Valéria Nader e Gabriel Brito,
Na última semana, o MPL voltou a promover sua jornada de protestos pelo passe livre e também por mais qualidade no transporte coletivo. Com atos espalhados por bairros populosos e periféricos, culminou sua agenda marchando pelas avenidas do centro da cidade, na sexta, 25. Em todos os dias, a repressão policial disse presente, centenas de prisões foram realizadas e a mídia voltou a se comportar como nos inícios de junho.
Na segunda, 21, moradores do M’Boi Mirim, um dos primeiros redutos de revolta contra o transporte precário, pararam o bairro para exigir a duplicação da estrada local e o retorno de diversas linhas de ônibus. Na quarta, 23, foi a vez de o Grajáu se manifestar por um transporte melhor. Na quinta, 24, o protesto foi no Campo Limpo, em forma de denúncia das condições do “Terminal Campo Lixo” de ônibus. No dia 25, o já conhecido encerramento da jornada. Por fim, nesta segunda, 28, São Mateus também se manifestou pelo transporte.
“Infelizmente, essas manifestações acabaram publicadas nas páginas policiais. Não apoiamos o que aconteceu com o coronel da PM, mas também condenamos o atropelamento de manifestantes por um delegado no Grajaú nessa quarta-feira; os espancamentos do Christian em 2006, do Vinícius em 2011 e do Pedro em 2013, dentre vários outros, todos cercados por policiais em atos do MPL; os esculachos de adolescentes e moradores de rua dentro e fora das delegacias nessa sexta-feira; os abusos contra mulheres, como aquelas obrigadas a ficar nuas para a revista após a última manifestação; as mais de cem prisões arbitrárias, os ferimentos por balas de borracha e bombas de estilhaço de ontem; o bloqueio do Choque à entrada dos advogados nas DPs; os instrumentos e instrumentistas da Fanfarra do M.A.L. quebrados pela polícia essa semana”, pronunciou-se o MPL em nota oficial.
Por dentro do ato
Como se sabe, o ato da região central recebeu muito mais atenção e cobertura da mídia, talvez envergonhada em criminalizar atores periféricos, que vivem condições indiscutivelmente desumanas. Assim, volta-se a tentar desqualificar o “vandalismo” de grupos “sem ideologia” e de “convicções antidemocráticas”. Dessa forma, o coronel Rossi, responsável pelo massacre policial daquele 13 de junho, logo se transformou em mártir, recebendo a solidariedade da classe política recém-deslegitimada, desde Alckmin até Dilma – por mais que sua atitude de se lançar aos manifestantes sozinho e desarmado seja suspeita por si só.
“Quando íamos ao terminal do Parque D. Pedro, a Fanfarra se dividiu em três grupos, para entrar por cada um dos portões do terminal e manter a música. Encontramos o resto da banda, saímos de dentro e fizemos um jogral, que declarou o ato encerrado. A partir disso, era pra gente se dispersar e ir embora. Só que começou a chover bomba de todo lado. Corremos, por um bom tempo, e chegamos na Sé. Queríamos entrar no metrô, mas percebemos que vinham de lá as bombas e as portas da estação foram fechadas”, conta ao Correio o manifestante Douglas (*), membro da Fanfarra do Movimento Autônomo Libertário e um dos 60 detidos da sexta-feira.
“Depois de encontrar o caminho da Praça da Sé, sentamos pra ligar a pra uma amiga que estava de muletas no ato. Ela não atende. Os helicópteros dão a entender que a movimentação se encaminha à Praça da Sé. A amiga envia um SMS confirmando, está perto da Fanfarra, estão chegando na praça. Há um jogral com a ideia de voltarmos ao terminal pra executar o catracaço, interrompido pela confusão (a ideia do MPL era abrir a porta de trás de todos os ônibus do terminal). Não dá tempo de sair dali. A tropa de choque cerca todo mundo e atira bombas e balas de borracha. Com a ajuda de um amigo, tentamos caminhar em meio ao gás protegendo a amiga de muletas. Ouço o zunido das balas passar muito perto”, escreveu o ativista Danilo Cajazeira.
De acordo com tais relatos, fica difícil definir quem teria iniciado os confrontos. A mídia, desesperada em criminalizar o movimento, se apressa em atribuir a culpa ao black block, atual centro das polêmicas e muleta da classe política que agora deseja utilizar as leis do código penal mediante os acontecimentos registrados em manifestações. Isso enquanto todos os governos se valem dos abusos policiais, como atestam os relatos de manifestantes detidos.
