As Pioneiras

Se no início dos anos 1990 lá nos Estados Unidos já se falava sobre a influência da Cultura Hip-Hop na moda, mesmo com a discriminação do movimento, aqui no Brasil não era diferente. As nossas pioneiras já utilizavam a moda como forma de expressão.

Nas décadas de 1980 e 90, o movimento Hip-Hop na cidade de São Paulo era majoritariamente masculino, com pouca representação feminina. Ao longo dos anos, apesar de serem poucas na cena, as mulheres se posicionaram contra o machismo em suas letras e legitimaram sua presença nas vestes, nas artes e nas produções de eventos. Esses três fatores foram fundamentais para a consolidação da presença feminina no Hip-Hop.

Um exemplo disso é o Rap Girl ‘s, primeiro grupo feminino do gênero no Brasil, formado em 1986. Além das letras, o grupo se destacava com a presença de Sharylaine, que fazia questão de se vestir de rosa durante suas apresentações.

“Os menino tava tudo de preto e eu falei ‘não, tem que ver, eles tem que ver que tem uma mulher aqui’, então botava rosa e a cor de rosa pra mim é altamente política”
 
, destaca a MC.

Na cena desde 1985, Sharylaine era integrante da equipe de breaking Nação Zulu  e já como MC, participou da coletânea Consciência Black Vol 1 da Zimbabwe Records em 1990, mesmo álbum onde grupo Racionais MCs  ingressa no movimento.

Em contrapartida, muitas mulheres se “travestiam” com roupas muito grandes e masculinas, com a intenção de serem respeitadas e aceitas nesses espaços. A rapper Rubia, integrante do Grupo RPW e uma das pioneiras do bate-cabeça no Rap, se recorda de como precisava se vestir naquele período para ser respeitada: “A roupa, o traje era muito essencial para você identificar as pessoas que estavam na mesma cultura que você. A nossa referência era predominantemente masculina. A calça larga, o camisetão e a bombeta…”, relata.

Rose MC, que entrou nesse universo como dançarina B-girl e depois como MC, reflete sobre esse começo:

A GENTE NÃO PODIA SE ESPELHAR EM MULHERES E NEM SER MUITO FEMININA, PORQUE PARA ANDAR COM OS CARAS E SER ACEITA NO ROLÊ TINHA QUE ESTAR COM UMA ROUPA BEM MASCULINA

Atualmente Rose enxerga a presença da mulher nesse espaço com mais liberdade de atuação, por isso, desenvolve projetos como arte educadora, voltados para cultura Hip-hop.

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Influência da Moda

Em 1993, por uma influência norte-americana, o Hip-Hop estava em alta no Brasil e em vários outros países, mas o movimento praticamente não possuía visibilidade feminina, fazendo com que suas seguidoras dependessem das informações que chegavam de fora do país e das mulheres que estavam bombando. 

Salt-N-Pepa, Queen Latifah, Lil’ Kim, Da Brat, MC Lyte… Essas foram algumas norte-americanas que inovaram em seu tempo, trazendo em seus clipes referências de moda em diferentes corpos e estilos. A presença dessas mulheres no meio artístico trouxe uma quebra estética nesse universo e reverberou mundialmente, inspirando as mulheres do movimento, inclusive aqui em São Paulo.
A mistura de inspirações trazida das norte-americanas (e mesmo dos homens da cena) ficava nítida quando os apreciadores da cultura Hip-Hop se encontravam em espaços como a Rua 24 de Maio e o Largo São Bento, principais locais na cidade de São Paulo onde os jovens se reuniam para ouvir rap, dançar e fazer batalhas de rimas. Apesar dessas mulheres ainda serem poucas, era possível ver as influências nas equipes de Breaking, nas batalhas ou rachas.

Essa onda foi influenciada pelo acesso a LPs e Fitas K7 vindas de fora, mas também pela chegada da MTV Brasil, em 1990, um canal de TV que se propunha a falar a mesma língua entre os jovens da época. Esse acesso foi um importante meio para que as minas se vissem representadas e pudessem refletir sobre o potencial feminino.

Rubia do grupo RPW cita: “Nossas referencias eram realmente, sempre foram as estadunidenses, no visual. Quando a gente começa a acessar o  Yo! MTV Raps que era o canal que a gente conseguia ver o que tava acontecendo na gringa, então a gente se inspirava nas MCs la de fora. E era meio padrao, né, usar entao as calcas largas…”.

