Greve dos entregadores expõe precarização do trabalho por aplicativos

Enviado por / FonteConectas

As medidas de isolamento social impostas pela pandemia de Covid-19 colocaram em evidência o trabalho dos entregadores de aplicativos e as condições a que estes trabalhadores e trabalhadoras estão submetidos, com jornadas extenuantes, critérios de remuneração pouco claros e completa ausência de direitos ou benefícios sociais. Por conta disso, neste 1º de julho acontece a primeira paralisação nacional dos entregadores de aplicativos.

Para avaliar as irregularidades deste modelo de trabalho à luz da legislação trabalhista e pensar alternativas que contemplem direitos aos trabalhadores, Conectas ouviu, separadamente, dois dos mais importantes pesquisadores brasileiros que estudam relações contemporâneas do trabalho. Ruy Braga é professor do departamento de sociologia da USP (Universidade de São Paulo) e autor do livro “A política do precariado” e Ricardo Antunes é professor titular de Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor do livro “O privilégio da servidão”.

Confira a entrevista a seguir:

Ricardo Antunes é sociólogo e professor emérito da Unicamp (foto: Sintrajud/divulgação)

Conectas – Trabalhadores ou empreendedores? Como os senhores definem as pessoas que estão vivendo ou ganhando recursos extras pelos aplicativos?

Ricardo Antunes – O “empreendedorismo” é uma categoria com forte sentido apologético e de manipulação. No fundo, significa dizer que você precisa criar as condições para fazer seu próprio negócio e, portanto, sobreviver. É uma categoria que transfere para o indivíduo a capacidade, a necessidade e a obrigação de se virar fora da legislação social do trabalho. O sentido mais nefasto do empreendedorismo é individualizar a classe trabalhadora e criar a ilusão de que ela sobrevive sozinha. Os trabalhadores e trabalhadoras destas plataformas deveriam ter o reconhecimento da sua condição de assalariamento como os demais. A sua conversão em “prestadores de serviço” serve para mascarar esta condição e fazer com que não tenham os direitos que, normalmente, o conjunto da classe trabalhadora tem como férias, 13º salário, descanso semanal, seguro saúde e etc.

Ruy Braga – No caso dos trabalhadores por aplicativo, eles claramente são trabalhadores subalternos e dependentes das empresas porque eles não têm autonomia. Eles não têm tempo livre que não tenha sido colonizado pelo tempo de trabalho. Como eles são dependentes, eles não exercem uma atividade profissional autônoma, eles não trabalham para si próprios. Eles trabalham para as empresas, então é um erro chamá-los de empreendedores. Na realidade eles são trabalhadores precários, ou seja, sem um contrato de trabalho, sem acesso a direitos trabalhistas, sem acesso a direitos previdenciários. Eles não podem ser considerados empreendedores.

Conectas – Quais os desafios trabalhistas que os aplicativos impõem à legislação trabalhista brasileira?

Ruy Braga pesquisa sociologia do trabalho e é professor do departamento de sociologia da FFLCH/USP (foto: divulgação/Retirada do site Conectas )

Ruy Braga – O que estas empresas de entrega têm feito é burlar a legislação trabalhista, ou seja, eles evitam pagar direitos trabalhistas e previdenciários. Consequentemente, uma das fontes principais da sua rentabilidade empresarial tem a ver com o fato de que elas exploram o trabalhador não reconhecendo este vínculo [empregatício]. Não à toa elas gastam tanto com advogados exatamente para elaborar contratos que minuciosamente evitem reconhecer esses trabalhadores como sendo trabalhadores subalternos e dependentes das empresas de aplicativos. Estas empresas fazem algo que é muito ameaçador para a sociedade. De um lado, elas reúnem tecnologias de ponta como monitoramento remoto, geolocalização, algoritmos bastante sofisticados de distribuição de pedidos, de acionamento de trabalhadores e de controle sobre estes trabalhadores – sim, porque estes trabalhadores são controlados por algoritmos — inteligência artificial, machine learning e tudo que existe de mais avançado e juntam com o que existe de mais atrasado, que é a espoliação de direitos trabalhistas e mercantilização do trabalho como se o trabalho fosse uma mercadoria como qualquer outra. Outro aspecto tem a ver com a construção ideológica do “empreendedor” como sendo alguém que trabalha para si, autônomo, que tem flexibilidade, liberdade – o que também não é correto. Eles são trabalhadores subalternos e dependentes dessas empresas. Inclusive o sistema de pontuação dessas empresas faz com que eles se vejam na obrigação de escolher um aplicativo, caso contrário eles não vão ter chamadas para percorrer ao longo da semana.

