1. “Dizanga dya Muenhu” (1977) é o livro de estreia do escritor Boaventura Cardoso. A propósito deste seu título, escreve o crítico norte-americano Russel Hamilton: “A imagística telúrica e os recursos retóricos (…) evidenciam o desejo que Cardoso teve de transformar o discurso convencional da prosa de ficção de Angola. Desejoso de transformar a linguagem presa às dependências do passado colonial, o discurso de Cardoso ultrapassa por vezes o equilíbrio entre forma e conteúdo, tendo como resultado a impressão de que o enredo é simples pretexto para a apresentação ou exercício da linguagem”.
O professor R. Hamilton vai mais longe: ” Boaventura Cardoso é um escritor no verdadeiro sentido da palavra, principalmente porque numa fase em que o desequilíbrio tende a ser do lado da medida das coisas, ele se esforça por encontrar uma expressão reivindicatória de acordo com a revolução cultural. Teremos de voltar à questão da linguagem”, observando antes que “os prosistas da nova geração (…) têm tentado efectuar a reivindicação cultural ao nível duma linguagem reconstruída e híbrida. E ninguém tem trabalhado mais cuidadosamente numa linguagem destinada a ser reivindicatória do que Boaventura Cardoso”.
A afirmação premonitória do eminente investigador das Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, formulada no princípio da década de 80, saiu confirmada não só pelo percurso notável do autor em questão, durante estes cerca de 40 anos de carreira, mas também pelo facto de o referido livro poder ser lido tácita ou mesmo expressamente como um romance, já que tem um fio condutor e pano de fundo: o período da transição eufórica pela independência, constituindo cada um dos contos um conjunto de micro-textos, “a fortiori” (leia-se, forçadamente) dir-se-iam capítulos, que compõem um macro-texto, que o livro do autor condensa e anuncia: “Dizanga dya Muenhu” (do kimbundu, “Lagoa da Vida”). Este conseguido exercício literário fornece não só a sua visão da época, como capta-lhe, com manifesto sentido de urgência, a trama da sua evolução, quando as castanhas do conflito ainda não ardiam sequer a lume brando.
A este propósito, diria o pensador de cultura Amílcar Cabral, “a evolução literária reflecte a evolução de toda a sociedade” – expediente de análise que se encaixa, perfeitamente, no contexto da nossa presente nota de leitura.
Vale dizer que são raros os autores angolanos que se ocupam deste período conturbado e dramático, mas generoso e glorioso, da nossa história recente, como é o caso, por exemplo, do romance “A Geografia da Coragem” do seu companheiro de rota já finado Jorge Macedo, que se inscreve seguramente nessa perspectiva diacrónica e também sincrónica, em função da dinamicidade do tempo e do espaço (narrativos) que buscam, resolutamente, ficcionar.
2. Em “Dizanga dya Muenhu” o autor dá um mergulho na vida luandense dos meados dos anos 70. Em termos de tempo podemos situar a obra na fase final do período colonial, conforme os referentes (independência) TOTAL (I)MEDIATA indiciam; expressões algumas das quais da linguagem popular, falada por gente humilde, incluindo o quimbundu e respectivos empréstimos do português falado nos subúrbios luandenses e não só, perpassam em todas as estórias que compõem a obra em questão; expressões muito em voga na época que precedeu o 11 de Novembro de 1975, mesmo ainda antes da data de fixação da data oficial da autodeterminação de Angola, através dos Acordos de Alvor, celebrados entre os três movimentos de libertação (a saber: FNLA, MPLA e UNITA) e a potência colonial – Portugal.
É já quase um lugar comum dizer-se que o texto literário tem sempre uma componente auto-biográfica, no conto “Nos tempos de miúdo”, a alusão a Malange permite detectar o espaço nostálgico da infância do autor implícito, através de um relato de uma partida de futebol no pelado. Tal pendor auto-biográfico atinge o apogeu no caso em apreço no trecho: “Já nos tinha(m) avisado seis horas recolher (obrigatório). Patrulha atirar só. 61 quente. Cuidado! Pimentel barbudo sanguinário, olhos na mira fúnebre. Sô Rocha nacionalista fogoso já lhe mataram então (…) Vinhamos andando assustados. Nove horas da noite, a corneta tocara fazia tempo. Maxinde-Katepa parecia tinha distância. Na porta de armas ainda que passamos bem. Sentinela só nos olhos mau. Fomos andando, andando, silêncio, ninguém que passava só. Capim alto era surpresa escondida no caminho da noite”.
