O professor Roberto da Silva na sacada de sua sala na Universidade de São Paulo
Estudioso do assunto diz que prisões não têm sala de aula, currículos são inadequados e professores são pouco preparados para a educação em regime de privação de liberdade
O professor livre docente da Universidade de São Paulo, Roberto da Silva, mudou totalmente o ângulo do qual olha para o sistema prisional. Depois de ter sido interno da Febem (quando a entidade tinha a tutela de órfãos) e, já adulto, ter passado 10 anos preso na década de 1980, hoje é membro do Conselho Curador da Fundação Casa e pesquisador consultado por todos os governos sobre educação nas prisões. Na entrevista a seguir, ele fala do que mudou – ou não – na educação em regime de privação de liberdade e da diferença entre o que sociedade e governo esperam da escolarização da população presidiária:
iG: Já melhorou algo a educação nas prisões?
Roberto da Silva: A discussão foi retomada nos últimos seis anos, após 30 anos sem se falar do assunto no Brasil. E muito por força das agências internacionais, como a Unesco e o governo japonês, que financiou o primeiro projeto de educação em prisões no Brasil. Com isso, passou a ter um empenho em organizar seminários pelo Brasil, dos quais participei de quase todos. Daí nasceram algumas ideias que agora estão tomando corpo: primeiro, que deveria haver um projeto político pedagógico, depois que era preciso levar o direito a educação para dentro das prisões e, para isso, era preciso constituir marcos regulatórios. Aí foram aprovadas leis nacionais que obrigaram todos os Estados a elaborar planos, sempre com assessoria e verba do governo federal. Nesse momento praticamente todos os Estados entregaram pelo menos o esboço do projeto, São Paulo foi o último e o que mais destoa dos outros.
iG: Quais são os pontos diferentes do plano de educação nas prisões de São Paulo
Silva: Estou tentando desconstruir algumas lógicas que o governo do Estado colocou no projeto. Por conta de serem de partidos diferentes, o governo estadual tem dificuldade em aceitar as políticas do governo federal. Quer fazer as coisas utilizando os próprios meios e com isso ignorando as diretrizes nacionais para educação e prisões. Um exemplo: pelo governo do estado não aderir à Universidade Aberta (UAB), criou a Univesp (Universidade Virtual do Estado de São Paulo) e agora propõe que a educação em prisões seja toda a distância utilizando a estrutura da Univesp.
iG: O preso estudaria pela internet?
Silva: Nem isso, porque na prisão não é fácil usar a rede. Seria utilizando material da TV Cultura, como foi com o Telecurso. Isso é completamente inadequado porque, em se tratando de alfabetização, de elevação de escolaridade e de capacitação profissional com esse público, a relação presencial é fundamental. Se o sujeito já tem dificuldade de ler e escrever, imagina sem a mediação do professor.
iG: Há professores para atuar nessa função?
Silva: Outro problema no atual plano do Estado é a designação de professores temporários para atuar na educação em regime de privação de liberdade. Isso dificulta muito porque é preciso dar uma formação inicial e continuada e garantir conhecimento da especificidade do trabalho. Com o temporário o investimento em formação fica comprometido porque a cada ano ele tem que se renovar.
iG: Qual seria a solução?
Silva: Estamos discutindo a possibilidade de começar uma formação especializada vinculando as quatro universidades públicas do Estado (USP, Unesp, Unicamp e Ufscar) para formar duas, três turmas para professores que queiram trabalhar em regime de privação de liberdade, tanto nas prisões quanto na Fundação Casa, e depois que se criar uma massa critica suficiente, se abrir concurso público. Poderiam entrar professores que já estão atuando, outros novos e também o quadro da Funap (Fundação de Amparo ao Preso ligada à Administração Penitenciária), que já tem bastante experiência na área. Seria dada nos moldes de um curso de especialização, aí sim poderia ser semi presencial.
iG: A situação é melhor hoje?
Silva: Houve avanço significativo, mas há limitações objetivas. Já passamos de 500 mil presos e nenhuma planta das prisões foi concebida com escola, portanto, não tem infraestrutura para receber salas de aula e isso faz com que tudo seja muito improvisado. Só agora o departamento penitenciário nacional elaborou uma planta em que se prevê a existência de pelo menos 10 salas de aula (no modelo padrão que é para cerca de 780 presos). Por isso é difícil pensar na ampliação da oferta de educação. São Paulo, com 198 mil presos, consegue oferecer escolarização para 15 mil presos apenas. Entendida a educação como um direito fundamental da pessoa humana e que essas pessoas privadas da liberdade não puderam ter educação na idade escolar, o poder público tem obrigação do oferecer educação a elas.
iG: A ação de apresentar a educação como forma de reduzir pena foi positiva?
Silva: Da parte do Estado nunca houve preocupação de apresentar a educação como um valor. A lógica do estado sempre foi ter mais um artifício, dessa vez a educação, para tentar reduzir a superpopulação. Tanto que há dificuldade em articular os objetivos da educação com os da reabilitação penal. A educação não pode assumir para si a tarefa de melhorar os péssimos indicadores prisionais que o Brasil tem. Não é papel da educação transformar o criminoso em não criminoso, converter as pessoas, diminuir as taxas de reincidência e diminuir a superlotação dos presídios.
iG: O sr. não é uma prova de que educação causa todas essas mudanças?