Ricardo Antunes – Utilizando-se do artifício de defini-los como “prestadores de serviços” esses aplicativos se utilizam de uma massa enorme de uma força de trabalho sobrante à margem da legislação social protetora do trabalho. O maior problema destes aplicativos é impor ritmos extenuantes de trabalho e condições de salário os quais os trabalhadores e trabalhadoras não têm nenhum controle porque são movidos por algoritmos. São os algoritmos que comandam o tempo, a jornada, a intensidade de trabalho. É imperioso que os aproximadamente 5 milhões de entregadores ou uberizados tenham uma legislação que reconheça sua condição de assalariado. Não é possível aceitar que uma empresa desligue o trabalhador e a trabalhadora sem explicar porquê. Seria muito fácil para o judiciário conferir os algoritmos dessas empresas e reconhecer quem trabalhou jornadas de seis, oito ou até 12 ou 14 horas por dia. Estes não apenas são assalariados como muitas vezes são superexplorados.

Conectas – Algum país no mundo já reconheceu vínculos trabalhistas entre entregadores e motoristas e as empresas de aplicativos? Se sim, quais direitos foram concedidos?

Ruy Braga – Sim, vários países. O caso mais notório é o estado da Califórnia, nos Estados Unidos, onde o Senado votou uma lei que foi sancionada pelo governador reconhecendo os motoristas de aplicativos como sendo trabalhadores subalternos e dependentes das empresas, consequentemente tendo acesso a direitos contratuais e trabalhistas, tendo que negociar coletivamente e assinar contratos. É muito importante dizer que a economia de aplicativos opera numa espécie de limbo jurídico, que é derivado da omissão do poder público. Quando o poder público decide regular, ele consegue claramente identificar os vínculos e laços de subalternidade e dependência e consequentemente podem caracterizar esses laços como sendo laços trabalhistas bastante típicos.

Ricardo Antunes – Este é um fenômeno muito recente. Uma década atrás essas empresas sequer existiam, mas como elas se expandiram intensamente, é evidente que agora se discuta sobre uma legislação social protetora do trabalho. O caso mais emblemático é do estado da Califórnia, nos Estados Unidos, que recentemente determinou que todos os trabalhadores com jornadas de trabalho intensas sejam considerados trabalhadores e, portanto, sujeitos à legislação social protetora do trabalho com direitos previstos, incluindo o de sindicalização. No Brasil, já houve julgamentos em primeira e em segunda instância que reconheceram a dependência e a condição de assalariamento. Mas como acontece em todo o judiciário do mundo, o que para um juiz do trabalho configura assalariamento, para outro sinaliza uma forma de empreendedorismo e parceria. Há manifestações favoráveis na Inglaterra, onde a UBER foi tolhida de funcionar recentemente pelo tribunal londrino. A mesma coisa vem ocorrendo na França, na Espanha, assim como nos países escandinavos que não permitem este tipo de empresa porque fere a legislação social protetora do trabalho.

Conectas – Qual seria o modelo ideal a ser aplicado no Brasil? Os contratos de trabalho devem ser regidos pela CLT ou por algum modelo intermediário?

Ricardo Antunes – Eu não falaria em modelo ideal, mas toda vez que você vende sua força de trabalho por jornadas que se figuram jornadas diárias equivalentes à jornada dos demais trabalhadores, é preciso reconhecer direitos como férias, 13º salário, descanso semanal, seguro saúde. O reconhecimento da condição de assalariado é o que se exige dessas empresas que valem bilhões e que alegam dificuldade financeira para pagar seus trabalhadores. Ora, se têm dificuldades financeiras para funcionar, que não funcionem. O que não pode é se enriquecer com mais intensidade às custas da burla da legislação social protetora do trabalho em países onde é baixo o reconhecimento dos direitos trabalhistas.