Já o conto “Meu toque” narra-nos a vida de kaprikitu, miúdo tornado adulto rapidamente, pelas agruras da vida. Feito engraxador, pretensamente, não levava desaforo para casa e certo dia teve que enfrentar os maus fígados de um suposto cliente colono, racista por excelência que destruiu com um violento pontapé o seu único e exclusivo ganha-pão: a graxa. Tal circunstância desencadeia um sentimento de indignação entre os seus colegas que vai estar na origem de uma revolta destes contra o agressor.
Ainda assim, o autor implícito faz apelo à sua veia hamística: “O ódio não cresce, se lhe cortarem a raiz” – numa clara alusão ao racismo que fractura a sociedade colonial entre nativos despossuídos e o senhor colono todo-poderoso, detentor do poder económico e da autoridade político-administrativa, conforme atesta a personagem que vai buscar a polícia colonial para reprimir “Nga Fefa Kajivunda”, que acaba morta ensanguentada com uma saraivada de porrada, entre porretes e coronhadas.
A urdidura da peça literária de Boaventura Cardoso denuncia todo um sistema colonial e respectiva engrenagem corrosiva. O miúdo-adulto começa a trabalhar cedo para ajudar a mãe prostituta a manter os seus (meio) irmãos, segundo insinua a expressão da mulher que “vai na vida dela”. Basta atentar no facto de que a prostituição, o alcoolismo, a droga, acompanham as populações mais vulneráveis, como sejam as famílias pobres. O caso de Man Zeca, um marginal que fuma taco fala por si, mais a mais, desprovido de meios financeiros para obter o cigarro.
Outro mal social que o enredo traça, colhe-se na página 30,quando o malanjino sofre um assalto, logo por altura do desembarque chegado da aldeia. Tchiuale perde a mala, perdendo a roupa e os documentos, situação/acção que o leva, a posteriori, à cadeia por falta de documentos comprovativos da sua identidade e tachado de vagabundo.
“Desceu desconfiado mão firme na mala. No meio da multidão, resposta um aceno distante e a mala de repente em outras mãos mergulhando no escuro. Agarra! Agarra! Agarra! Habilidade e perícia de ladrão ninguém que desafia. Foi tudo na mala compadre! Me kassumunaram a roupa e a papelada. Tchiuale faltava pouco para chorar.”
Esta literatura de denúncia e de protesto social encaixa-se na tradição literária angolana. Intertextualmente capta-se nos versos dos poetas da geração dos poetas da “Mensagem” e na narrativa da geração da “Cultura”, como, por exemplo, em Luandino Vieira, através entre outras personagens combativas como Domingos Xavier.
Já os heróis de B. Cardoso são Kaprikitu, Ngafefa, depois consagrada como Kajivunda (das lutas) Sô Rocha, preso pela PIDE/DGS por actividade subversiva clandestina, bem como o professor que ensinava a população nativa da sua sanzala a sair da ignorância, tendo sido delatado por um infiltrado bufo à autoridade colonial, alegadamente por conspiração contra a ordem instituída resultante da alfabetização dos moradores do espaço (físico e social) onde ocorre a estória. Neste particular, Boaventura Cardoso dialoga com “Mestre Tamoda” de Uanhenga Xitu, acusado de pôr em causa a ordem cultural reinante, ao ensinar o português dos calhamaços trazidos da capital aos mais novos, pondo em questão a autoridade linguística da professora que já não queria ouvir falar do português marginal do Tamoda na aula. Nestes termos, a teia de cumplicidade das distintas personalidades de um e de outro autor faz reflectir a literatura como sistema de vasos comunicantes em termos de intertextualidade.
Fonte: Jornal da Angola