“Participar da 66ª Reunião da Mesa Diretiva da Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe foi uma oportunidade estratégica para reconhecer as propostas dos países da região e fortalecer as alianças com organizações da sociedade civil, tanto as parceiras históricas desde a Conferência de Pequim quanto as novas. Esse reconhecimento e a construção de alianças são ferramentas essenciais para enfrentar o cenário político internacional que contextualizará a sessão da CSW69 em 2025”. A avaliação é de Carolina Almeida, assessora internacional de Geledés-Instituto da Mulher Negra, sobre o encontro que aconteceu na sede da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), em Santiago do Chile, durante os dias 4 e 5 deste mês. Além de Carolina, estiveram como representantes de Geledés no encontro Letícia Leobet, também assessora internacional, e a coordenadora de Formação, Cuidado e Emancipação, Nilza Iraci.
A conferência regional foi uma reunião preparatória para a 69ª Comissão sobre a Condição da Mulher (CSW69), prevista para ocorrer em março de 2025, em Nova York. A CSW se estabeleceu como o principal espaço de debate global sobre as questões de gênero e o Brasil possui uma longa trajetória de engajamento nesta conferência, sendo um colaborador da Plataforma de Ação de Pequim, que deverá ser revisionada nesta ocasião.
“Em um momento em que os governos da região e do mundo atravessam uma onda de fundamentalismo sem precedentes, colocando em risco nossos direitos duramente conquistados, é da maior importância que retomemos esses espaços e convoquemos todas as mulheres para se comprometerem com este legado. Temos os instrumentos produzidos na IV Conferência Mundial das Mulheres, na Conferência de Direitos Humanos de Viena, na Conferência do Cairo, na Conferência de Durban, no Consenso de Montevidéu. Enquanto mulheres negras trazemos a experiência acumulada na construção dessas agendas. Então o nosso grande desafio é utilizar este momento de Beijing+30 para estabelecer um diálogo entre as diversas gerações de feministas no Brasil”, assinala Nilza Iraci.
Neste contexto, Carolina Almeida destaca a relevância de circular o documento de posicionamento de Geledés, uma organização fundada e liderada por mulheres negras, durante a conferência de Santiago por justamente constatar a “urgência da inclusão representativa das mulheres afrodescendentes na discussão e nas políticas públicas”, uma vez que a população negra brasileira compõe o maior segmento populacional do país.
Segundo relato de Carolina, o posicionamento de Geledés foi apresentado em Santiago à ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, que prometeu incluir as recomendações do instituto. E isso realmente ocorreu, como ela conta: “Em sua fala oficial, a ministra honrou esse compromisso, fortalecendo ainda mais nossa demanda”.
Notadamente, foram várias as pontuações da ministra baseadas no relatório de Geledés. Logo no início de seu discurso, entre os pontos mencionados por ela está a vigente ameaça global à democracia e, em especial, aos direitos humanos. O documento de Geledés abre justamente com a explanação sobre “um momento sociopolítico crítico, marcado por retrocessos globais no campo dos direitos humanos, impulsionados pelo recrudescimento da extrema direita em diversos países”, sublinhando que “esse fenômeno, acompanhado por uma polarização política acentuada, ameaça desmantelar conquistas históricas e impõe novos desafios ao avanço da igualdade de gênero e da justiça racial”.
Em sua fala, a ministra Cida afirmou que “nenhum direito das mulheres sobrevive se nós não tivermos um país democrático”. E seguiu neste tom de entrelaçamento entre a democracia e os direitos das mulheres. “A defesa dos direitos da mulher, a defesa das políticas públicas para as mulheres do Brasil, passa por um primeiro pressuposto, que é o pressuposto da democracia. E nós, no Brasil, queremos dizer isso. Isso é um critério importante. Para todas as mulheres. E vou dizer por que eu trabalho nessa perspectiva. Porque se nós formos ver, durante todo o processo que nós vivemos, desde o golpe da presidência, já desde, na verdade, desde 2010, 2012, que no Brasil a gente começou uma tal de ideologia de gênero, uma caça a todas as políticas para as mulheres, que foi culminar no golpe da presidência. Nós temos que fazer isso. No processo de construção permanente, numa busca de retirada de direitos das mulheres no nosso país. Esse é um desafio que nós precisamos discutir e colocar, que os países precisam pensar efetivamente”, disse ela.