Ruy Braga – Considero que deveria haver o reconhecimento pela CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas). A CLT é suficientemente flexível para acolher esses trabalhadores com essas características que a gente observa na economia de aplicativos. É possível pensar formas alternativas depois de novembro de 2017. Com a reforma trabalhista, fala-se muito do contrato de trabalho intermitente, que poderia ser uma alternativa intermediária ou espécie de transição numa direção um pouco mais protetiva num futuro. É possível imaginar várias formas contratuais. O que não é possível imaginar é esse limbo, esse “salve-se quem puder” que hoje se observa na economia de plataformas, em especial aquela que é praticada no Brasil. O contrato CLT prevê e é possível identificar e remunerar por intermédio da lei do salário mínimo, ter uma base de cálculo das corridas, das jornadas. É necessário regular a jornada de trabalho para garantir o descanso remunerado. É necessário incorporar estes trabalhadores ao sistema protetivo, em especial à seguridade pública, e é muito importante que a gente consiga, de alguma maneira, caracterizar este vínculo como sendo um vínculo de trabalho subalterno e dependente.

Conectas – Os aplicativos representam uma nova economia e uma oportunidade de gerar trabalho e renda. Uma regulamentação poderia arruinar este modelo?

Ruy Braga – Estas empresas estão faturando milhões ao ano, estão remunerando seus acionistas de uma forma bastante generosa. É uma falácia achar que uma regulação mínima de um tipo de trabalho superexplorado possa eventualmente arruinar uma empresa. Se for arruinar a empresa para pagar o mínimo que prevê a legislação trabalhista então este modelo de negócio não se sustenta. É um modelo irresponsável, um modelo, vamos dizer assim, que não é nada inovador, nem razoável para uma economia minimamente saudável.

Ricardo Antunes – Se uma empresa utiliza o trabalho de homens e mulheres para aumentar seus lucros e enriquecimento privado, é imprescindível a existência de uma legislação social protetora do trabalho. A ideia de que oferecer direitos pode arruinar a empresa é nefasta porque cria a mensagem de que, para uma empresa ser rentável, precisamos ter uma massa de trabalhadores escravizados. No meu livro “O privilégio da servidão” eu tratei deste fenômeno e disse que nós estamos vivendo uma forma que se assemelha a um tipo de escravidão digital. São empresas operando com maquinário tecno-científico-informacional muito desenvolvido e que se utilizam de relações pretéritas de trabalho, com jornadas extenuantes, ritmos alucinantes, com acidentes, mortes e tantos outros elementos nefastos.

Conectas – Como o senhor enxerga a greve dos entregadores do 1º de julho?

Ricardo Antunes – A luta por direitos depende fundamentalmente da capacidade de mobilização dos trabalhadores e trabalhadoras. Já há desenhos de organização de uma associação mundial de trabalhadores uberizados. Em maio de 2019 houve uma tentativa de greve geral dos trabalhadores uberizados. A paralização programada para este 1º de julho no Brasil é muito importante porque exige que alguns direitos sejam garantidos. A paralização é uma forma de dizer que os trabalhadores não aceitam redução da jornada de trabalho, não aceitam que sejam demitidos unilateralmente. Isso cria condições sociais para reconhecer sua situação de assalariamento.

Ruy Braga – É uma primeira forma, um primeiro momento, uma primeira experiência de organização de trabalhadores de entrega de aplicativos, o que é muito positivo. Tem características inovadoras do ponto de vista da auto-organização, que a gente tem verificado mundo afora, em especial essa forma de organização apoiada na ação direta utilizando o WhatsApp, as redes sociais, por fora dos sindicatos, mas colhendo em muitos casos o apoio dos sindicatos de motociclistas. Tem todos os elementos que fazem com que este movimento de fato seja alinhado com as tendências mais contemporâneas de organização destes trabalhadores precários que a gente observa mundo afora.

 

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