Governo do Rio não cobra dívida da Nextel, Carrefour e Light, mas deixa universidades à míngua; corte de luz e água pode detonar equipamentos caros

As universidades públicas do Rio de Janeiro enfrentam, conjuntamente, talvez a maior de todas as crises. Salários atrasados, estrutura física dilapidada, alunos que desistem ou entram em depressão com a penúria.

Imagem: Reprodução/Vi o Mundo

Por Luiz Carlos Azenha Do Vi o Mundo

E, no entanto, elas foram concebidas para diminuir as terríveis desigualdades sociais das regiões em que se encontram, notadamente a Universidade Estadual do Norte Fluminense e o Centro Universitário da Zona Oeste.

São pioneiras das cotas raciais e sociais, quesito no qual deram aula à elitista Universidade “Bandeirante” de São Paulo (USP) — eu me sinto à vontade para falar, já que me formei nela.

Obviamente, a crise das três instituições não existe no vácuo. O Rio de Janeiro enfrenta uma gravíssima crise financeira, resultado de uma combinação de gastos desnecessários, renúncia fiscal, incúria administrativa e pura e simples corrupção.

Para entender melhor, fizemos uma série de perguntas a Marcos A. Pedlowski, professor associado do Laboratório de Estudos do Espaço Antrópico (LEEA) do Centro de Ciências do Homem (CCH) da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) e segundo vice-presidente da Associação de Docentes da UENF (Aduenf).

Ele é bacharel e mestre em Geografia pela UFRJ e PhD em “Environmental Design and Planning” pela Virginia Polytechnic Institute and State University (Virginia Tech).

Marcos tocou numa questão importante: desde a gestão de Moreira Franco como governador do Rio (1987-1991), com poucos hiatos, o Rio tem sido uma espécie de laboratório da política econômica neoliberal (privatização com ‘ajuste’).

O Gato Angorá da lista da Odebrecht, parceiro da Globo, fez um estrago que foi aprofundado desde então pelos governos do PMDB (do trio Cabral, Cunha e Picciani).

Viomundo: Como nossos leitores estão em todo o Brasil, você poderia explicar o sistema universitário público do Rio de Janeiro a eles?

Professor Marcos:  O Rio de Janeiro possui três universidades estaduais: a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) e o Centro Universitário da Zona Oeste (Uezo). Essas instituições possuem trajetórias relativamente distintas, tanto em termos de sua criação, como do perfil institucional.

A Uerj é a mais antiga e maior das três, já que foi criada em 1950 sob o nome Universidade do Distrito Federal (UDF), depois passando a se chamar Universidade do Rio de Janeiro (URJ) em 1958 e Universidade da Guanabara (UEG) em 1961, tendo finalmente adotado o nome atual em 1975.

A Uerj é uma universidade multicampi e está presente em sete municípios do Rio de Janeiro.

Antes da atual crise, a Uerj possuía em torno de 30.000 estudantes, divididos em cursos de graduação e pós-graduação.

Já a Universidade Estadual do Norte Fluminense foi criada em 1993 no município de Campos dos Goytacazes durante o segundo governo de Leonel Brizola, e também é multicampi, possuindo um campus avançado em Macaé e unidades experimentais espalhadas pelas regiões Norte e Noroeste Fluminense.

A Uenf possui um modelo institucional diferente da Uerj a partir de uma proposta desenvolvida por Darcy Ribeiro. Um exemplo disso é a inexistência de departamentos, sendo que todas as atividades de ensino, pesquisa e extensão são organizadas a partir de laboratórios de pesquisa.

A Uenf possui em torno de 5.000 estudantes. Mais de um terço deles em cursos de pós-graduação. É preciso lembrar que a vinda da Uenf para Campos dos Goytacazes tinha como um dos objetivos estratégicos gerar capital social numa região marcada por uma extrema desigualdade social, com índices de pobreza semelhantes aos encontrados nas regiões mais pobres do Nordeste.

Todos os avanços causados pela Uenf em termos de formação de graduados e pós-graduados demonstram quão importante a universidade tem sido para a porção norte do interior do Rio de Janeiro.

