. A obra articula a crítica ao capitalismo neoliberal, à colonialidade e à desigualdade racial com uma escrita profundamente poética, filosófica e política. O “buraco negro” do título é metáfora e diagnóstico — o espaço simbólico e material onde vidas negras são sistematicamente descartadas, entre a vida e a morte, entre a promessa de cidadania e a realidade da exclusão.
Reeditado em 2025, mais de três décadas depois, o livro reaparece como testemunho e farol. A nova edição, parte do trabalho do Centro de Documentação e Memória Institucional de Geledés, reafirma o compromisso da instituição em resgatar e difundir produções que antecederam em décadas. Às vésperas da COP30, que será realizada em novembro na Amazônia brasileira, as formulações presentes neste texto de 1992 adquirem nova potência: Xavier e Iraci anteciparam a noção de racismo ambiental e formularam, com rigor político e sensibilidade poética, o que hoje chamamos de justiça climática.
“Na ECO-92, denunciamos como as políticas de controle populacional e as práticas eugenistas atingiam as mulheres negras, muitas vítimas de esterilização forçada. Era preciso desconstruir a ideia de que os pobres eram culpados pela pobreza e pelo desequilíbrio ambiental. Geledés – Instituto da Mulher Negra teve um papel central nesse enfrentamento, denunciando essas violações e articulando uma crítica contundente à forma como a pobreza e a degradação ambiental vinham sendo tratadas como responsabilidades individuais.”, lembra Nilza Iraci Silva, coordenadora de Formação, Cuidado e Emancipação de Geledés.
O livro desafia as fronteiras entre teoria e militância, entre análise e manifesto. Ao propor o conceito de “Planejamento e Desenvolvimento Indiscriminável”, os autores questionam as lógicas excludentes do chamado “desenvolvimento sustentável”, denunciando a sua incapacidade de incluir as maiorias negras e pobres. A crítica se estende à própria estrutura da economia global, à violência estatal e ao apagamento das vozes negras nos debates internacionais sobre meio ambiente. O texto é um documento de época e, ao mesmo tempo, uma leitura ainda urgente: nada do que foi diagnosticado ali — do genocídio da juventude negra à mercantilização da natureza — deixou de ser atual.
“A realização da ECO-92 colocou no centro dos debates as relações entre população e meio ambiente, levando os diferentes setores sociais organizados a refletirem sobre a interdependência entre esses dois polos da equação e sobre a maneira como segmentos específicos da população afetam e são afetados pelo ambiente. Há anos denunciamos o racismo ambiental e como os processos de industrialização e urbanização impactam desproporcionalmente as comunidades negras, chamando atenção para a urgência de políticas públicas que integrem raça, gênero e meio ambiente.” — Nilza Iraci Silva, coordenadora de Formação, Cuidado e Emancipação de Geledés
Na apresentação desta segunda edição, Geledés sublinha um ponto essencial: é falsa a narrativa de que o movimento negro brasileiro não se envolveu com as pautas ambientais. Desde a ECO-92, intelectuais, artistas e ativistas negras e negros têm denunciado o impacto desigual da crise climática e da destruição ambiental sobre nossas comunidades. Essa reedição é, portanto, um gesto de reparação histórica — um modo de reinscrever as vozes negras no centro da produção de conhecimento e da disputa global por um outro modelo de mundo.
Ler Há um Buraco Negro entre a Vida e a Morte em 2025 é também um exercício de memória e de futuro. É reconhecer que as mesmas estruturas denunciadas há mais de trinta anos — racismo, desigualdade, exploração — seguem operando, mas que há também uma longa tradição de resistência e formulação negra que nunca se calou. Ao recolocar essa obra em circulação, Geledés homenageia Arnaldo Xavier, Nilza Iraci e toda uma geração que ousou pensar o Brasil a partir da vida e não da destruição.
Em tempos de transição ecológica e de urgência climática, o livro reaparece como um chamado à ação coletiva. A mensagem é clara: não há sustentabilidade possível em um país fundado sobre a morte e o silenciamento de corpos negros e indígenas. O futuro, para ser habitável, precisa ser antirracista, feminista e profundamente comprometido com a justiça ambiental.
Ao recolocar esta obra em circulação, honramos a memória e as formulações políticas de quem veio antes, assim como a luta de quem segue construindo caminhos no presente. Celebramos a coragem intelectual de seus autores e autoras e reafirmamos nosso compromisso com a vida, com as agendas de gênero, a dignidade, o combate ao racismo ambiental e a luta antirracista. Que esta nova edição reencontre as gerações que marcham, sonham e resistem — e siga iluminando caminhos para que a liberdade, a justiça e o direito a existir estejam vivos para todas.