I Mostra de Arte e Cultura Afro-Brasileira e Indígena

CURADORES: Joselene de Souza Pinto Rubem Pereira de Àvila

O Objetivo desta primeira edição da “I Mostra de Arte e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” é enfocar a cultura material através da diversidade de itens que fazem parte do dia-a dia desses povos, buscando diferentes soluções cênicas para retratar a beleza estética e a funcionalidade que cada povo imprimiu os seus artefatos.

Sem dúvida a contribuição desses povos à cultura nacional é um subproduto importante para nos entendermos como brasileiros.

O que tem em comum a história dos povos ameríndios e africanos na América?

Poderíamos pensar que os povos da África fossem os “índios africanos”, já que, do mesmo modo que os ameríndios habitavam o continente há milhares de anos. Afinal, foi na África que o Homo Sapiens nasceu.

Em comum, uma história de dominação por invasores que chamamos, de modo amistoso, de colonizadores, europeus que, com tecnologia mais avançada impuseram religião, língua, cultura e, num extremo de selvageria, a escravidão, esse modelo de economia aviltante.

Se, para os nossos índios, esse domínio não obteve sucesso – mais porque eles não admitiam a prepotência, o domínio de um homem por outro homem, menos que pela indolência que a história perpetuou – para os negros africanos ele se materializou de modo cruel, por décadas a fio, até a abolição, que os jogou nas ruas e estradas do país, como bens inservíveis.

Em comum, a perda de suas raízes imemoriais. Se para os indígenas, arrancados das suas aldeias para o trabalho escravo, ainda havia a possibilidade de fuga para terras distantes, que eles bem conheciam e dominavam, para os africanos, também arrancados de suas aldeias, embarcados em navios negreiros e aportados numa terra estranha, o retorno às suas origens era impossível.

Assim, ambos os povos se miscigenaram com os colonizadores e mesmo entre si, constituindo duas das mais importantes matrizes da formação do “povo brasileiro”, contribuindo profundamente na cultura, arte, religião, língua, culinária e tantos outros aspectos da nossa formação enquanto brasileiros.

Se quisermos nos definir como povo, não podemos negar que corre em nossas veias muito da África negra, dos ameríndios, numa miscigenação que enriquece a nossa cultura e modo de ser.

A Arte conjugada com a vida

Sempre se disse que “objeto de arte” no modo de ver do europeu – que é um objeto criado mais para exibir sua beleza do que sua utilidade – não existe na África. Ainda porque em nenhum lugar do mundo a arte de confecção de objetos e o amor pela forma estética estão tão presente no cotidiano como naquele vasto continente.

Um senso de estética é evidente em todas as áreas de atividades culturais africanas, e não somente nos objetos rituais, esculturas que primeiro chamaram a atenção e despertaram o interesse dos amantes da arte.

Alicerçados em crenças ancestrais e inspiradas por sentimentos religiosos profundos, essas estátuas e máscaras naturalmente provocou uma grande impressão nos artistas ocidentais, que também perceberam o profundo significado desses objetos, a sensibilidade da dimensão psicológica que eles apresentam.

Não é a toa que esculturas e máscaras se tornaram as “estrelas” dos objetos da cultura africana.

Mas todos os outros artefatos – aqueles usados no cotidiano, os objetos discretos e construídos manualmente que enriqueciam os mais prosaicos momentos da vida, os têxteis, ornamentações, armas, os artefatos usados em festas e celebrações – esses inúmeros objetos demonstram uma
sensibilidade estética extraordinária bem acima de seus, às vezes, humildes propósitos.

Comparados às “estrelas”, eles se tornaram bem mais que “coadjuvantes”.

A sensibilidade estética no caso de objetos utilitários pode aparecer em dois níveis. Ela se mostra primeiro na elegância da modelação e formas, que, neles propiciam um simples prazer visual sem recorrer à ornamentação. Essa elegância, por outro lado, não é um fim em si, mas enfatiza a funcionalidade do objeto pela subordinação e adaptação dele para o fim a que se destina. Simples e puras formas são projetadas com um senso de beleza único e adaptadas à sensibilidade e ao domínio da técnica do artista.