Com a evolução, difusão e popularização do trabalho das mulheres do Hip-Hop nas grandes mídias e streamings, elas puderam utilizar sua própria personalidade para influenciar mundialmente outras mulheres e a indústria da moda. 

Se naquele período era difícil encontrar essas representações, hoje, no Brasil, quase meio século depois do nascimento da cultura Hip-Hop, são as mulheres do movimento que ditam sua própria moda.

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ESPAÇOS DE ENCONTRO

Antes no Largo São Bento, hoje em rolês como a Festa Punga e o Baile da DJ Sophia, festas organizadas por mulheres, vemos a presença feminina não somente como complemento, mas como parte essencial.

Nossa equipe presente na Festa Punga conversou com Catarina Marçal, uma das idealizadoras do projeto juntamente com o coletivo A-Team. Ela explicou sobre a criação do evento: “Punga é um nome legal, é uma gíria mesmo. É tipo ‘tô pronto, tô em punga, tô preparado pro que vier’ e aí foi dessa necessidade […] da gente ter uma festa de música preta mesmo, que a gente conseguisse falar com a galera e ainda se reconhecer. Isso é um encontro de amigos, sabe?”. Na cena desde outubro de 2016, a festa não tem palco, unindo artistas e público num ambiente único de apresentação, e esse clima de união fica claro no ambiente.

Conversando com o público da festa, perguntamos o que a moda significa para elas. Stephany citou: “… roupa não tem gênero, tá ligado, tipo então a gente quis se vestir da forma que se sinta bem. E eu curto ser menininha, às vezes um pouco mais ‘pirainha’ mas é assim, eu me sentir bem da forma que eu quero ser. Mas eu sempre busco um look confortável porque eu curto muito dançar. Eu gosto do meu passinho de ficar aqui, ó, só curtindo. Então é isso, conforto”. Sua opinião reflete muito a da juventude atual: estar confortável, do jeito que se sentir melhor.

Já no Baile da DJ Sophia, evento criado no início de 2022 e que já conta com 3 edições, podemos observar uma rica concentração cultural, onde artistas de diferentes regiões do país se reúnem para tocar para um só público. 

Sophia começou a tocar  com apenas 16 anos e  atualmente busca através dos seus bailes conscientizar que as mulheres também podem produzir seus eventos, e com uma line-up majoritariamente composta por mulheres. Ela reforça a importância do pensamento coletivo para as meninas conseguirem alcançar seus objetivos, e se fortalecerem como grupo dentro da cena do Hip-Hop.

 E isso ela mostra muito bem em seu baile, onde o público jovem chega e se reconhece no estilo e na diversidade de pessoas que frequentam.

Cássia Nunes, que esteve presente na segunda edição do evento, relatou sobre essa diversidade de estilos:  “Eu cheguei no rolê e já sabia que seria incrível. Muitas pessoas pretas e com estilos diferentes, como ‘mandrake’, ‘afropaty’. Sem contar a música: tinha a Bivolt, Cristal e MC Luanna, que eu ouço e curto muito, porque falam de coisas que eu vivi também. Me senti pertencente, livre pra dançar e curtir.”

BÔNUS
TRIBOS URBANAS 1

Nos anos 80 e 90, identificavamos os coletivos e grupos através da estética muitas vezes, eram as chamadas tribos. Segundo o sociólogo francês Michel Maffesoli, Tribos Urbanas podem ser classificadas como grupos de pessoas que se unem com base em interesses em comum, hábitos, ideias similares, maneiras de se vestir ou gosto musical semelhante. 

Angela Maria, que também estava entre o público da Festa Punga, relembra a questão das tribos urbanas:  “A gente viveu nos anos 90 muito as tribos, né? Então hoje não existe mais isso acredito, né? Das tribos… Mas o quanto as individualidades são importantes, né? Então eu posso tá com uma roupa larga e amar o funk, o hip hop e o rock…”

BÔNUS
MAPA DOS ROLÊS 2

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ANTES INFLUENCIADAS, HOJE REFERENCIAS:

Com influência das norte-americanas e do cotidiano das periferias, mulheres como AJuliaCosta, MC Taya e Tasha e Tracie são referências para milhares de outras jovens. 