“Conseguimos fugir e pedimos informação para alguém que agora imagino ser um P2. Ele mandou a gente para baixo de um viaduto nas cercanias do terminal Parque d. Pedro, em direção à Radial Leste, onde ficamos fechados, sem saída, uma ratoeira. O choque chegou, largou suas bombas e ali fomos presos. Tinha também uns moradores de rua, que tomaram um susto bem grande, e uma mulher grávida. Mas acho que não foram detidos. Depois, sofremos aquela abordagem, xingamentos, arma na cabeça, ameaça… E jogaram mais bombas quanto já estávamos todos rendidos”, acrescenta Douglas.
Estranhamente, a polícia prendeu praticamente todos os integrantes da banda de música, além de algumas lideranças do MPL, que muito claramente não tiveram relação com os atos mais brutos no protesto. Enquanto isso, o black block, que se chocou algumas vezes com a polícia, como no caso do coronel, não teve membros detidos.
“Conseguimos escapar pela lateral da praça. Na contramão da nossa fuga, crianças e adolescentes dos bairros pobres próximos correm em direção ao conflito. ‘Quebra tudo, quebra tudo!’, gritam. Alguns estraçalham uma banca de jornal. O ódio – da polícia, da cidade, da exclusão – é visível nos olhos de cada um deles – alguns menores de 10 anos de idade”, conta Danilo, expondo um viés diferente, também verificado naqueles dias de junho nos quais a repressão baixou a guarda no centro da cidade.
Ao mesmo tempo, os detidos da Fanfarra experimentavam o estado de exceção do país. “Ficamos seis horas presos. No começo, abusaram, ameaçaram, xingaram, colocaram arma na cabeça, quebraram todos os instrumentos. Máscaras de gás (aliás, muito boas) foram confiscadas, assim como equipamentos de alguns jornalistas. Depois, foram verificando as fotos das máquinas ao lado de um perito, e tentando achar culpados ali mesmo. Um deles, Pedro Henrique, está até agora preso, porque apareceu numa imagem, ainda que não tenha feito nada na tal imagem. E ficou de pé a noite toda, de castigo. Eu mesmo cheguei a ser acusado, por causa do tênis identificado, mas o perito disse que não acreditava ser eu na imagem. E ainda teve outros dois que estavam sangrando e ficaram lá dentro, mesmo com a cela entupida, pingando sangue, sem poder ir ao banheiro e tomar algum cuidado”, conta Douglas
“Na porta da delegacia, esperamos os mais de 70 presos saírem. Havia dúvidas sobre quem estava lá. Eu havia recebido a informação de que uma companheira, cujo celular estava na caixa postal desde a hora da primeira confusão, estava detida ali. As pessoas foram sendo liberadas, sob o olhar de desdém dos homens do Choque”, descreve Danilo.
Com o passar do tempo, disse Douglas, o tratamento dos carcereiros foi ficando “progressivo”, conforme os advogados conseguiam atuar e superar a deliberada má vontade policial em respeitar os direitos dos presos previstos em lei – isso pra não entrar na discussão dos critérios das prisões “para averiguação”, equiparadas pelos críticos às detenções arbitrárias da ditadura.
“Chamaram até um dos detidos de macaco. Viramos pro policial negro e dissemos: ‘e aí?’. Ele fez que não viu. Porém, o tratamento foi ficando melhor, eles foram afrouxando. Depois de muita demora, foram deixando os advogados entrarem”, completa Douglas. No fim, uma hipótese: “fomos em 60 presos pro 1º DP, a fanfarra inteira. ‘Miraram bem’ dessa vez, tinham muitas figuras conhecidas do MPL, dessas que já deram entrevistas e tudo. Parece que queriam lideranças”.
Ofensiva midiática
Apesar de também ter sido vitimada pela agressividade policial, a grande mídia cumpre o papel que muitos já previam, após arrefecer nas críticas aos protestos e manifestações em face da adesão nacional pós-junho. Milita pela criminalização e desqualificação das manifestações, batendo incessantemente na tecla de uma violência supostamente altíssima dos que chama de vândalos, atribuída em sua maior parte aos black blocks – a despeito das inúmeras acusações de infiltrados policiais.
Note-se que, antes de o debate público sobre os novos atos do MPL se esgotar, a semana iniciou-se com mais dois assassinatos a esmo da polícia, em bairros da zona norte, seguidos de revolta popular que paralisou vias e avenidas, queimou ônibus e confrontou os militares. No meio disso, outro manifestante foi baleado.
Nada que mudasse o roteiro do Jornal Hoje, da Globo, que tratou o assunto sob a ótica do trânsito prejudicado e, pasme-se, do “vandalismo” dos manifestantes enlutados. Dias antes, o jornal O Globo causou revolta no público, ao noticiar protestos violentos em Roma, contra cortes do governo, sem uso de termos desclassificantes, enquanto sobravam imagens de vidros quebrados e conflitos com a polícia.