Esta ornamentação formal e bela é às vezes um distintivo do estatus do possuidor. Não surpreende, por outro lado, que nenhum esforço é demais para suprir chefes, reis e suas cortes com atributos de prestígio.

Feitos manualmente por artesãos mestres ou artistas profissionais, trabalhando com materiais valiosos como metal, marfim e contas, seu propósito primário é mostrar sem nenhuma discrição a saúde e hierarquia dos proprietários. Por outro lado, esses objetos majestosos podem servir como modelos para os artistas e artesãos do povo comum e certamente estimulam seu desenvolvimento.

Os objetos da corte e os objetos do povo têm ambos os lugares nesta exposição. Eles devem ser admirados principalmente à luz de suas  qualidades estéticas. Detalhes etnológicos, necessários em alguns casos, serão reduzidos ao mínimo. O nosso principal desejo é definir as necessidades diárias que esses objetos atendem, e os tipos de solução – técnica, formal ou decorativa – que são encontrados na sua confecção.

As simples e fundamentais realidades da vida no dia-a-dia são o que esta exposição se propõe. Cada capítulo apresenta um grupo ou família de objetos confeccionados para satisfazer as necessidades básicas do comportamento humano em um ambiente natural: mobiliário doméstico, utensílios de servir para grandes famílias, roupas, adornos, tecidos, defesa do direito à vida e demonstração de poder, os prazeres da sociedade e a confirmação simbólica da autoridade governando o grupo.

Esses objetos criados para satisfazer essas necessidades serão apresentados no contexto humano em que se tornaram necessários e as  condições de vida que influenciaram o seu desenvolvimento.

 

O cotidiano dos povos da África e dos indígenas brasileiros – mais do que diferenças, muita coisa em comum

O cotidiano desses povos tem características peculiares que permitem, ao lado da língua, mitos, história oral ou escrita, construírem uma identidade própria, que se renova e reafirma no dia-adia, fator de agregação e estimulação.

Povos da África e ameríndios têm muito mais em comum do que possamos imaginar, embora algumas diferenças essenciais também existam.
O que vem a ser o cotidiano de povos primitivos, dependentes do que a natureza lhes fornece sazonalmente ou não, numa convivência que deve ser, naturalmente, pacífica e preservadora, um fator inerente à sua sobrevivência enquanto povo.

Momentos importantes, tais como os necessários à subsistência – prover alimentos, fabricar utensílios para o transporte e armazenagem de provisões, utensílios para cozer, servir, aqueles específicos para o ritual das refeições, equipamentos para obter o fogo e propiciar o cozimento
dos alimentos, outros como as festividades e celebrações – máscaras, vestimentas, instrumentos musicais, adornos plumários – outros  momentos como o dormir, o repouso, o descanso, ou aqueles para sentá-lo ou definir hierarquias, o nascimento e morte, todos esses, e mais outros, necessitam de um mosaico de objetos que, mesmo tendo a mesma função, se diferenciam grupo a grupo, enriquecendo os dois  continentes dum modo que, inclusive, despertou, ao longo dos séculos, o interesse de viajantes, antropólogos, etnólogos, artistas e cientistas.

Vários segmentos do dia-a-dia serão enfocados nesta Mostra, de modo a demonstrar a funcionalidade dos objetos, aliada a um profundo senso estético, possibilitando a comparação do que os povos da África e os povos da América têm em comum ou as diferenças entre as suas culturas materiais.

Os bancos

Povos indígenas e africanos confeccionam bancos de sentar, imprimindo à madeira formas, figuras, grafismos, de tal modo que essas peças são, efetivamente, esculturas, com um profundo senso de estética.

Mas há diferenças fundamentais entre os bancos da África e os do Brasil.