Silva: Sim, mas ainda não é nesse sentido. O papel da educação que o professor assume confortavelmente é o de resolver o problema do analfabetismo, da elevação da escolaridade e da qualificação profissional para competirem pelas oportunidades socialmente criadas. O que o sujeito vai fazer com isso é de livre arbítrio dele, não é o estado nem a educação que vai deliberar sobre isso. Eu escolhi o caminho da educação dentre outras alternativas que tinha. Passei 10 anos na prisão sem poder estudar um único dia.
iG: Que tipo de educação ajudaria nos objetivos de transformação da pessoa?
Silva: Não basta transpor para as prisões os currículos hoje existentes no sistema regular de ensino porque aqui fora ele já se mostra insuficiente. Eles precisam mais de uma educação social do que escolar, da qual a escolar faz parte. Não é que a sociedade descrimine presos ou pessoas com antecedentes criminais. Se eles tiverem as qualificações profissionais que lhes permitam executar as funções que a sociedade quer e precisa com a mesma qualidade das outras pessoas, se tornam úteis socialmente. Agora, os presos sem a qualificação e cheio de jeitos e trejeitos, esses geram a estigmatização e o preconceito.
iG: O sr. acha que não há discriminação pelo passado criminal?
Silva: A sociedade tem lugar para todos, você vê, o deficiente físico tem até cota no mercado de trabalho. Antes ele sofria descriminação e preconceito porque era tido como um inútil social, mas a partir do momento que se abriu as escolas para recebê-los e qualificá-los, eles estão disputando vagas no mercado de trabalho com os demais. Sem a qualificação, a descriminação está colocada. Eu penso que o mesmo está ocorrendo com os presos.
iG: E a estrutura escolar da Fundação Casa?
Silva: A Fundação Casa tem uma singularidade que para o menor de 18 anos a educação é obrigatória, então quem tem a custódia do adolescente é obrigado a fornecer escola. Por isso a própria construção prevê salas e as exigências de matrícula fazem parte do cumprimento da exigência da medida sócio-educativa. A questão é a qualidade desta educação, de não se conseguir fazer nestas instituições uma escola mais interessante do que a escola da rua. Fica mais no sentido da laborterapia, de preencher o tempo ocioso, de cumprir a obrigação da instituição sem servir ao sujeito.
iG: É o mesmo problema que têm as escolas em geral?
Silva: Tem problemas adicionais. Mais da metade dos adolescentes já haviam rompido com a escola antes do cometimento do ato infracional ou, pode se ter como verdadeiro também, que o rompimento escolar foi um dos motivos que o levaram a cometer o ato. Dentro da unidade, quando a educação se torna obrigatória, é difícil fazer este adolescente voltar a ter interesse e readquirir o hábito do estudo, por isso precisa ser significativa, atraente. As pesquisas mostram que, depois que saem da internação, os adolescentes não voltam para a escola, então precisaria ser um esforço de escolarização intensivo na alfabetização, aumento da escolaridade ou recuperação da defasagem série.
iG: Como o sr. vê a proposta de redução da maioridade penal?
Silva: Acho que há uma série de manipulação dos dados e das informações. Quem está se manifestando a favor da redução da maioridade penal, fora os políticos tradicionais e os governantes que não deram conta de cumprir sua obrigação, é uma sociedade sem nome. Quando você vê quem é contra a redução, é a OAB, a CNBB, O STF, o STJ, setores importantes das universidades como as faculdades de educação, ou seja, aí é uma sociedade com nome.
iG: Mas o sr. acha discutível?
Silva: O governo federal é contra a redução da maioridade porque foi quem investiu durante 23 anos para a implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Os Estados fizeram muito pouco. O governo federal não quer perder este investimento. Quando você considera o Sistema Nacional de Atendimento Sócio Educativo, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, o combate à exploração sexual de crianças e adolescentes, a proteção aos ameaçados de morte, tudo foi implantado pelo governo federal e pelos municípios, logo estes querem a plena função do estatuto e que ao longo do tempo se possa fazer uma avaliação quanto a eficácia desse modelo de atendimento. Já os governos dos estados que não fizeram sua obrigação não fizeram investimento para implantação do ECA e agora querem se rebelar contra a ordem estabelecida e mudar as regras do jogo. O adequado seria que primeiro o governo fizesse o que tem de fazer.
iG: O que o governo teria de fazer antes de discutir maioridade penal?
Silva: Dotar a Fundação Casa dos instrumentos adequados para se trabalhar a perspectiva sócio educativa da medida, que a mera mudança de nome de Febem para Fundação Casa não garante, e também na construção de unidades menores. Além disso, o fortalecimento das estruturas de garantias dos direitos das crianças e adolescentes. O governo estadual abandonou o Conselho da Criança e do Adolescente, usa este conselho para satisfazer seus próprios caprichos. Não dá a eles as condições que precisam. Não se faz investimento nos conselhos tutelares e praticamente nenhuma medida preventiva no sentido de não realimentar a delinquência infanto-juvenil. Se o Estado fizesse isso e cumprisse todas as obrigações legais éticas e morais que se impõe ao governante, aí nós consideraríamos a possibilidade de alterar a legislação.
iG: No foco que o governador Geraldo Alckmin tem dado, de penalizar os que cometem crimes graves, haveria o que fazer?
Silva: Primeiro, o governo já deveria ter criado as unidades especializadas para atender os que cometem crimes graves. Segundo deveria ter criado unidades especializadas para os maiores de 18 anos que podem ficar sob a tutela do ECA (se entraram antes dos 18 anos). Depois, também está errada a orientação dos tribunais de justiça que usam e abusam da internação: 41% dos internos estão lá por envolvimento com drogas, por uso e dependência, o que seria um problema de saúde pública.
Fonte: IG