Projeto Rappers – Memória Institucional de Geledés

Artigo produzido por Redação de Geledés

Desenvolvemos de 1992 a 1998 um projeto específico para a juventude negra chamado Projeto Rappers. Não foi um projeto que decorreu de uma definição institucional; ele foi provocado por demanda de jovens negros pertencentes a bandas de rap da cidade de São Paulo.

Esses jovens chegaram ao Geledés trazendo-nos questões muito complexas que nos questionaram institucionalmente nos impulsionando a assumir responsabilidades e protagonismo em relação às diferentes facetas da violência que se abate sobre os jovens negros na cidade de São Paulo.
O que ocorria naquele momento? Bandas de rap formadas por esses jovens que se exibiam nas periferias de São Paulo para um público semelhantes a eles, com músicas com denúncias contundentes sobre as condições de marginalização social, racismo, preconceitos e violência a que estão expostos os jovens negros eram sistematicamente vítimas da violência policial que, via de regra, os tiravam dos palcos em que se apresentavam com agressão e flagrante desrespeito ao direito de liberdade de expressão.
Um caso emblemático, na época, uma banda de rock se apresenta em São Paulo, seu vocalista abaixa as calças e mostra as suas partes traseiras para a platéia que delira e ainda cospe na bandeira brasileira. Nada lhes aconteceu. No entanto, rappers cantando e denunciando a violência eram brutalmente retirados dos palcos e enquadrado pela polícia em crime de desacato à autoridade.
Lady Rap - Cristina Baptista
Lady Rap – Cristina Baptista

Eles então nos procuram para saber o que o SOS Racismo do Geledés poderia fazer para protegê-los. O SOS Racismo é um serviço de assistência jurídica gratuita que o Geledés oferece a vítimas de discriminação racial e violência sexual. Queriam que advogados estivessem presentes nos shows que realizavam para intervirem em situações de violência policial. Argumentamos sobre a impossibilidade de um serviço daquela natureza poder atender a uma demanda daquela magnitude e propomos um seminário com as bandas em pudéssemos discutir aquelas demandas à luz do desenho institucional do Geledés para a área de direitos humanos com vistas identificar as possíveis interfaces entre a ação cultural que eles realizavam e as perspectivas que orientavam a nosso trabalho no sentido de identificar possibilidades de atender, em alguma medida, às suas expectativas. Desse seminário nasceu o Projeto Rappers, uma parceria pioneira entre uma ONG e bandas de rap que se tornou referência para muitas experiências que se desenvolveram posteriormente no país.

As bandas agregadas em torno do Projeto Rappers passaram a compor os Fóruns de Denuncia e Conscientização do Programa de Direitos Humanos do Geledés trazendo a originalidade de articular a atividade cultural com a ação política usando a linguagem musical como instrumento de conscientização e valorização da juventude negra introduzindo assim esse novo paradigma para a nossa organização.
Dessa forma o Projeto Rappers constituiu-se numa estratégia de atenção aos jovens negros da cidade de São Paulo organizados em torno do movimento hip hop voltada para potencializar as vozes desses atores sociais e apontar e propor caminhos para o enfrentamento das questões por eles trazidas.

Com isso buscou-se promover por meio de diferentes atividades de capacitação profissional, de formação musical e em direitos humanos:

Logo Projeto Rappers Web
Logo Projeto Rappers Web
  1. O fortalecimento das bandas de rap como instrumento de denúncia e conscientização dos jovens negros em relação ao racismo, ao sexismo e a marginalização social.
  2. A formação de quadros para a luta contra o racismo e a discriminação de gênero pelo desenvolvimento da capacidade de mobilização e organização política dos jovens negros e ampliação de consciência de cidadania e capacidade reivindicatória;
  3. O desenvolvimento de projetos de capacitação profissional que pudessem ter caráter preventivo para este segmento da população negra que, pela sua condição social, torna-se mais vulnerável para a cooptação pela marginalidade;
A partir dessa estratégias e das várias atividades que se desdobraram pudemos assistir o Projeto Rappers potencializando a ação política das bandas que o compunham, gerando lideranças juvenis capazes de realizar atividades de reflexão, debates, etc., em escolas da rede pública e privada, em faculdades, presídios, nos veículos de comunicação de massa, especialmente rádio e TV.
Revista Pode crê! nº 1
Revista Pode crê! nº 1

Dentre as muitas realizações desse projeto estão a participação no Grupo de Trabalho Afro-Brasileiro da Secretaria de Educação criado pela Resolução SE 104 de 15/06/94 que tem por objetivo desenvolver estudos, debates, pesquisas e atividades que visem subsidiar as ações dos demais órgãos da Secretaria de Educação no que diz respeito tanto á promoção da cultura afro-brasileira quanto á eventuais manifestações de preconceito racial na rede estadual de ensino e também a participação no projeto “Discriminação, Preconceito, Estigma: Relações de Etnia em escolas e no atendimento a saúde de crianças e adolescentes em São Paulo” desenvolvido junto á Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e comunidades e movimentos étnicos, coordenado pela Professora Doutora Rosely Fishmann da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo com apoio da Fundação MacAthur, UNESCO, Anistia Internacional, Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e diversas universidades do exterior. Este projeto se propunha promover o diálogo, a tolerância e a cooperação entre os diversos grupos étnicos e religiosos, os produtores do conhecimento, a escola pública e as comunidades, no sentido da erradicação de preconceitos, estigmas e discriminações de diferentes ordens. O Projeto Rappers participou com três jovens neste projeto na condição de pesquisadores e ativistas.