Já o Centro Universitário da Zona Oeste foi criado em 2005, possui em torno de 2.000 estudantes e está localizado no bairro de Campo Grande. Apesar de ser a menor das três instituições, a Uezo cumpre um papel importante na democratização ao ensino superior no Rio de Janeiro, na medida em que possibilita acesso ao ensino superior a jovens que habitam algumas das áreas mais pobres do Rio de Janeiro.

Viomundo: Qual a importância das universidades públicas para o Estado do Rio?

Professor Marcos: A importância das universidades estaduais está expressa na excelente colocação que a Uerj e a Uenf têm ocupado em vários rankings acadêmicos nacionais e internacionais, especialmente pela qualidade de suas atividades de ensino, pesquisa e extensão.

Além disso, quando se verifica que as universidades fluminenses são pioneiras no uso de cotas raciais e sociais para fins de democratização do acesso ao ensino superior público fica evidente o papel que elas ocuparam nesse debate em nível nacional.

No caso da Uenf, a universidade foi a primeira instituição de ensino superior brasileira a apenas contratar docentes que possuíssem títulos de doutor e em regime de Dedicação Exclusiva.

Como isso aconteceu ainda no início da década de 1990, há quem reclame essa primazia para si, mas de fato foi Darcy Ribeiro quem colocou essa questão em pauta, e os resultados obtidos pela Uenf demonstram a importância dessa ação pioneira.

Se olharmos de forma conjunta, as universidades estaduais do Rio de Janeiro cumprem um papel estratégico na democratização de oportunidades para camadas da população que não teriam essa oportunidade se não fosse por elas.

Viomundo: Houve alguma época em que elas foram adequadamente financiadas?

Professor Marcos: A resposta é não. Apesar da Constituição Estadual de 1990 assegurar a destinação de 6% da receita tributária líquida à Uerj, isto nunca foi cumprido a partir de várias ações diretas de inconstitucionalidade que foram impetradas por diferentes governadores, apenas com o intuito de procrastinar o cumprimento desta determinação constitucional.

Como docente da Uenf desde 1998, assisti a uma sucessão de períodos de “vacas gordas e magras”, dependendo de quem estivesse ocupando a posição de governador.

Entretanto, uma característica singular em todos esses períodos foi uma paulatina diminuição nos gastos com custeio e salários, e um favorecimento nos gastos com capital, principalmente na construção de novos edifícios, muitas vezes à revelia das reais necessidades da Uenf.

Essa situação acabou gerando uma forte dependência da captação de recursos de outras fontes para se tocar as atividades fim da instituição (i.e., ensino, pesquisa e extensão), principalmente de órgãos federais como o CNPq, a CAPES e a FINEP.

Este esquema funcionou bem durante os dois mandatos do ex-presidente Lula em que o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) existiu e possuía orçamentos razoáveis, mas já começou a causar problemas nos mandatos da presidente Dilma Rousseff, e ficou pior ainda com a chegada ao poder do presidente Michel Temer, quando houve uma forte redução na disponibilidade de verbas para a área de ciência e tecnologia a partir da extinção do MCT.

É a falta deste aporte de verbas federais que, combinada com a total inexistência de verbas estaduais, causou uma crise sem precedentes dentro das universidades estaduais no Rio de Janeiro. Para piorar ainda mais a situação, o governo do Rio de Janeiro praticamente zerou os desembolsos para a Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).

O fato de que nos primeiros seis meses de 2017, a Faperj pode executar apenas 9,5% do seu orçamento anual demonstra bem a precariedade a que se chegou. Esta situação gerou uma espécie de tempestade perfeita, que vem contribuindo para uma forte evasão de quadros científicos para outros estados brasileiros e até para o exterior.

Viomundo: É uma crise que vem de longe…

Professor Marcos: Como expliquei acima, essa crise vem sendo construída a partir de uma política de não cumprir o que determina a Constituição Estadual e da diminuição do valor real dos orçamentos aprovados pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro para as universidades.

Mas a verdade é que a situação piorou bastante já durante o segundo mandato do governador Sérgio Cabral, quando os repasses necessários para custear as universidades começaram a escassear.

Entretanto, com a chegada do governador Luiz Fernando Pezão à chefia do executivo estadual, no início de 2015, instalou-se o mais completo caos, já que nem o que foi aprovado pela Alerj passou a ser repassado para cobrir as despesas das universidades. E olhe que o aprovado pela Alerj não chega a 50% do que estimamos ser necessário para que a Uenf possa funcionar.

