Quando descobri que o Luan é transgênero passei a me informar mais sobre o sentimento dessas pessoas, não só sobre o significado da palavra
Não é fácil acordar e saber que a sua filha virou filho. Amar, estar perto e acompanhar é o que vai fazer com que todo o resto fique mais fácil. A importância de entender as questões de gênero é muito grande. Quando as conhecemos é mais fácil identificar essa situação. Se pudesse, teria percebido e evitado momentos de tristeza. Sinto que tenho grande culpa de não ter ajudado antes e evitado a depressão do Luan.
A trajetória foi muito difícil até agora, ainda que estejamos apenas no início. O pai dele é ausente desde os 4 anos e, nas poucas vezes que apareceu – a última foi há dois anos –, o Luan não quis vê-lo nem conversar. Quando me separei, as figuras masculinas que fizeram parte do desenvolvimento dos meus filhos foram as dos meus irmãos, Rafael e Vinícius, e do meu atual marido, o Sérgio, com o qual sou casada há 6 anos.
Desde os 4 anos, quando começou a ter mais autonomia, o Luan fez escolhas de roupas e brinquedos considerados masculinos. Aos 11 anos, quando estávamos de mudança e empacotando as caixas, encontrei e li o diário do meu filho. Nas páginas, encontrei declarações sobre a paixão por uma menina e não dei tanta atenção porque era personagem de um filme. Mais tarde, aos 13 anos, acabei lendo novamente. Nessa fase, o Luan dizia estar apaixonado por uma garota do curso de inglês. E não era só isso. Vinha acompanhado de pensamentos suicidas, repúdio ao sexo masculino por causa do abandono do pai. Não quis dizer que sabia, porque isso o afastaria e faria com que perdesse a confiança em mim. Afinal, eu tinha consciência de ter sido invasiva ao ler algo tão particular.
Sugeri que o Luan começasse um tratamento psicológico, com a desculpa de que gostaria que ele se soltasse mais e superasse o trauma da ausência do pai. Tinha um fundo de verdade: meu filho não fazia amizades fora do seu ciclo na escola e tinha vergonha de se impor. Brigava muito com a irmã mais nova porque odiava o jeito ‘menininha’ como ela agia. Quando sentia raiva, perdia o controle e se machucava. No entanto, não tivemos nenhum progresso no primeiro tratamento. O Luan não queria estar lá, não colaborava. Isso se arrastou por três ou quatro meses.
A formatura do 9º ano foi um martírio. Exigiram o uso de vestido durante a festa e isso não fazia parte do seu vestuário. Tinha uma pressão familiar para que o Luan usasse o traje: ‘Você é menina!’, ‘você vai parecer um moleque com essas roupas!’ Ele foi firme: disse que não usaria salto alto de maneira alguma. Na ocasião, usou um tênis, mas não escapou do vestido.
Leia Também: Qual a dificuldade de aceitar a identidade de gênero das pessoas ?
Aos 15 anos, o Luan decidiu se abrir comigo. Ligou e disse: ‘mãe, a Valentina quer conversar com você’, falando sobre uma amiga bem próxima com a qual convive. No dia, tudo deu errado: o meu carro quebrou, sugeri que deixássemos a conversa para depois. Mesmo assim, Luan insistiu. Achei que a menina fosse me contar algum segredo. Quando cheguei, Valentina me disse: ‘O Luan é transgênero’. Até então, não sabia o que era. E, para mim, foi uma grande surpresa. Sempre esperei o dia no qual ele me contaria que gostava de meninas, mas não que queria mudar o seu corpo, nome e história. Contou-me sobre tudo: sabia que eu tinha lido o diário e entendia as indiretas, mas não conseguia responder. Luan fez pesquisas para entender o que era ser transgênero e se identificou. Se pudesse escolher, optaria por ter nascido menino e sempre seria assim. O Luan não queria passar por essa situação. ‘Não é uma escolha. Nasci assim’, disse.
O que eu mais tinha ouvido eram os casos famosos na mídia, como a filha da Angelina Jolie. Na Inglaterra, isso é mais comum. Comecei a me informar mais em relação ao sentimento dessas pessoas, não só no significado da palavra transgênero. Por que elas se sentem assim? É difícil você se olhar no espelho e não conseguir se identificar.
