“A escola tem papel de formar o cidadão para respeitar o próximo, não somente garantir que eles ascendam profissionalmente. Só que isso não foi praticado.”
Por Ana Beatriz Rosa, do HuffPost Brasil
Em Fortaleza, a escola Educar Sesc de Ensino Fundamental garantiu a matrícula de Lara, aluna trans, para 2018. Mas, em um País que concentra 82% da evasão escolar de travestis e transgêneros, isso não é suficiente, defende a mãe da garota.
“Ela precisa de um ambiente acolhedor no dia a dia, que respeite todos os direitos dela, que promova ações educativas para que isso não aconteça com outras crianças, não só em relação a orientação sexual ou identidade de gênero, mas também em relação a raça, deficiência ou qualquer tipo de discriminação”, desabafou Mara Beatriz em entrevista ao HuffPost Brasil.
“É papel das escolas entender que eles precisam respeitar as leis e acolher as pessoas, até porque ali é um ambiente educativo. Os educadores têm esse papel de formar o cidadão para lidar e respeitar o próximo, não somente garantir que eles ascendam profissionalmente. Só que isso não foi praticado.”
Na última terça (21), a instituição de ensino foi criticada por expulsar a aluna trans de 13 anos. O caso ganhou repercussão nas redes sociais, após Mara escrever uma nota de repúdio ao colégio.
O Sistema Fecomércio-CE, que mantém a escola, resolveu voltar atrás na decisão e publicou uma nota com pedido de desculpas à família.
“Lamentamos qualquer atitude fruto de preconceito ou desconhecimento”, explicou a instituição, que garantiu revisar os protocolos para que casos semelhantes não aconteçam novamente.
No post compartilhado no Facebook, a mãe conta que foi convidada para uma reunião na escola em que a filha estuda desde os dois anos. Ao HuffPost, ela disse que ficou feliz com o convite, pois achava que finalmente o centro de ensino iria tomar uma atitude frente aos constrangimentos diários que Lara passava.
A menina, por exemplo, era a única aluna da escola que não podia usar o banheiro dos alunos. Ela precisava usar um banheiro específico para os funcionários. Ainda, a instituição de ensino não respeitava o decreto que garante o direito do uso do nome social por transgêneros.
“Essa semana ela fez uma prova e veio com o nome antigo dela. Ela rasurou, porque esse não é o nome dela mais, ela não se sente representada por ele, então é uma coisa que causa sofrimento à ela”, compartilhou Mara.
Mara Beatriz afirma que sempre manteve um bom relacionamento com a escola, que garantia respeitar a diversidade, mas que o relacionamento foi se desgastando quando ela informou à instituição que a filha estava em período de transição.
“Fomos surpreendidos com a expulsão dela. Entendi que muitas vezes o silêncio que eu tive da escola já era um sinal de transfobia. Quando informei sobre a situação de Lara, sugeri que eles procurassem o centro de referência LGBT da cidade para uma sensibilização do corpo docente, mas eles não se interessaram”, explica a mãe.
O argumento para a expulsão, de acordo com ela, foi o fato de a escola não ter o “aparato necessário” para acolher Lara. Porém, a mãe da menina reforça que o que se precisa não são condições assessórias, mas a garantia de direitos.
“O preconceito aumenta a ignorância sobre a situação dos trans. A escola dela é Sesc, é um sistema grande, então eles tem acesso a informação. A gente entregou a portaria que descrevia todos os direitos dela, juntamente com uma cartilha que incentivava práticas de inclusão. Mas nada foi feito. É um caso de transfobia clara. Ela sempre foi boa aluna, nunca ficou de recuperação. Não havia motivo de expulsão e eles admitiram isso.”
Em depoimento ao HuffPost Brasil, Mara Beatriz compartilhou parte da trajetória de Lara e lembrou que a situação vivida pela filha é apenas um reflexo do Brasil que mata e violenta um LGBT a cada 25 horas.
A travessia de Lara
“Ela sempre foi uma criança muito retraída, muito fechada. A autoestima dela era muito baixa, ela não sorria em nenhuma foto. Lara dizia que era a criança mais feia da escola. Quando chegou os 12 anos começou os primeiros traços masculinos, a voz engrossar, os primeiros pelos, o gogó aumentar. Ela ficou preocupada demais. Hoje em dia ela entende que o que ela sentia era um desencaixe, que ela não se sentia confortável com um corpo masculino.”
O apoio da família
“Ela já tinha dito para a gente que gostava de meninos, então, a gente achava que ela era um garoto gay. O que mudou foi a questão da identidade de gênero, como ela se vê. No início desse ano ela começou a usar um lápis preto no olho, a pintar as unhas de preto, então ela parecia um menino gótico. Hoje, eu percebo que essa foi a maneira que ela encontrou de experimentar, de se conhecer.
Em um determinado dia de julho, eu cheguei do trabalho e ela estava com batom vermelho. Eu até brinquei e perguntei se ela ia sair. E ela disse que não, que tinha acabado de ir para a escola. Então eu pedi para ela me contar como foi que ela tinha ido para a escola de batom vermelho. Eu perguntei se ela gostava, se ela se sentia bem, ou se era uma brincadeira. Expliquei que não tinha problema ela gostar de coisas que normalmente a sociedade orienta como femininas. A gente conversou e ela me disse que estava só esperando a oportunidade para me dizer que ela realmente se sentia uma menina.”
O mundo é caótico e o lar é uma segurança
“Hoje ela é uma menina bem vaidosa, pediu para colocar mega hair porque as pessoas confundiam se ela era um menino ou menina. E isso aumentou muito a autoestima dela. Ela é muito mais confiante.
A família aceitou muito bem porque todo mundo sabe que ela é a mesma pessoa. É a criança que a gente educou, que é amorosa, carinhosa, responsável, inteligente, que valoriza os nossos preceitos morais. É a mesma criança, mas só mudou a forma como ela se apresenta.
Nós temos a noção que para os trans a vida é muito difícil lá fora. Em Fortaleza mesmo a gente vê diversos casos de violência e assassinato. Se lá fora vai ser difícil, dentro de casa a gente precisa ser a base, a segurança, onde a pessoa se desenvolve e é fortalecida. E a gente esperava da escola a mesma coisa.”