‘A gente não pode naturalizar o sofrimento’, diz irmã de Matheusa Passareli, trans morta no Rio

Estudante foi morta – e provavelmente queimada – após ir a festa em uma favela, no que pode ter sido mais um crime de LGBT fobia no Brasil; sua irmã, Gabe Passareli, que também é trans, diz que é preciso aumentar a discussão sobre direitos humanos no país.

Por Lígia Mesquita Do G1

As irmãs Matheusa (à esq.) e Gabe Passareli (Foto: Robinson Barbosa)

Gabe e Matheusa Passareli Simões Vieira costumavam dizer desde a adolescência uma frase que resumiria seus destinos: “de Rio Bonito para o mundo”.

“A gente sempre soube que ia sair de Rio Bonito”, conta Gabe, prestes a completar 23 anos, sobre um dia deixar a cidade natal, no interior do Rio de Janeiro, e ir viver na capital do Estado. “Falávamos isso porque nosso desejo era buscar experiências. A vida tá no encontro com a diferença, em produzir algo novo desse encontro com o estranho.”

As irmãs negras, filhas de uma frentista e de um despachante de ônibus (funcionário que organiza a chegada e a saída dos veículos dos terminais), conseguiram deixar a cidade de 55 mil habitantes. Primeiro foi Gabe, a mais velha, que, em 2013, entrou no curso de Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em 2015, Matheusa também passou no vestibular e conseguiu uma vaga no curso de Artes Visuais na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

Nesses dois anos morando juntas no Rio, tornaram-se figuras conhecidas na cidade em que escolheram viver. Eram influenciadoras digitais e ativistas de identidade de gênero nas redes sociais.

As duas, que nasceram Gabriel e Matheus, se apresentavam como “bichas travestis” ou “transexuais não-binárias”, que não se identificam com o gênero masculino, nem o feminino. “É um lugar de intersecção entre ser homem e mulher. É uma questão mais de comportamento, de acabar com o ‘ele’ e ‘ela’, do que de mudança de sexo”, diz Gabe Passareli à BBC Brasil.

Na madrugada do último dia 29, Matheusa, ou Theusinha, como os amigos a chamavam, desapareceu após ir a uma festa no bairro Encantado, perto da favela Morro do 18, em Água Santa, na zona norte do Rio. Na segunda, 7, Gabe avisou aos amigos que a Polícia Civil carioca confirmou que Matheusa havia sido executada.

“Seu corpo, também segundo informações da Delegacia de Descoberta de Paradeiros (DDPA), foi queimado e poucas são as possibilidades de encontrarmos alguma materialidade, além das milhares que a Matheusa deixou em vida e que muito servirão para que possamos ressignificar a realidade brutal que estamos vivendo”, postou a irmã no Facebook.

atheusa, ou Theusinha, cursava o terceiro período do curso de artes visuais da UERJ e estava fazendo um curso na Escola de Artes do Parque Lage (Foto: Lucas Affonso)

Júri de traficantes

Matheusa, segundo a irmã, tinha começado a fazer tatuagens com uma técnica chamada “handpoked”, usando apenas agulha e tinta, sem máquina. Horas antes de ser morta, ela foi ao bairro do Encantado, na Zona Norte do Rio, para tatuar uma amiga que comemorava aniversário naquele dia.

Testemunhas relataram que ela se sentiu mal e deixou a festa falando coisas desconexas. No caminho, ainda segundo relatos, ela tirou a roupa.

De acordo com a delegada Ellen Souto, da Delegacia de Paradeiros, Matheusa foi parar no Morro do 18, a dois quilômetros da festa onde estava. Em entrevista ao telejornal “RJ TV”, Souto afirmou que a estudante estava nua quando um grupo de traficantes resolveu submetê-la a um julgamento informal. Em meio à situação, Matheusa parecia alheia e seguia dizendo frases desconexas. De acordo com a polícia, a reação de Matheusa teria precipitado a execução por parte dos traficantes.

“A Matheusa não se drogou voluntariamente (na festa). Isso foi algo que todas as pessoas que foram dar testemunho afirmaram. Mas que involuntariamente isso poderia ter sido uma questão. Podem ter colocado algo na bebida dela”, afirma Gabe.

Segundo ela, a irmã também não tinha histórico de doença psiquiátrica. “Ela nunca foi diagnosticada com surto psiquiátrico. Que ela estava em situação de crise e grande estresse ali (na festa), é fato. Alguma coisa aconteceu na festa, houve algum tipo de gatilho (para ela se comportar da maneira relatada).”

“Eu jamais na minha vida imaginei que sofreria algo desse tipo, de tamanha violência”, desabafa Gabe.

Bicha travesti

Gabe diz que, até o dia da morte de Matheusa, nenhuma das duas havia sofrido violência física ou ameaças.

A tensão, no entanto, fazia parte da vida das irmãs desde crianças, segundo Gabe, por elas não “se encaixarem no que as pessoas entedem como corpos de menino e de menina”.

Na adolescência, as duas contaram uma para a outra que eram gays – primeiro foi a mais velha e, depois, Matheusa. Um tempo depois, começaram a questionar o conceito de gênero, vendo que não se encaixavam em apenas um deles, passaram se identificar como “bichas travestis” e a adotar um visual fluido, cheio de referências femininas.

“Nunca sofremos agressão física, mas o olhar mata também, a violência verbal, o modo como alguém se aproxima de um outro corpo também mata. Sofremos sempre vários tipos de violência”, afirma Gabe.