No nosso caso, o último mês em que as contas foram liquidadas pela Secretaria Estadual de Fazenda foi em outubro de 2015. Desde lá a universidade já acumulou mais de R$ 20 milhões de dívidas apenas com serviços de eletricidade, água, telefone, limpeza e segurança.

O pior é que não há sequer a perspectiva de regularização dos repasses, o que torna a situação ainda mais catastrófica.

Imagine o que vai acontecer com equipamentos de pesquisa, que foram adquiridos a custos milionários, se as concessionárias cortarem os serviços de eletricidade e água? Quem iria se responsabilizar por estas perdas materiais e também pelo que deixaria de ser produzido em termos de novas descobertas científicas?

Viomundo: É um ‘desastre’ de escolha dos governantes…

Professor Marcos: Com certeza, a crise decorre de opções feitas pelos governantes fluminenses e representa de certa forma a acumulação de decisões desastrosas ao longo do tempo. Tanto isto é verdade que não podemos dizer que foi este ou aquele governador que construiu esta crise, já que com raras exceções, o que temos tido é a perpetuação de estratégias de espoliação de recursos públicos em prol da acumulação privada de uma pequena parcela da população.

No caso específico dos investimentos em educação e saúde, a última década foi marcada no Rio de Janeiro por um desequilíbrio marcante no aporte dos recursos públicos em entes privados como as chamadas Organizações Sociais (OSs), que foram aquinhoadas com dezenas de bilhões, enquanto escolas e hospitais públicos eram deixados à própria sorte.

Viomundo: Qual é a origem da crise financeira do Rio de Janeiro e como ela se agravou ao longo dos anos?

Professor Marcos: A crise financeira que ai está vem sendo criada há pelo menos três décadas com uma sucessão de governos que gastam muito e mal, e não criaram bases sólidas para que o Rio de Janeiro conseguisse se manter com uma economia pujante.

O interessante é que, ao contrário do que se propala, não são os gastos com o funcionalismo que criaram o atual caos financeiro. O Rio de Janeiro, descontados os gastos com pagamentos de aposentadorias e pensões, é o estado que menos gasta com sua folha de pessoal no Brasil.

Aliás, o governo estadual só está tendo que gastar com aposentadorias e pensões porque realizou uma operação desastrosa para captar 3,1 bilhões de dólares no paraíso fiscal corporativo de Delaware que, para todos os fins, faliu o Rioprevidência, o fundo próprio de previdência dos servidores estaduais do Rio de Janeiro.

Além disso, se examinarmos a estrutura da dívida pública do Rio de Janeiro veremos que apenas nos últimos 10 anos houve um crescimento exponencial, muito por conta das obras públicas voltadas para três megaeventos esportivos (os Jogos Panamericanos de 2011, a Copa do Mundo de 2014, e os Jogos Olímpicos de Verão de 2016).

Ao contrário do que foi acordado, os gastos públicos foram bilionários, e todas as revelações que já foram feitas pela vertente fluminense da Operação Lava Jato demonstram que parte considerável destes gastos foi realizada para pagar propinas para membros do executivo estadual, começando pelo ex-governador Sérgio Cabral.

Por último, é importante dizer que a farra fiscal iniciada por Sérgio Cabral e continuada por Pezão já custou aos cofres estaduais mais de R$ 200 bilhões.

Esse montante é certamente, como já apontaram técnicos do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (TCE), determinante para o caos financeiro e orçamentário que se abateu sobre o Rio de Janeiro.

Viomundo: Qual o impacto que os gastos estaduais com a Copa e as Olimpíadas tiveram na crise?

Professor Marcos: Como já observei na resposta anterior, estes gastos são importantes para que possamos entender a equação complexa em que se transformou a dívida pública do estado do Rio de Janeiro.

Um primeiro problema é que até hoje não foi apresentado um balanço financeiro destes gastos, nem qual foi o custo futuros que os empréstimos contraídos para a realização das obras associadas à Copa do Mundo e aos Jogos Olímpicos.

E sem essa informação fica difícil sequer imaginar quão impactados ficarão os próximos governos estaduais em sua capacidade de organizar orçamentos que apontem para investimentos em áreas estratégicas como as de saúde e educação.

Viomundo: Os governos do Rio tem sido consistentes em aplicar a mesma política (privatização e ajuste) ou algum governo recente destoou disso?