Ainda no posicionamento de Geledés, foi enfatizada a questão da superação da pobreza intergeracional, com a exigência de “reformas profundas e abrangentes que garantam condições de trabalho justas, igualdade salarial e acesso equitativo a oportunidades econômicas”. “O empoderamento econômico das mulheres afrodescendentes, nesse sentido, não é apenas uma meta em si, mas um mecanismo de reparação histórica e redistribuição de recursos que confronta as bases opressoras das economias modernas. Políticas inclusivas e interseccionais, que considerem as necessidades específicas de mulheres afrodescendentes, indígenas, LGBTQIA+, mulheres com deficiência, mulheres em todos os seus ciclos de vida e outros grupos marginalizados, são fundamentais para construir um ambiente econômico mais equitativo e diversificado, beneficiando toda a sociedade com economias mais robustas e resilientes”, diz o documento.
Cida Gonçalves, novamente, foi na mesma linha. “Nós precisamos discutir, e foi colocado aqui, a importância da questão da igualdade. Só que eu quero discutir a igualdade quando nós vamos pensar na questão da pobreza. Os nossos governos, os nossos países discutem a pobreza com que caráter? Só da fome? Porque no Brasil não é só a fome. No Brasil a fome tem cara, tem raça, tem sexo. Então, no nosso país, 75% da mulher, das pessoas que passam por fome são mulheres. E a maioria delas, 50% são homens solos. E dessas, 80% são mulheres negras. Portanto, nós precisamos definir qual é a pobreza. De onde está a pobreza?”, provocou ela.
Na área da saúde, a ministra também se apoiou em Geledés ao se referir à alarmante mortalidade materna de mulheres afrodescendentes. O relatório da organização cita que em 2021, 61,3% das mortes maternas no Brasil foram de mulheres afrodescendentes, em uma constatação evidente sobre a desigualdade racial e o peso de estereótipos que desumanizam essas mulheres.
“Nós precisamos falar da saúde. No Brasil, nós aumentamos a violência obstétrica nos últimos anos. Você sabe o quê? Morrem as mulheres negras. Oitenta por cento são as mulheres negras que morrem na violência obstétrica. A violência obstétrica ou a ordem de imortalidade materna, que não deveria existir após 30 anos de Beijing. E aí, muito mais do que isso, a semana passada nós sofremos uma derrota da Comissão de Justiça da Câmara Federal, que passou uma PEC que proíbe a questão do aborto legal, que existe desde 1940 no nosso país, que é a questão da violência sexual, do estupro, no caso de estupro, no caso de risco em 2012, o STF incluiu os casos de anencefalia”.
Sobre a interlocução entre Geledés e a ministra, a assessora internacional do instituto, Letícia Leobet, assinalou que “a articulação permitiu uma análise atenta dos desafios contemporâneos, como guerras, crises sanitárias e a crise climática”. Segundo Letícia, “o fortalecimento do diálogo com o Estado brasileiro foi um passo importante, ao visar o compromisso em impulsionar agendas de garantia de direitos das mulheres de forma interseccional e coerente com a realidade nacional”.
E essa interseccionalidade foi notada no discurso de Cida Gonçalves. “As mulheres do Pantanal, as mulheres da periferia, de São Paulo, do Rio, as mães que perdem seus filhos mortos por um tiro, por serem negros. As mulheres do campo e da floresta, as pescadoras. No meu país, nós não temos uma mulher, nós temos diversas, e cada uma tem uma realidade, uma cultura, que vem do seu povo, da sua região, porque tem que ser considerada no processo de políticas públicas, que não pode ser enquadrada dentro de um único item da palavra mulher. São mulheres, são diversas, e essa diversidade tem que estar colocada”, afirmou ela.
Letícia Leobet entendeu a conferência de Santiago como um relevante passo preparatório para a CSW em 2025 e apontou o que vem por aí. “O ano de 2025 representará uma grande janela de oportunidades para as discussões de gênero, devido à revisão de Beijing +30, à revisão do ODS 5 sobre igualdade de gênero, às discussões sobre a reforma da arquitetura financeira no contexto do financiamento para o desenvolvimento e à realização da COP 30 no Brasil. Esta última, em particular, implicará uma grande responsabilidade na reversão dos retrocessos relacionados ao item de agenda de gênero e mudança climática”, afirmou ela.