Matheusa usava sua arte para questionar principalmente os conceitos de gênero e de raça – gostava de dizer que era uma “bicha preta”. Ela participava de dois coletivos performáticos LGBTs: o Seus Putos, formado na UERJ, que se define como um grupo “de ações estético-políticas e práticas teóricas de crítica às instituições de opressão e aos padrões normativos”, e o Xica Manicongo, movimento de arte, cultura, militância e ativismo.

A estudante adotou a performance como uma de suas principais maneiras de expressão artística no início da faculdade de artes visuais. Recentemente, havia participado de uma na feira SP-Arte, em São Paulo.

Matheusa estava iniciando uma pesquisa sobre “performance e linguagem queer” em um curso de formação artística da tradicional Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV), no Rio. Theusinha havia sido selecionada como aluna-bolsista da escola.

Gabe conta que a relação da irmã com a arte começou ainda na infância, em Rio Bonito, muito estimulada pela mãe. “A gente tinha nosso próprio bloco de Carnaval, fazíamos nossas coisas com liberdade e assim fomos sendo criados. E tudo foi encaixando num processo muito natural, fluido”, conta. “A gente não acredita que a arte esteja desvinculada da vida. A Matheusa sempre dizia que na arte era necessário extrapolar sempre o quadro.”

Antes entrar para a EAV, Matheusa havia feito um curso para ser arte-educadora e chegou a trabalhar por um período no Museu do Amanhã.

A estudante tentava sobreviver com uma bolsa de R$ 500 que recebia da universidade, mas o dinheiro não era suficiente.

Na última foto que postou no Instagram, pedia ajuda para encontrar um quarto para morar – ela e a irmã viviam com uma família em Vila Isabel.

Passarela

A moda também era uma das coisas de que gostava e com a qual se expressava. Recentemente, passou a fazer parte de uma agência de modelos chamada Squad, que se apresenta como representante de pessoas “fora do padrão”.

Em janeiro, Matheusa pisou na passarela da semana de moda paulistana Casa dos Criadores, exibindo uma roupa do estilista Fernando Cozendey. Entrou na passarela segura de si, usando um vestido preto transparente com uma tanga fio-dental visível por baixo – e uma plateia grande assistindo. Ela mais uma vez mostrava que tinha saído de Rio Bonito para o mundo.

Ela também participava de uma rede chamada Jacaré Moda, que trabalha potencializando a periferia do Rio por meio da moda.

Matheusa adorava moda e era contratada de uma agência de modelos; ela desfilou na semana Casa de Criadores, em SP (Foto: Instagram/Theusinha)

LGBTfobia e direitos humanos

Embora afirme não querer culpar ninguém ou fazer especulações sobre as investigações em andamento, Gabe diz que o assassinato da irmã é um atentado aos direitos humanos e que pode ter sido motivado por ódio à população LGBT e por racismo.

Um relatório do Grupo Gay da Bahia, que há 38 anos produz estatísticas sobre assassinatos de trans e gays no Brasil, registrou 445 homicídios desse tipo em 2017, um aumento de 30% em relação ao ano anterior. Os dados corroboram outros relatórios de entidades internacionais como a Transgender Europe, que apontam o Brasil como o campeão mundial de assassinatos de transexuais e travestis.

Por meio da assessoria de imprensa da Polícia Civil do Rio, a delegada Souto disse à BBC Brasil que não descarta qualquer motivação na execução de Matheusa, porque as investigações ainda não foram concluídas.

“Eu acho que quando fala de direitos humanos estamos falando de diferenças de personalidades, gênero, raça, sexualidade, capacidade. Não acho que o que aconteceu com o Matheus (ela chama a irmã tanto pelo nome de batismo quanto pelo adotado mais tarde) se configure apenas na questão da LGBTfobia. Envolve racismo, muitas coisas” e não pode ser tratado na superficialidade.

“Tiraram o maior direito dela, que era o de viver. Então, espero que sejam criados espaços para falar de direitos humanos”, diz ela, que espera que os criminosos sejam punidos.

Trecho de um fanzine que Matheusa fez como trabalho de faculdade em 2017, chamado ‘O Rio de Janeiro continua lindo e opressor’ (Foto: Reprodução/Gabe Passareli)

“O que aconteceu com o Matheus é mais um exemplo de que as violências sobre muitos corpos ainda estão acontecendo. E muitos corpos acabam sendo mais mortos dos que outros. Mas a gente não pode naturalizar o sofrimento. Eu não vou permitir que essa dor vire paralisia. Luto é verbo e eu continuo lutando.”

A irmã de Matheusa também diz que não tolerará qualquer tipo de comentário que pretenda questionar o comportamento dela ou tentar fazer algum tipo de associação ao crime como causa de sua morte. “Se isso vier a acontecer, essas pessoas serão responsabilizadas. Afinal, crime de ódio também é crime.”

Para Gabe, os assassinatos de Matheusa e Marielle Franco, no intervalo de dois meses no Rio, dialogam de uma certa maneira. “Se eu puder fazer uma interseção entre esses assassinatos é: por que figuras tão representativas na nossa atualidade continuam morrendo? Imagina a quantidade de mortos que nem chegam até a gente”, diz. “E tanto o corpo da Matheusa quanto o da Marielle são de negros. Mortes como essas só fazem a manutenção da escravidão e a tentantiva de extermínio do povo negro.”

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