Marcelo Yuka: “não superei nada e nem quero”

O boletim Notícias e Análises, do Observatório de Favelas, entrevistou o compositor e ativista social Marcelo Yuka, que em 2000 tomou nove tiros ao fugir de um assalto na altura do conjunto de favelas da Maré, local da entrevista e onde ele ficou proibido de entrar por algum tempo. Durante a entrevista Yuka discorreu sobre sexismo, homofobia, Jair Bolsonaro e arte. Yuka abriu sua intimidade e falou da batalha pessoal que trava a cada dia. Em 2012, ele concorreu à vice-prefeitura na chapa de Marcelo Freixo (Psol): “A minha profissão foi extremamente afetada por ter vindo vice do Freixo. Todas as portas naquele ano foram fechadas pra mim e isso ecoa até hoje. Eu não tenho nenhuma possibilidade de propagar meu trabalho com auxílio do estado ou do município do Rio de Janeiro”

Do: Brasil247

Marcelo Yuka, compositor d’O Rappa e ativista social – em 2012 foi candidato a vice-prefeitura do Rio de Janeiro na chapa do Marcelo Freixo (Psol), deu entrevista no fim de dezembro  ao boletim Notícias e Análises, do Observatório de Favelas. Na entrevista Yuka fala sobre sexismo, homofobia, Jair Bolsonaro e questões pessoais. Em 2000, Yuka foi baleado com nove tiros ao tentar escapar de um assalto na Avenida Brasil, na altura do conjunto de favelas da Maré, onde fica a sede do Observatório de Favelas, onde a entrevista aconteceu: “Pra você ver como tudo é relativo, o Binho tava me falando que ele já tem 29 anos e a possibilidade dele tombar é pouca, ele tá saindo da juventude negra, aquela que é mais alvo. Eu já não era jovem quando tomei nove tiros, nunca fui negro e nem morador de favela. (pausa) Mas eu confiei no que eu podia ser depois dos tiros. E o que eu podia ser de melhor era alguém que não carregasse rancor. E a arte me ajudou pra caramba nisso. Por exemplo, eu não deixei esse público aqui, mas as pessoas que me deram os tiros são daqui, conhecidos. Durante algum tempo fiquei proibido de frequentar a Maré. Mas, pelo que eu acredito e com a arte, eu consegui passar por isso, e posso estar aqui, fazendo o que sempre fiz, me religando ao homem que eu era”.
Por Alan Miranda, para o Notícias e Análises

Marcelo Yuka: Na “batalha entre o íntimo e o intimidador”

Ao final de um debate que durou pouco mais de duas horas, o músico e ativista Marcelo Yuka ainda concedeu mais 20 minutos de seu tempo para um papo. Comentou questões sociais, sexismo, a conduta de Jair Bolsonaro em episódio recente, a experiência como compositor d’O Rappa e questões mais íntimas, da batalha pessoal que trava a cada dia. Principalmente consigo mesmo.

Marcelo Yuka, nos primórdios da carreira artística teve um começo mais que promissor como integrante e principal compositor da banda O Rappa. Nesse período emplacou canções que garantiram ao grupo uma popularidade expressiva no país. Sua verve poética sempre flertou com suas convicções políticas num ângulo de ativismo social. O músico também atuou junto a organizações civis como o Afrorregae, na criação e promoção da FASE – Federação de Órgãos para Assistência e Educação do Rio de Janeiro; é fundador do F.Ur.T.O – Frente Urbana de Trabalhos Organizados e da B.O.C.A – Brigada Organizada de Cultura Ativista que é uma ONG voltada para levar atividades culturais a entidades carcerárias. Em 2012 foi candidato a Vice-Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro na chapa encabeçada pelo Deputado Marcelo Freixo. Atualmente, grava a primeira temporada de seu Programa de TV chamado “Eu Desafio o Mundo Sem Sair da Minha Casa”, que será exibido este ano pela Play TV. Está também nos arremates finais de seu novo disco “Canções para depois do Ódio”, o primeiro solo, com participações de Marisa Monte, Seu Jorge, Leticia Sabatela, entre outros. Está ainda envolvido com o lançamento de sua biografia “Não Se Preocupe Comigo”, pela editora Sextante.

Em 2000, Yuka foi baleado com 9 tiros ao tentar escapar de um assalto. Apesar do infortúnio, soube usar isso a seu favor, como motivação. Não para provar o quanto é difícil, mas o quanto é possível. Trata-se de um ser múltiplo, que não se emoldura, mas escorre das telas lenta e poeticamente. Em tom brando e calmo, numa conversa onde os olhos se nivelam e falam mais que a voz, Yuka nos concedeu a entrevista, que você confere a seguir:


Notícias e Análises:
 Há pouco tempo rolou num programa de tv uma questão entre Anitta e Pitty, em que a Anitta teria reproduzido uma ideia machista e logo depois aquele rebuliço nas redes sociais, o antagonismo, etc. Mas também rolou um movimento, até motivado pela Pitty de tirar a Anitta desse lugar de inimiga da causa e reconhecer que ela reproduziu um discurso da sociedade machista em que vivemos. Acho que existe uma dificuldade dos movimentos de fazer esse tipo de reconhecimento, de ter essa empatia e enxergar, por exemplo o racista, o homofóbico, como alguém que não pertence àquele discurso, mas alguém que está inserido nele. Você tem essa perspectiva?