Tive uma rejeição no início, mas nunca enxerguei como uma fase. A partir do momento que ele me contou, eu sabia: é o Luan. Aceitei com dificuldade, mas apoiei desde o início. Conversamos com a família e amigos mais próximos, pois não queríamos conversas paralelas. Criei expectativas e foi um baque, mas nunca demonstrei. A revelação fez com que o Luan se sentisse à vontade para cortar o cabelo na semana seguinte e trocar o guarda-roupa. Quando fomos ao shopping fazer compras, a felicidade do Luan ao frequentar a ala masculina foi visível. Procuramos também por um novo psicólogo, agora por iniciativa dele. Acabei descobrindo o Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual, a AMTIGOS (SP). O tratamento é feito com o psiquiatra Alexandre Saadeh, que já trabalha com isso há 25 anos, mas é pouco divulgado. Atendem crianças e adolescentes, há auxílio de médicos e assistentes sociais para decidir o passo a passo do tratamento: tomar hormônio, fazer a mudança de sexo, a mudança do nome.
Conversamos com a minha mãe. Ela e o Luan são muito próximos. Pedagoga, ela até acompanhou a gente em algumas consultas no psicólogo. Depois falei com os meus irmãos, com o meu marido, que aceitou com mais facilidade do que eu. Tenho um primo com dificuldade para aceitar. Nunca discriminou, mas não vê como algo normal. A Pietra, minha filha mais nova, sempre me disse que o Luan era um menino. Eu, na época, dizia que não: ‘a sua irmã é uma menina’. Hoje entendo. É muito importante ter o apoio da família, o que não acontece com muitas pessoas trans. Tudo se torna ainda mais complicado. Quem teve mais dificuldade para aceitar foi a minha avó, que tem 77 anos. Por motivos de criação e cultura, ela não recebeu a notícia tão bem. Ficou sem falar com ele por um período, brigava por qualquer coisa e olhava torto. Ainda acredita que é só uma fase e se recusa a chamá-lo de Luan. Porém, procurou tratamento por meio da religião para tentar aceitar tudo isso. Hoje está mais tranquila, menos hostil: respeita as preferências, as roupas masculinas. Conversei com ela: ‘você tem que entender a limitação das pessoas’.
Na escola, todos já sabem que o Luan é trans e o tratamento mudou. Ele frequenta a instituição desde pequeno e são pessoas que convivemos fora do ambiente pedagógico. Alguns professores fingem que nada aconteceu, outros procuram tratar como Luan. Antes, algumas situações eram constrangedoras. Em aulas de educação física, por exemplo, quando o professor tinha de separar meninas e meninos, o meu filho não sabia como chegar e falar sobre isso.
O meu sentimento sobre tudo isso, sinceramente, é medo. Medo dopreconceito que vai sofrer em diversos momentos da sua vida, da violência na sociedade, da transformação do corpo, de grupos transfóbicos. Não é fácil, amo demais o Luan e sei o quanto sua vida mudou depois que conseguiu revelar. Deixou de ser agressivo consigo, com a irmã mais nova, não se isola mais, tem muitos amigos e é mais independente. Fico imaginando o quanto sofreu todos esses anos, mas o meu egoísmo ainda pensa: ‘coloquei lacinhos, escolhi o nome mais lindo, fiz vestidinhos e reproduzi como toda mãe o seu futuro em minha mente’. Mas repito: é puro egoísmo. Não somos nós que escolhemos o caminho de nossos filhos.
Outro dia fui levá-lo ao médico e pedi ajuda para carregar ‘o meu filho’. Quando entreguei o RG, ficaram me questionando. Isso acontece muito. Ficam olhando diante da aparência masculina. Nas ruas, não fico reparando se as pessoas estão cochichando, se trocam olhares. Mas sei que ainda virão tempos difíceis. Quero que ele seja bem aceito na faculdade, em um emprego. Ainda estamos adaptando muita coisa. Troco os pronomes em alguns momentos. Sofremos juntos durante o período de menstruação, apertamos todos os dias os seus seios em faixas e elásticos para não aparecer na roupa, compramos cuecas e falamos das meninas pelas quais se interessa.
Planejamos a mudança de nome e sexo no RG, quando ele completar 16 anos, em setembro. Entre 17 e 18 anos, ele vai começar a tomar hormônios masculinos de acordo com os exames. Então, poderá fazer a barba pela primeira vez, voltar a frequentar praias e piscinas — que não gosta de ir desde que os seios desenvolveram. Estaremos juntos sempre, desde que mantenha o caráter e os princípios que adquiriu ao longo destes anos. O que pedi para o meu filho é que ele não jogue fora as fotos antigas. Para o Luan, quando falamos do passado — Luara — é como se falássemos de uma irmã que já morreu. Mas eu não penso assim. Não é necessário apagar para mudar a história. Faz parte e vai continuar sendo lembrada e vivida.”