NELSON MANDELA (1918-5/12/2013) esteve no Brasil em 1991, em seu périplo mundial depois de solto da prisão onde amargou 27 anos de isolamento por sua luta contra o odioso regime do apartheid.
Apartheid que os boeres e outros copiaram, em meados do século XX, dos Estados Unidos da América e sua doutrina de separate but equal (separados mas iguais). Que vigorou abaixo do Estado de Virginia até o final de 1960, cobrando o assassinato, entre outros, de Martin Luther King Jr., do senador Bob e seu irmão, presidente John Kennedy.
Um parênteses. Linchamentos e negação de direitos políticos, sim. Mas o que dizer que U.S. e South Africa, por conta dessa doutrina, ofereciam aos seus negros oportunidades econômicas e de educação, já na segunda metade do século, que colocam os negros brasileiros em pé de chinelo? No Brasil o apartheid vige até hoje. Mas, como já escreveu o economista Hélio Santos, de forma cínica e hipócrita. Já que há um consenso de que aqui “somos todos iguais”, e quem denuncia ou age seria “complexado”, como dizem de Joaquim Barbosa(STF). Fecha parênteses.
Em São Paulo Mandela foi recepcionado pela então prefeita Luiza Erundina, em homenagem para a qual autoridades diversas e setores do movimento negro brasileiro foram chamados (ele passaria ainda pelo Rio e Brasília). Para o evento no Ibirapuera, fui convidado como coordenador-executivo do Núcleo de Consciência Negra na USP. Por deferência de amigo que estava à frente da Coordenadoria do Negro na prefeitura, então casado com Matilde Ribeiro, depois ministra de Lula. Foi um sufoco de tanta gente, salão entupido, com todos querendo tocá-lo – e Mandela só sorrisos e gratidão. A poucos metros de nós, exalava simplicidade. Dignidade humana.
Agora em julho de 2012, mais de vinte anos depois da sua libertação e do fim do apartheid, estivemos na África do Sul, a jornalista Danila de Jesus e eu. Na manhã da sexta-feira, 17, entramos de ônibus, vindo de Maputo (Moçambique), rumo a Johannesburg, a capital financeira do país.
Alguns quilômetros além do posto da fronteira que separa os dois países com milhares de metros de rolos de arame farpado – para a maioria dos africanos, o país de Mandela é a “Europa” da África – o coletivo estaciona numa grande lanchonete. Descemos e ao passar os olhos nos exemplares de jornais expostos numa prateleira, o choque: “Bloodbath”, “Killing Field” e “Mine Slaughter”.
Eram algumas das manchetes, ilustradas com fotografias de dezenas de mortos. Trabalhadores de uma mina privada que, em protesto por melhores condições de trabalho, haviam sido massacrados no dia anterior, quando a polícia do Estado abriu fogo contra a multidão. Contaram-se 34 mortos e mais de 78 feridos graves.
Horas mais tarde, ao ligar a TV no quarto do hotel, vimos a Comandante Geral da Polícia, uma senhora negra, fazer um comunicado oficial. Não condenando a ação policial. Mas, afirmando que esses mataram para se defender dos ataques dos grevistas. Jacob Zuma, presidente da república, que sucedeu Mandela e por este foi apoiado na primeira e na sua re-eleição, desconversou. Ao que se saiba, depois de mais de um ano da tragédia, ninguém pagou pelo crime. Alguma semelhança com os gestores da polícia na Bahia e no Brasil?
A essa altura Nelson Mandela nada mais poderia fazer, nem opinar em público. Cansado, a sociedade sul-africana dava a ele o repouso merecido, depois de tantos sofrimentos, enfrentamentos e traições. Infligidos não somente por seus inimigos e adversários que o queriam humilhado e morto. Mas por aliados internos, por gente do seu partido político (ANC) e até mesmo por sua maior amiga em anos: Winnie Madikizela. Sua mulher e porta-voz, internacionalmente então reconhecida, nos anos em que ele esteve encarcerado.
Ao não se fazer acompanhar por ela na viagem ao Brasil em 1991, ficou patente suas profundas decepção e tristeza perante o que se revelou ser sua ex-companheira.
(Anos mais tarde Mandela se casaria para sempre com Graça Machel, viúva de Samora Machel, líder do levante anticolonial e primeiro presidente de Moçambique liberto, morto num até hoje controverso acidente quando o avião que o transportava cruzou o espaço aéreo sul-africano, controlado pela turma de Pieter Botha. Na rica região da Costa do Sol, em Maputo, um recém-amigo nos mostrou a residência que o governo moçambicano deu a Mandela para o casal, mas que passava a maior parte sem ocupantes).
Muito se diz e se dirá de Nelson Mandela, defensor da democracia e Prêmio Nobel da Paz. Depois de a comunidade internacional dobrar, com boicotes e condenações nas Nações Unidas, o regime dos brancos racistas sul-africanos, temia-se que sua liberdade resultaria em vingança e desforra contra os carrascos dos negros. E que sua vitória eleitoral mergulharia o país num banho de sangue, em guerra civil. Banhos de sangue ainda ocorrem, as desigualdades ali são terríveis (como no Brasil, fruto da história apartheidiana).
Ao estender as mãos à pacificação de todos os lados, de todos os tribalismos, Mandela tornou-se o maior estadista mundial do século XX. Sem revanchismo, sem apego ao poder (ele não quis ser reeleito). Ensinando que aqueles que conquistam o poder têm deveres morais e maiores obrigações com a sociedade que os demais cidadãos.
Com honradez, sem tirar proveito próprio, sem roubar. E, sabiamente, se retirando de cena para dar lugar à renovação. Mesmo que essa não seja aquilo que ele pensava para o seu país fraturado, como é hoje a África do Sul.
Fernando Conceição é jornalista, professor na Universidade Federal da Bahia, pesquisador dde méidia e relações raciais e biógrafo autorizado do geógrafo Milton Santos (Prêmio Vautrin Lud, Paris, 1994). Publicado em blog Fernando Conceição