Marcelo Yuka: Enxergar o outro é fácil, né. Aquilo que eu falei do cabelo, de pensar que as mulheres negras deveriam cultivar os cabelos naturais. Ora, a mulher branca pode fazer permanente, mas a negra não pode alisar os próprios cabelos? Eu estava substancialmente errado. Não é tudo que sou tolerante assim. Po, eu me autodenomino pacifista, mas não sei o que eu seria capaz de fazer se tivesse de frente ao Bolsonaro quando ele falou que só não estuprava a Maria do Rosário porque ela não merecia. Sabe? Logicamente eu estaria certo, mas o meu ímpeto seria de uma agressão física. Então, tenho até que rever meu ímpeto. Se eu tenho uma carreira pública, tenho responsabilidade como tal. Aquele erro também é que no fundo, tudo era entretenimento. A música das duas se baseia na cultura que reduz a arte a entretenimento. A discussão acabou sendo apenas entretenimento.
NA: Ali, naquele momento né? Não que isso não possa ser apropriado por outros?

MY: Sim, claro! Como a mídia usou. A discussão comportamental é super válida. O que eu acho que a gente tem que ter cuidado é com essa indústria do hiperentretenimento, que transforma tudo em pacote de biscoito. E que também pode espetacularizar o que estava ali em jogo: sexismo. A sociedade é regida pelo macho branco dominante. Muitas vezes o ganho comportamental que a gente tem tá dentro do interesse desse macho dominante. No meu ver, o homossexualismo feminino que tá tão em voga, ele tem mais espaço porque faz parte do fetiche do homem branco dominante. Ele é capaz de achar bonitinho, sexy. Agora se o filho dele der a bunda, olha como ele vai ficar. Então, que ganho comportamental é esse? Se eu posso botar algum peso na postura da Anitta, é só que ser uma figura pública não é só ganhar dinheiro com isso, não é só expor o seu trabalho. Tem a responsabilidade com o que se tornou. Acho que ela não entendeu isso. Mas quer saber? O músico, o artista não é o cara que vai saber de tudo, que vai saber se colocar… Não. Se eu sei, digo que sei. Se não sei, digo que não sei. Então, acho que foi um mal entendido midiático que acabou tomando uma proporção que, pra mim, ainda não alcançou o objetivo. Porque não virou de fato uma ação em prol de um livre comportamento. O machismo ainda tá aí. Homens que em sua grande maioria foram criados e educados por mulheres machistas. Minha mãe é machista.
NA: Aproveitando o mote dessa discussão da luta pelo simbólico, pelo imaginário social… assim como os meios de comunicação se configuram espaços onde essa disputa acontece, por outro lado a arte também é um solo fértil pra travar essa disputa. Como você vê o potencial da arte nesse sentido?

MY: Eu acho que a arte é um espelho da sociedade. A arte menos compromissada também é espelho da sociedade, mas a gente pode espelhar a busca por uma sociedade melhor, a gente pode espelhar onde a ferida mais dói. Não é uma necessidade da arte, mas é uma propriedade. Pra mim é difícil falar porque eu só entendo a arte assim. Eu a uso assim. Eu tive sorte de conseguir comunicar depois de muito esforço aquilo e, de alguma maneira, aquele discurso (d’O Rappa) se tornou pop. E eu agradeço, tinha que ser. Porque não era o discurso do meu próprio umbigo, nunca foi, mas desse umbigo maior. Então, eu não sei de onde eu sou. Eu nasci em Campo Grande, moro na Tijuca…
Pra você ver como tudo é relativo, o Binho tava me falando que ele já tem 29 anos e a possibilidade dele tombar é pouca, ele tá saindo da juventude negra, aquela que é mais alvo. Eu já não era jovem quando tomei nove tiros, nunca fui negro e nem morador de favela. (pausa)
Mas eu confiei no que eu podia ser depois dos tiros. E o que eu podia ser de melhor era alguém que não carregasse rancor. E a arte me ajudou pra caramba nisso. Por exemplo, eu não deixei esse público aqui, mas as pessoas que me deram os tiros são daqui, conhecidos. Durante algum tempo fiquei proibido de frequentar a Maré. Mas, pelo que eu acredito e com a arte, eu consegui passar por isso, e posso estar aqui, fazendo o que sempre fiz, me religando ao homem que eu era.