Lá, os bancos são objetos de prestígio, marcadores hierárquicos, conferindo a seu possuidor relevância dentro da comunidade.
Aqui, os bancos são de uso exclusivo masculino, preferencialmente dos pajés, constituindo-se num meio de transporte entre o mundo dos vivos e o dos espíritos.

Quanto às formas, são comuns bancos indígenas zoomorfos, estilizando animais da fauna com a qual os índios têm contato diário.

Os grafismos são, também, comuns nos bancos brasileiros, sendo possível identificar o grupo que o confeccionou através da simples visualização de seus desenhos geométricos.

Uma diferença notável: os povos da África também confeccionam como mobiliário para sentar,tamboretes e cadeiras, inexistentes na América.

 

As máscaras

Toda celebração requer o uso de vestimentas e máscaras. Os povos da África e Brasil não fogem a esta regra.

O elemento mágico que se instala no momento em que o cortejo mascarado dá entrada no recinto da festividade é único.

Há algumas diferenças fundamentais entre as máscaras africanas e as dos nossos índios.

Primeiro, o requinte de acabamento das máscaras da África inexiste nas dos ameríndios. As primeiras utilizam na quase maioria a madeira como elemento fixador das feições da máscara, sendo, portanto, mais perenes. As segundas utilizam palha, fibras vegetais e penas, sendo por isso mais efêmeras.

Segundo, pelas dimensões, bastante avantajadas em algumas ameríndias, de pequenas dimensões às vezes nas africanas.

Outra característica ligada às máscaras dos indígenas brasileiros é o cuidado com que são guardadas. Algumas tribos têm nas aldeias uma construção exclusiva para esse armazenamento, usualmente chamada de “casa dos homens”.

Máscaras são objetos de uso essencialmente masculino, sendo vedado às mulheres até mesmo a sua visão. Isto vale tanto para a África quanto para a América.

 

Os utensílios para a alimentação

Os índios brasileiros utilizam, na sua maioria, panelas de barro para o cozimento dos alimentos.

Há uma delas que merece destaque: a bijuzeira.

Trata-se de uma peça circular, achatada, sobre a qual a massa de mandioca ralada, lavada, seca ao sol e livre do veneno que a impregna, é moldada na forma de uma “pizza” e manuseada com alguns apetrechos, de tal modo a ser levemente tostada em ambos os lados. Come-se o biju resultante com peixe moqueado, pimenta, cortando-se simplesmente pedaços irregulares e recheando-os com esses petiscos.
Os africanos também se utilizam de panelas de barro para o beneficiamento dos alimentos, mesmo embora, como aqui, o apelo das panelas de alumínio ou ágata esteja diminuindo a produção artesanal dessas peças.

Nossos indígenas comem com as mãos, do mesmo modo que na África (lá, sempre com a mão direita).

Mas, na África, são usados talheres de madeira ou marfim bastante trabalhados, uma herança, talvez, dos colonizadores europeus.
Cabaças são utilizadas com muita freqüência, tanto na África quanto na América. É o recipiente ideal para o transporte e o beber de líquidos. Nesse particular, no Brasil, são muito freqüentes os mingaus de mandioca, milho, pequi e as beberagens à base de mandioca, onde as cuias entram como utensílio ideal de uso coletivo.

 

A tecelagem

Índios no Brasil, ao contrário da África, não utilizam vestimentas tecidas, andando nus nas aldeias e pelas matas.

Há exceções notáveis: no Acre, Kaxinawá e Ashaninka – pela influência dos povos andinos de quem são parentes – e no Pará, os Araweté, tecem belíssimas peças em algodão tinto com extratos vegetais ou minerais.

Já na África, os têxteis têm presença constante e abrangente. Belíssimos tecidos, com grafismos em cores naturais e chamativas, são confeccionados em todas as regiões, compondo vestimentas exuberantes, sendo, inclusive, objeto de escambo nas feiras e mercados.