AJuliaCosta, que além de MC é estilista, começou na moda antes da música, ainda com 14 anos, no interior de São Paulo. O que eram apenas ideias de customizações se tornou negócio em 2017, quando AJC tinha apenas 17 anos. Hoje a marca AJuliaCosta$hop veste pelo Brasil todo milhares de meninas que se inspiram no estilo de vida da artista.

Em entrevista ao portal Kalamidade, Aju citou sobre a importância de ter uma marca que representa outras mulheres: “de uma mulher negra para qualquer mulher negra que se sentir representada, ao contrário das grandes marcas que, mesmo lucrando muito com toda a divulgação gratuita que damos à elas, ainda têm medo de se associar à nós, pretos de origem periférica, e esse medo tem nome, racismo e preconceito”.

Logo AJC$hop

Foto: BADDIEBAP

Outra MC da atualidade que tem movimentado as questões que percorrem a moda na cultura Hip-Hop, é a carioca MC Taya, que além de cantar  é comunicadora e influenciadora digital. A artista aborda em sua arte diversos temas e entre eles destaca sempre a moda e os diversos estilos das mulheres pretas dentro e fora do movimento hip-hop. A MC que criou no Instagram uma série focada em elucidar os mais diversos estilos das mulheres negras no movimento, trazendo fatos históricos e imagens, lançou em 2019, o single “Preta Patrícia”, uma alusão a expressão utilizada para denominar mulheres pretas bem sucedidas e independentes, mulheres em posição de destaque.

Sou inteligente pacas
Te mostro o meu talento
Na federal sou graduada
E sabedoria eu ostento
Não é só a cara
Que é bonita e eu te provo
 Tenho toda essa marra
Cê que sabe, eu posso!”

Por fim, não podem faltar as gêmeas Tasha e Tracie. A dupla começou a ter reconhecimento através de seu blog, Expensive $hit, onde tratava sobre a moda de forma acessível, fortalecendo a estética de quebrada.
As irmãs fizeram isso tão bem que alcançaram reconhecimento internacional, sendo as primeiras brasileiras a aparecerem no portal Afropunk, ainda em 2015. Além disso, atuaram como DJs e hoje são MCs e verdadeiros fenômenos da moda e do Rap. Com hits como “Cachorra Kmikze”, “Salve” e “Tang”, a dupla foi indicada ao BET Hip Hop Awards 2022 na categoria de Melhor Flow Internacional, e recentemente foi capa da renomada revista de moda Elle.

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COLETIVIDADE É O QUE LIGA

“E a gente evoluiu, por quê? Porque nós criamos núcleos femininos. Então desde o Femini Rappers que nasceu em Geledés – Instituto da Mulher Negra ao Minas da Rima em 2000; A Frente Nacional de Mulheres no Hip-Hop em 2010… Hoje, se você disser ‘olha, são um, dois, três, quatro, cinco’, vem uma avalanche de pessoas dizendo ‘olha, tem seis, sete, dez, trinta, cem’. Então, hoje as pessoas reconhecem essa presença feminina da cultura hip-hop, na cultura hip-hop!”, citou Sharylaine.

“E a gente evoluiu, por quê? Porque nós criamos núcleos femininos. Então desde o Femini Rappers que nasceu em Geledés – Instituto da Mulher Negra ao Minas da Rima em 2000; A Frente Nacional de Mulheres no Hip-Hop em 2010… Hoje, se você disser ‘olha, são um, dois, três, quatro, cinco’, vem uma avalanche de pessoas dizendo ‘olha, tem seis, sete, dez, trinta, cem’. Então, hoje as pessoas reconhecem essa presença feminina da cultura hip-hop, na cultura hip-hop!”,

citou Sharylaine.

O Femini Rap, se deu dentro do Projeto Rappers, iniciativa desenvolvida por Geledés, direcionada a juventude preta que chegou a instituição denunciando as violências sofridas pelos jovens negros na cidade de São Paulo. Geledés acolheu esses jovens e deu suporte jurídico. 
Dentro do projeto, surgiu a necessidade de ampliar os recortes que atravessavam essa comunidade jovem e negra da cidade. Sendo assim, surgiu o Femini Rap, coordenado por Lady Rap e tinha a intenção de discutir as questões de gênero dentro do movimento e inclusive orientar os grupos formados por homens sobre as questões das mulheres como maternidade, paternidade responsável e outros. 
Do Projeto Rappers, surgiu a revista Pode Crê! que completa 30 anos em 2023. O veículo de comunicação foi o primeiro direcionado ao publico jovem negro e é considerado referencia para diversos outros que surgiram após ele. A revista chegou tão longe, que foi possível conectar pessoas do Brasil todo, coisa que para época era considerado algo difícil. 

