Homofobia – Exceção excessiva por Bruno Almeida

Quando escrevo não é a tinta que vejo no papel; são gotas de sangue.

Foi uma descida ao inferno. Como se naquele domingo de 14 de outubro, as escadas rolantes da estação de metrô República conduzissem a uma metáfora, uma imagem e uma ideia do espírito de nossa época. A madrugada tinha sido intensa para aquelas beshas – utilizo o termo besha para abarcar as múltiplas especificidades dos LGBT. Algumas desciam as escadas de mãos dadas, beijando-se, outras apenas bocejavam de sono. O grupo de funcionári@s da estação olhava atônito, desconfiado, boquiaberto e curioso, um casal de meninos que ousou desafiar o Tempo da normalidade. O relógio marcava 5h30 am. O olhar marcou uma insinuação de um desfecho provável. É claro que, como militante e ativista dos Direitos Humanos a cena representou uma possibilidade de que estas resistências resultem em formas de rupturas e desenhos significativos em paisagens mortas.

Esperando o trem na plataforma: eu, um casal de meninas, uma besha e à frente, um rapaz de uns vinte e poucos anos. Estava incomodado com a presença destes seres abjetos, que resolvem sair pelas ruas possibilitando feixes de liberdades. Um direito: avançou os passos e foi apanhar o trem em outra fila. Não sei por qual motivo – talvez a simpatia das margens bastasse para explicar isto – eu e a besha iniciamos o assunto sobre a onda de conservadorismo na cidade de São Paulo. Uma das garotas – amiga deste meu interlocutor – disse: “Imagine, estas coisas não acontecem. Temos total liberdade”. Meu ceticismo foi recebido pela parada do trem na plataforma. Eu e a besha continuamos conversando. Ao entrar no vagão, lembro-me que o seu discurso mostrava a questão da cidadania LGBT na Argentina em contraposição aos percalços – apesar dos avanços – no Brasil. Parece que esta fala, audível à tod@s @s passageir@s empunhou no ar uma barra de ferro. Com olhar de quem desejava ver o sangue como custo da própria vida, o garoto sentado no chão do vagão incitou o ódio: “Bichas dos infernos. Vocês são abominações. Vermes. Coisas do capeta. Vou enfiar essa barra de ferro no cu de vocês”. Os passageiros assustados, anestesiados se entreolham. A besha provocativa demonstra sinal de não fraqueza, de ausência de medo perante o seu possível agressor. Termina aqui o tom literal de “mais uma história” e iniciam-se os fatos, ou a nervura que compõe a nossa sociedade brasileira, a violência.

Ora, esse garoto é uma construção, uma potência de violência, conduzida pelo discurso do ódio. Suas palavras – abominações, vermes, inferno, coisa do capeta – são as reproduções latentes de religiosos conservadores como Silas Malafaia, Edir Macedo e outros que, mesmo não carregando nas mãos os crucifixos manchados de sangue, proferem suas “verdades” pelo caminho do extermínio da “raça maldita”. Mesmo com todo o olhar do agressor focado apenas no meu companheiro de injúria, a imagem que eu via neste Outro era minha. Espelho que reflete. O olhar da injúria alcançava em mim a sua potencialidade destruidora. Fiz o que jamais faria em circunstâncias opostas, permeadas de todos os possíveis heroísmos de um militante. Pedi ao meu amigo para que não provocasse, para que calasse a boca e ficasse mudo. Era como se, pedindo isto, visse em minha frente não mais aquele jovem que voltava para a casa depois de uma noite de liberdade, mas sim, um sujeito que se despia de sua identidade daquele momento. A brutalidade da injúria é como uma mão que violentamente despe uma parte de nosso corpo. O corpo exposto recebia então, mais uma ameaça verbal e um ódio transmutado em forma de cuspe. O sangue subiu à minha cabeça. Entendi, pela primeira vez, que o instinto – essa coisa que a Cultura nos retirou – pode ser racional, frio, calculista. Trabalhei com duas hipóteses. @s passageir@s não se movimentaram por que estamos acostumados e anestesiados a presenciar discursos de ódio diariamente na espetacularização da mídia, do Estado e da Igreja. Aliás, presenciá-los e proferi-los. Minha dor foi tamanha que calculei por uns instantes – com o olhar que não ousa olhar – a distância entre meus pés e o jovem. Bastava um empurrão para tomar a barra de ferro e silenciar com uma estocada na garganta o meu opressor. Mas é isto que está em jogo?

Ao negar a isonomia de direitos para as populações e grupos historicamente marginalizados, abjetos e difamados – LGBT, mulheres, negros, índios, ciganos, judeus. A lista é longa… – o Estado que se pretende constitucionalmente, enquanto Democracia, de Direito torna-se, em sua espessura, um Estado de exceção. Para uma população que parece não ter “direitos a ter direitos” (Hannah Arendt) essa ausência corresponde a uma violência. A mesma lógica confunde-se, anarquiza-se e transforma-se em princípio político-militante no Estado de exceção. A violência da ausência do Estado permite às figuras como a do agressor utilizar-se da mesma lógica excludente, não pelo uso da força da razão, mas pela razão da força. Dissolve-se assim, aquilo que constitui a gênese do que é a Democracia. Tomamos como ponto de partida a ideia de que “a política (desde o ato cotidiano até o ato institucional) é a continuação da guerra por outros meios” (Foucault).

Talvez isto explique, além da historicidade do preconceito, o motivo da “abominação” permanente contra os LGBT? Quantos casos de agressores heterofobos existem em nossa sociedade? Excluídos da lógica de aparente normalidade, que se utiliza duas vezes da violência, estaríamos aptos a ingressar neste mesmo dispositivo? Ou para sair do Estado de exceção utilizaremos os nossos corpos como textos e simbologias de resistências poéticas e antídotos da brutalidade?

Como imagem controversa e paradoxal em nossa sociedade, estes sujeitos que transitam como nômades em seus desejos e liberdades causam o terror, o ódio, a injúria e a violência naqueles que acreditam que os direitos sejam privilégios estáticos, e que não pressupõem que a Democracia é a arte dialógica do movimento, da mudança e da abertura de novas possibilidades. Se a sexualidade ainda é interdita e suscita a violência nos reacionários, é por que, no limite, o que está em jogo nesta mecânica positivista é preservação de um grupo, de uma espécie (no sentido biológico mesmo). Essa mesma política que pressupõe, mas não exerce, o direito de ter direitos trouxe consigo o direito sobre a vida do outro. Ao se vincular com a violência na prática da exceção, ela retira de si a responsabilidade em proteger ou desproteger, deixando assim, margens indefinidas de exceções excessivas. Escrevo este texto relembrando que, após a saída do vagão, a única reação que esbocei, antes de avisar ao metrô que nada fez, foi chorar. As lágrimas se transformaram em indignação de “até quando?”. Ao respirar a perplexidade lembrei-me: Stonewall aconteceu há dois segundos…

Brunno Almeida Maia é Bacharelando em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).

Fonte: Blog Bruno Almeida

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