Mas, há um artefato essencialmente indígena que teve grande penetração na cultura nacional: a rede de dormir!

Invenção indígena, de uso e transporte fácil, a rede de dormir é usada na maior parte do país, mesmo que apetrecho de lazer.

 

Instrumentos musicais

A música é um elemento cultural inerente a todos os povos. Isto também é verdade quando se olha para as duas culturas objeto desta Mostra, especialmente se pensarmos o quanto cada uma dessas matrizes de formação do nosso povo influenciou nossa musicalidade.

A herança indígena nos legou o maracá, instrumento por excelência dos ameríndios. Uma cabaça, adornada ou não com grafismos incisos ou pintada de urucum, pedras ou conchas no seu interior, um cabo para a empunhadura, e temos aí esse instrumento, de uso difundido por todo o
Brasil.

Tambores, com corpo de tronco de árvore e pele de animais silvestres aparecem em áreas mais próximas dos contrafortes andinos, ou, pela influência dos jesuítas, adotados pelos povos que tiveram contato com aqueles religiosos.

Como instrumentos de sopro, flautas, de um só corpo ou duplas, longas ou curtas, flautas de Pã, têm uso em muitos dos povos da América. Como curiosidade, buzinas e flautas com palhetas (tipo um oboé rústico) aparecem aqui e ali.

Paus marcadores de ritmo são usados por muitos povos, alguns dos quais também utilizam pequenas varetas de madeira para esse fim.
Outra influência jesuítica é a rabeca, que os povos Guarani utilizam com maestria retirando uma corda do violino original.

Interessante notar que às vezes a rabeca não é tocada como instrumento melódico, mas sim como marcador de ritmo.

Na África, vários instrumentos musicais enriquecem as celebrações festivas, sendo que muitos deles, já na Idade Média, migraram para a Europa, foram aperfeiçoados e ainda hoje integram conjuntos musicais pelo mundo afora.

É o caso das rabecas, violão e outros.

Mas o instrumento africano de maior distribuição naquele continente é sem dúvida o tambor.
Grandes, pequenos, eles aparecem em todas as tribos Africanas.
Há dois tipos fundamentais: aquele com corpo de madeira e couro e aquele todo de madeira.
No tocante à percussão, os tambores Africanos são tocados em todo o Brasil, nas cerimônias
religiosas dos cultos, festas, etc. Assim, terreiros de umbanda e candomblé têm nos atabaques o
marcador de ritmo nos quais as danças se alicerçam.

Outro instrumento confeccionado pelos africanos é o alaúde, antepassado do violão. Muitas das vezes, a caixa de ressonância do instrumento é feita de cabaça, adornada com búzios, contas coloridas e couro de animais.

Os curadores da I Mostra de Arte e Cultura Afro-brasileira e Indígena vem há mais de quinze anos desenvolvendo um intenso trabalho de divulgação da Cultura Indígena e da Arte Popular através de Exposições e Mostras no Brasil e no exterior, acumulando ao longo de anos de estudos e pesquisas, inclusive de campo, consistência museológica e qualidade estética, possibilitando a realização de eventos de ampla  ceitação e credibilidade junto ao público estudantil, profissional da área e visitantes em geral.

Nesta edição de 2010, a Mostra disponibilizará ao público um pequeno recorte da coleção particular de Rubem Pereira de Ávila que ao longo de três décadas vem colecionando valiosas peças que compõem várias exposições significativas sobre o tema.

Outra importante contribuição no acervo Africano é do Instituto Cultural Baba Toloji, que gentilmente nos cedeu algumas peças que enriqueceram o conjunto expositivo.

É importante lembrar que a Mostra vem de encontro à legislação pertinente, regulamentada pelas leis federais 10639/03 e 11645/08 que estabelecem as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”, e pela lei municipal 11128/02 que institui 20 de novembro, dia da consciência negra, como feriado  municipal no município de Campinas.

Campinas, novembro de 2010.

Fonte: Cisguanabra

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