O diário Folha de S. Paulo, cujo auto-culto de um pretenso progressismo tem sido há tempos deixado no armário, talvez reflita com a maior evidência o massacre midiático monocórdio em cima de manifestos e manifestantes, a partir de postura maniqueísta indisfarçada e, pode-se dizer, primitiva. A manchete de domingo, 27 de outubro, ‘95% desaprovam black blocs, diz Datafolha’, foi o começo de incrível série de matérias críticas ao que chamam de vandalismo e de distorções que envergonham o jornalismo.
Na segunda, dia 28 de outubro, articulistas se juntaram em série para exprimirem solidariedade ao coronel que foi agredido na sexta, 25, no centro de São Paulo. Com todas as críticas que devem obviamente ser feitas ao ato de agressão que vitimou o coronel, resta incrível a obtusidade com que se bate na mesma tecla, com que se abusa de clichês reveladores de um retrógrado conservadorismo, e nem mesmo se dirige o olhar em busca de uma história de violência cujas vítimas nem de longe se esgotam na figura do coronel. Matérias veiculadas nesse dia na página 2 do diário trazem em profusão termos como ‘grupelhos’, ‘tirania privada’, ‘partido da violência’, ‘covardes’, adjetivações tão ao gosto daqueles que se recusam a aprofundar o olhar sobre a realidade, o que certamente as tornaria desnecessárias e inócuas.
Algumas das ideias defendidas, por sua vez, por estes mesmos articulistas chegam a ser de uma assustadora cegueira, face a dados concretos da violência do Estado e, por conseguinte, policial, tão característica de nações que não acertaram as contas com seus passados sangrentos – segundo a socióloga argentina Pilar Calveiro, trata-se da reciclagem do ‘poder desaparecedor’ nas sociedades que passaram pelo regime militar, e o caso Amarildo, simbólico de tantos outros, está aí para não deixá-la mentir. Atribui-se ao ‘pensamento de esquerda’, que seria uma ‘influente elite’, o fato de que ‘quase 30 anos de democracia não bastaram para retirar de toda a repressão policial a mácula preliminar do autoritarismo’. Ao mesmo tempo, comemora-se o sucesso que foi o leilão de Libra em função do que seria um raro acerto do poder público, ao permitir que o Exército garantisse a operação.
Todas essas são palavras, frases e pensamentos que mereceram destaque na primeira página da Folha. Ao contrário de algumas outras matérias, um tanto mais analíticas, como ‘É preciso deixar para trás estigmas sobre black blocs e polícia’ (aqui), publicada na própria segunda-feira, escondida no meio do caderno Cotidiano. Ou mesmo textos mais íntegros, como o que Vladimir Safatle veiculou na terça-feira, 22 de outubro, sob o título ‘Violência e Silêncio’ – provavelmente não lido pela maioria dos articulistas, e cuja essência desmonta tantas falácias a seguir proferidas na mesma página em que escreve.
Ressalta Safatle que “a política brasileira tem se transformado na arte do silêncio. Arte de passar em silêncio sobre democracia direta, como pagar dignamente professores, como implementar uma consciência ecológica radical, como quebrar a oligopolização da economia, como taxar mais os ricos e dar mais serviços aos pobres. Mas também a arte de tentar silenciar descontentes. Nesse contexto de mutismo, a violência aparece como a primeira revolta contra a impotência política. A história está cheia de exemplos nos quais as populações preferem a violência genérica à impotência. Ainda mais quando se confrontam com uma brutalidade policial como a nossa. Como todo sintoma, há algo que essa violência nos diz. A resposta a ela não será policial, mas política”.
E em tempo: do mesmo modo que o citado Jornal Hoje, da Globo, a Folha também não se interessou muito pelo falecimento de Douglas Martins Rodrigues, morto pela polícia de domingo (27) para segunda (28). A edição de terça-feira, 29 de outubro, noticiou o fato em um subtítulo de capa.
‘Volta Maio’
A mídia está em campanha desabrida para que tudo “volte a maio”. Na contramão, florescem mídias autônomas. A população se dispõe cada dia mais a se levantar contra a violência diuturna a que tem sido historicamente submetida.
(*) Douglas é nome fictício de nosso entrevistado, que preferiu não se identificar. O Douglas de verdade tinha 17 anos e foi assassinado pela polícia militar na frente de seu irmão de 12 anos, nesta segunda-feira. O crime ocorreu na Vila Medeiros e a polícia alega que a arma disparou por acidente. Testemunhas dizem que o tiro que acertou seu peito foi muito bem dado. No dia seguinte, a zona norte viu o ‘incidente’ se repetir, no Jardim Brasil.
Fonte: Combate Racismo Ambiental