Revista Pode crê! nº2
Revista Pode crê! nº2
Outra conquista importante deste projeto foi a criação da revista Pode crê! o primeiro veículo segmentado para os jovens e adolescentes negros do país realizado integralmente pelos jovens do projeto sob a coordenação de um jornalista e que inspirou a emergência de outros projetos editorias segmentados para a população negra como a revista Raça Brasil.
Revista Pode crê! nº 3
Revista Pode crê! nº 3
O Projeto Rappers influenciou ainda, outras organizações e outros atores políticos a trabalharem politicamente com o movimento rap e a juventude negra em geral. O caso mais evidente foi o seminário: Caminhos da Cidadania – O Rap e a Dignidade Humana no Relacionamento Polícia Militar e Rappers organizado em 1995 pela OAB- secção São Paulo para discutir a relação entre a Polícia Militar e os Rappers com a presença massiva dos rappers de São Paulo e representantes do comando da Polícia Militar. Esta questão foi também objeto de debates em 2 emissoras de TV com participação dos envolvidos: rappers e policiais militares.
Revista Pode crê! nº 4
Revista Pode crê! nº 4

O Projeto Rappers estendeu a sua presença e reconhecimento a nível internacional. Uma das ações mais significativas foi a parceria com o Instituto Goethe na organização da visita da banda afro-alemã N FACTOR , e a relação de cooperação estabelecida com a banda afro-americana DIGABLE PLANETS da qual resultou em estágio de um dos membros do projeto junto a revista CALALOO editada pela Universidade de Virgínia sobre o movimento hip-hop no Brasil e EUA.

O recorte de gênero nesse projeto foi assegurado por meio do projeto Femini Rap coordenado pela vocalista Cristina Batista popularmente conhecida como Lady Rap. O Femini Rap constituiu-se no espaço de atenção específico para a discussão das questões das jovens negras em geral e delas no movimento hip hop em particular e de conscientização das bandas masculinas sobre as questões de gênero sobretudo as relativas aos problemas de concepção, maternidade e paternidade responsável, abuso de drogas e DST’ s e Aids. Durante a vigência do projeto não tivemos nenhum caso de gravidez precoce entre as jovens participantes do projeto. Como conseqüência desse trabalho o Femini Rap esteve presente na Conferência de Beijing (1995) representado por sua coordenadora que participou da elaboração do documento tirado pelas jovens latino-americanas de recomendações daquela Conferência de políticas públicas aos estados-membros das Nações Unidas para a promoção social das mulheres jovens.

O Projeto Rappers teve também participação ativa no “Seminário Continental Racismo y Xenofobia” – Propuesta de desarrollo de los afroamericanos – ocorrido em dezembro de 94 em Montevideo, onde tiver importante participação na definição e aprovação das propostas saídas deste seminário para o desenvolvimento e intercâmbios dos jovens afro-americanos no contexto da Rede Intercontinental de Organizações Negras criadas neste encontro.

Dentre as muitas dificuldades que os jovens em geral apontam sobre os programas e projetos voltados para a juventude está o fato de além desses programas e projetos serem desarticulados, neles os jovens são vistos “como um problema para a sociedade, não como detentores de direitos e protagonistas de mudanças.”
Dessa perspectiva, ao relatar essa experiência do projeto Rappers não busco ressaltar uma iniciativa exitosa institucional do Geledés Instituto da Mulher Negra. Busco enfatizar as lições que nos foram ofertadas por esses jovens.
Foram protagonistas desse projeto pessoas como o cantor X, Markão da banda DMN, L.F., DJ Slik, Lady Rap, Happin Hood, Thaíde e Dj Hum, Kal, Clodoaldo Arruda, membros do grupo de rappers Racionais MC sempre por perto, oferecendo apoio às iniciativas, Sherylaine, Ivoo, pessoas talvez desconhecidas do público adulto mas referências do universo musical sobretudo da juventude negra. E eles estão todos aí, presentes em vários espaços sociais. Alguns se tornaram gestores públicos, outros estão fazendo carreiras universitárias, outros ainda mantêm-se na militância musical e no protagonismo juvenil. Todos aprofundando o seu compromisso com os direitos humanos, com a inclusão social, com o combate à violência e a discriminação de e raça e de gênero.
Projeto Rappers
Projeto Rappers

Temos então um sentimento de gratidão em relação a esses jovens por nos terem desafiado a ir mais além do que as nossas perspectivas institucionais previam originalmente. Gratidão pela parceria com eles ter nos obrigado a aprofundar os nosso compromisso e sobretudo a nossa responsabilidade em relação aos desafios em que está imersa a juventude negra tão (des)assistida.

Solimar Carneiro - Coordenadora
Solimar Carneiro – Coordenadora

O nosso único mérito nesse processo foi o de termos sido capazes de uma escuta respeitosa, de reconhecermos e confiarmos de que eles é que tinham a legitimidade para apontar e liderar os processos de solução para os seus problemas. Fomos, sim, capazes de disponibilizar o apoio institucional para o desenvolvimento de suas propostas, de nos arriscar sustentando politicamente o seu protagonismo, de perceber que eles necessitavam apenas de uma chance real para desenvolver e exibir os seus múltiplos talentos. Em sendo dadas essas condições o resto é com eles e a resposta que recebemos foi sempre acima das expectativas.

Imagens : Arquivo Geledés

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