Ouça nosso podcast e saiba mais sobre o Projeto Rappers, que completa 30 anos agora em 2023, .

Já a Frente Nacional das Mulheres no Hip Hop (FNMH2) que surgiu dentro do I Fórum Nacional de Mulheres no Hip Hop, que ocorreu em Carapicuíba em 2010. A organização promove debates e discussões sobre o espaço das mulheres na cena e possui representantes espalhados em mais de 17 estados por todo o Brasil.

A página Clássicas Hip Hop, criada pelas já citadas Divas do Hip-Hop Sharylaine, Rubia e Rose MC, é outro exemplo de coletividade no Hip-Hop. Presentes na cena desde os anos 1980, elas seguem firmes e fortes, fortalecendo umas às outras e utilizando o espaço não só para divulgarem seus próximos lançamentos, mas também para darem voz a outras importantes mulheres do movimento através de lives, entrevistas e bate-papos. A permanência dessas mulheres atuantes no movimento Hip-Hop se dá inclusive por esse senso de coletividade que existe entre elas.

Estivemos presentes na festa de comemoração de 30 anos do grupo RPW e quando questionada sobre o grupo que aniversariava e o que ele representa, Sharylaine não hesitou em citar primeiramente sua amiga Rúbia que faz parte do grupo: 

“Uma mulher gigante que é a Rúbia, que resistiu ao longo do tempo, que ta ai completando 30 anos. A únião deles é uma referencia para todas as gerações que vieram posteriormente, porque é difícil”

Rúbia também foi enfática ao lembrar como as mulheres começaram a se organizar no movimento: 

“Quando as mulheres começam a se organizar pra se empoderarem no sentido de se fortalecerem mesmo, nisso de não se sentirem tão só nesses espaços predominantemente masculino, as coisas começaram a ter algum avanço.”

O projeto UhmanasTV surgiu durante a pandemia, momento em que mulheres DJs sentiram a necessidade de se organizarem para abrir espaço de divulgação e mostrar o que as minas da cena estavam produzindo. Inicialmente transmitido pela Twitch e hoje em outras redes sociais e plataformas, tem como objetivo fortalecer o trampo de mulheres de diferentes ramos dentro da música e mais específico dentro da discotecagem, como DJs, produtoras, letristas e cantoras.

O Uh!manasTV não foi o único projeto desenvolvido por mulheres para mulheres. O Projeto B’Girls à Paris, desenvolvido pelo CCSP, foi lançado em 2021 com a intenção de fortalecer a cultura do Breaking, que hoje deixou de ser marginalizado para se tornar modalidade olímpica. A iniciativa traz nomes como Miwa, Thaisinha, Dedessa e Bia como professoras e já conta com duas edições.

Ainda na Festa Punga, Stephany também nos contou sobre o que o coletivo significa para ela: “Então, cheguei aqui justamente por meio do coletivo, aí faço parte do Rolê de Pretas, que é um rolê de minas pretas, em que a gente tem um único objetivo de sermos felizes juntas. Então, esse processo, eu tava contando aqui pra nossa amiga, não é porque eu nasci preta que eu já sou racialista, já fui racializada desde sempre. Então, tem um momento que eu senti falta de ter outras pessoas pretas, outras amigas pretas, e  o coletivo proporcionou isso.”

Ao longo dos quase 50 anos da Cultura Hip-Hop, os coletivos foram de extrema importância tanto para a consolidação do movimento, quanto para as mulheres dentro dele. Apesar de ser um caminho árduo, todo o esforço tem valido a pena quando vemos os espaços um pouco mais abertos para as novas gerações de minas. Tanto na arte quanto na estética, as mulheres hoje podem atuar com mais liberdade.

Para contemplar algumas das mulheres do movimento que rimam, criamos no Spotify a playlist Mulheres no Hip-Hop BR apenas com mulheres da cena. Confira a AQUI a playlist e sinta a vibe e potência dessas mulheres.

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