Professor Marcos: Eu diria que o Rio de Janeiro tem sido um laboratório para políticas neoliberais desde o governo Moreira Franco no final de década de 1980. De lá para cá, mesmo com diferentes níveis e discursos, o que tivemos foi a aplicação da cartilha neoliberal. Tanto isto é verdade que os três últimos governadores estiveram ligados ao PMDB (Rosinha Garotinho, Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão) e o mesmo partido ocupa a presidência da Alerj de forma ininterrupta desde 1999.

A verdade é que provavelmente apenas no primeiro governo de Leonel Brizola (1983-1987) houve algum desvio de políticas que favoreceram processos de privatização e dos chamados ajustes fiscais.

Os demais vem aplicando de forma férrea uma cartilha que inclui a privatização de estatais e a aplicação de medidas que visam essencialmente reduzir gastos públicos em serviços voltados para as camadas mais pobres da população.

Não é à toa que a única estatal que merece algum tipo de cobiça é a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE), pois as demais joias da coroa já foram privatizadas no governo de Marcelo Alencar (1995-1999).

Viomundo: O governo Pezão sustenta que não há outra saída. Há?

Professor Marcos: Essa é uma alegação que não sobrevive a uma análise mínima dos fatos. Se levarmos em conta apenas a dívida ativa, veremos que o governo do Rio de Janeiro possui, segundo a Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro (PGE/RJ), algo em torno de R$ 77 bilhões para receber em impostos não pagos.

Curiosamente não se vê grande esforço por parte do governo do Rio de Janeiro para se cobrar essa fortuna toda. Por exemplo, apenas 3 empresas (Nextel, o supermercado Carrefour, e a concessionária de energia Light) acumulam dívidas de mais de R$ 1,7 bilhão, e o que se vê é uma completa leniência com essas empresas.

A mesma coisa acontece com a perpetuação de um modelo falido de isenções fiscais que se calcula já ultrapassou mais de R$ 200 bilhões desde 2007, quando Sérgio Cabral assumiu seu primeiro mandato.

Ao invés de regularizar a fiscalização das concessões feitas — que segundo o TCE estão totalmente fora de controle — , o governo Pezão conseguiu na justiça o direito de continuar concedendo novas isenções, que já resultaram em perdas bilionárias em termos de recolhimento de impostos.

Outro aspecto que está sendo totalmente negligenciado é o dos gastos com cargos comissionados dentro da estrutura de governo, que representam valores vultosos para a máquina pública.

Sequer a prometida diminuição no número de secretarias foi realizada por Luiz Fernando Pezão. Em suma, outras saídas que não o arrocho salarial e a diminuição de investimentos em serviços públicos existem. O que falta é disposição do governador em procurar outras saídas, que colocariam em xeque a sua política de privatização do Estado.

Além disso, o fato de que se está privatizando a CEDAE, uma das fontes de lucro do estado, é uma prova de que existem saídas alternativas.

Viomundo: Qual é o tratamento dado pela mídia local à crise das universidades? E à do Rio?

Professor Marcos: Eu considero que o tratamento dado pela mídia à crise das universidades do Rio de Janeiro tem sido um bom exemplo da forma com que se trataram tantas outras pautas.

Em suma, ainda que haja alguma cobertura, é parcial e incompleta, e não informa corretamente a sociedade fluminense sobre as reais causas da crise que está assolando não apenas as universidades, mas todo o serviço público estadual.

Além disso, a mídia corporativa tem cumprido um papel central na disseminação de informações distorcidas sobre os gastos das universidades, com uma opção clara pela espetacularização do drama enfrentado pelos servidores públicos que estão atravessando graves necessidades financeiras e pessoais por causa das prioridades estabelecidas pelo governo do Rio de Janeiro no uso das verbas públicas.

Particularmente no caso das universidades, a análise do custo social e econômico que a inviabilização destas instituições terá para o estado nas próximas décadas tem sido pífia.

Este tipo de tratamento da situação é pouco jornalístico, na medida em que se cria uma percepção de que essa crise é fruto do imponderável e não da opção política de governantes que preferiram, em muitos casos, saquear os cofres públicos em vez de cumprir seus mandatos de forma ilibada e atendendo aos interesses da maioria da população.

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