NA: Isso que você comentou de não poder frequentar aqui, me fez lembrar que o Freixo também conviveu com isso, esse medo pairando, principalmente depois da CPI das milícias e de certa forma, todos que abraçam causas como a que vocês abraçam, vão sofrer em certa medida, consequências. Há um preço a se pagar por essas escolhas…

MY: Claro. A minha profissão foi extremamente afetada por ter vindo vice do Freixo. Todas as portas naquele ano foram fechadas pra mim e isso ecoa até hoje. Eu não tenho nenhuma possibilidade de propagar meu trabalho com auxílio do estado ou do município do Rio de Janeiro. Eu tenho que contar com a iniciativa privada. Midiaticamente também houve isso. E eu soube usar a mídia quando a tive voltada pra mim. Eu descobri que eu podia dar entrevista, por exemplo, no Nós do Morro e aí quem quisesse me entrevistar tinha que contextualizar onde eu estava. Fui esperto, cara. Fiz isso numa porrada de lugar. Então botei os malucos do Nós do Morro pra fazer o vídeo mais premiado do país, o “Minha Alma”. Depois, por mérito deles, veio (o filme) Cidade de Deus e hoje a gente tem alguns dos garotos que podem estar na mídia convencional sem fazer papel de bandido.

NA: E sua alma, pra onde aponta agora?

MY: Cara, eu tenho a autoestima baixa e eu adoro reversão de expectativa. Meu meio é muito egocêntrico e eu não posso dar a alma pra isso. Sempre fui cabeludo. Quando me tornei músico, cortei o cabelo. Nunca usei drogas, porque pra músico, isso é clichê! Agora que to ficando velho, to usando a maconha medicinal. Nunca pensei em ter tatuagem, mas o cadeirante com tatuagem, assume a sua própria perna.

NA: Eu reparei hoje, imaginei que você tivesse feito depois dos tiros.

MY: Foi por isso. Pra assumir aquilo que pra mim era difícil. Assim, eu não sou bom em nada que eu faço, e não pensa que eu to jogando com isso, tô sendo sincero. Deus sabe o esforço que eu faço. Mas eu sou um profissional de sentidos, é por isso que eu to aqui. Eu sou um profissional de utopia. E é por isso que eu não podia deixar esse encontro acabar sem fazer essa provocação do lado pessoal.

NA: Eu queria te perguntar uma coisa. Assim, quando você cria uma obra de arte e a torna pública, o interlocutor se apropria daquilo da maneira que lhe convém, mas a perspectiva do autor também desperta a curiosidade, né. Então, eu queria te perguntar, que intenção você colocou no verso “Hoje eu desafio o mundo sem sair da minha casa”?

MY: Pois é, cara. Depois que eu tomei os tiros, uma revista de misticismo me ligou, e vieram dizer que eu tinha feito duas profecias: uma, que eu ia desafiar o mundo sem sair de casa, e outra: na última canção que eu fiz com o O Rappa, “Ninguém regula a América”, eu falo sobre bombas no céu de Wall Street. E foi ali onde os aviões derrubaram as torres. Eu falo sobre MST vigiado pela CIA e agora o mundo é vigiado pela CIA. Isso não tem nada de profético, é quase que matemático que isso iria acontecer. Eu só servi à minha sensibilidade. Eu não to aqui pra mostrar o quanto é difícil. Muito pelo contrário: o quanto é possível.
É por isso que eu respeito cada um, mas tem hora que parece que as pessoas estão gostando mais de ouvir a própria voz. Parece que é um exercício…

NA: De Ego?

MY: É. E tudo bem. É isso que eu quero falar: tudo bem. Quando esse exercício tá na função nossa, do plural. Quem me dera que todo ego manifestado fosse nesse serviço, irmão. Mas tem que aprender com o que a vida me deu. E eu na minha profissão tenho que ter essa vigília. O que eu faço o tempo todo é prestar serviço. Muitas vezes esse serviço é prioritariamente aquilo que eu acredito, não ao público.

NA: No teu período com O Rappa, por exemplo?

MY: Sinceramente, cara. Sinceramente?

NA: Por favor…

MY: Eu nunca esperei que alguém fosse entender. Nunca. É a grande surpresa. De repente, o Brasil entendia, os lugares mais pobres entendiam. Foi algo feito sem subestimar. Sem usar a violência como filme de ação. Sem abrir mão da poesia, do lúdico. Se eu estivesse em pé, eu estaria procurando desafios. Mais até. Então eu não acredito em porra nenhuma tipo superação. Não superei nada e nem quero. Porque a superação só se dá no último dia. Agora eu to no processo. E se esse processo tiver o outro, de verdade o outro, acho que eu to no caminho certo.

NA: Uma professora minha da faculdade comentava esses dias algo nesse sentido, da valorização verdadeira do processo, como se o sentido do caminho já fosse o próprio caminhar, uma coisa meio Alberto Caiero, quando ele diz que pensar (na natureza das coisas) seria estar doente dos olhos…

MY: E de fato é isso. O processo é importantíssimo. Não existe linha de chegada. Liberdade não é um lugar que você vai chegar, paz também não, felicidade também não. Existe estar no processo de. E se você tá nisso, pode demorar uma vida toda. É o melhor que a gente pode fazer. Não é?

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