Maria Beatriz Nascimento: mulher negra e transatlântica

Primeira homenagem da série Nossas Honoris traz a sergipana que foi ativista pelos direitos humanos de negros e mulheres brasileiras

Entre 2018 e 2022, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) concedeu 13 títulos a doutores honoris causa de todo o mundo. Desses, apenas quatro foram destinados a mulheres. Ao longo do mês de março, a série Nossas Honoris vai destacar a história de cada uma delas: Beatriz Nascimento, Eliane Potiguara, Helena Nader e Carolina Maria de Jesus são mulheres que trazem sua história e força para dentro da academia.

A primeira personagem é Maria Beatriz Nascimento, mulher, negra, sergipana, mãe, historiadora, roteirista, poeta, ativista: foi impulsionadora de debates no movimento negro e contribuiu de forma singular para o pensamento social brasileiro. A pedido da Escola de Comunicação (ECO), o título de doutora honoris causa foi concedido pelo Conselho Universitário (Consuni) in memorian no dia 28/10/21, sob unanimidade.

A pensadora fez graduação em História (1968-1972) e especialização (1979-1981) na UFRJ. Além disso, iniciou o curso de mestrado em História na Universidade Federal Fluminense (UFF). Parte de sua pesquisa, realizada de maneira independente de qualquer instituição acadêmica, consistia em observar — em campo e via documentação — os quilombos como sistemas alternativos à estrutura escravista, com potencial continuidade em favelas, particularmente no caso do Rio de Janeiro.

“A terra é circular, o sol é um disco. Onde está a dialética? No mar.” As palavras que Beatriz Nascimento declama no início do documentário Ôrí dão pistas de como a intelectual se enxergava e se posicionava na dinâmica do mundo: entre continentes, acompanhando o vaivém das ondas, segura de si, mas não sem conflitos e jamais sem perder de vista o firmamento.

Ao usar termos como “transatlântico” e “transmigração”, ela reconheceu a função do deslocamento na definição das trajetórias negras no Brasil: de um continente a outro, de um território de cativeiro a um território de liberdade, do campo à cidade, do Nordeste ao Sudeste. Demarcando essa condição movente, a pensadora estabeleceu vínculos com a memória e delineou uma identidade coletiva que tem nos corpos sua maior evidência.

Beatriz chegou a iniciar o mestrado em Comunicação na ECO como aluna do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura (PPGCOM), sob orientação do professor Muniz Sodré, em 1994. No ano seguinte, a então pós-graduanda foi vítima fatal de feminicídio, em Botafogo, Zona Sul do Rio, pelo companheiro de uma amiga, por achar que ela interferia em sua vida privada. Por aconselhar a amiga a terminar a relação por sofrer agressões, em 28 de janeiro de 1995, a sergipana levou cinco tiros pelas costas. Na ocasião de seu falecimento, a historiadora trabalhava como professora na rede estadual de ensino há 11 anos.

Foto: David Sá/ Acervo de Bethânia Gomes

Beatriz Nascimento foi impulsionadora de debates no movimento negro e contribuiu de forma singular para o pensamento social brasileiro. Ela vive nas recordações, nos gestos, nos estudos e nas reflexões de muita gente. Mas ainda precisa ter sua memória reparada; sua luta e seus textos, difundidos.

Seu nome era dor
Seu sorriso dilaceração
Seus braços e pernas, asas
Seu sexo seu escudo
Sua mente libertação
Nada satisfaz seu impulso
De mergulhar em prazer
Contra todas as correntes
Em uma só correnteza
Quem faz rolar quem tu és?
Mulher!…
Solitária e sólida
Envolvente e desafiante
Quem te impede de gritar
Do fundo de sua garganta
Único brado que alcança
Que te delimita
Mulher!
Marca de mito embotável
Mistério que a tudo anuncia
E que se expõe dia-a-dia
Quando deverias estar resguardada
Seu ritus de alegria
Seus véus entrecruzados de velharias
Da inóspita tradição irradias
Mulher!
Há corte e cortes profundos
Em sua pele em seu pelo
Há sulcos em sua face
Que são caminhos do mundo
São mapas indecifráveis
Em cartografia antiga
Precisas de um pirata
De boa pirataria
Que te arranques da selvageria
E te coloque, mais uma vez,
Diante do mundo
Mulher

*Com informações de Patrícia da Veiga, na reportagem “A atualidade da intelectual transatlântica”


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