“Você não é homem não?! Aprende a se defender”.
Por Rodrigo Casarin, do UOL
Essa frase que tantos dizem para seus filhos que Samuel Gomes ouviu quando era uma criança. Recorrera ao pai porque seus primos estavam lhe chamando de Vera Verão, mas não encontrou o apoio ou acolhimento que esperava. Ficou devastado.
“Muitas crianças não encontram dentro de casa segurança para falar sobre o que vivem. Muitas delas voltam pra casa depois de ter sofrido alguma agressão física ou verbal sem contar nada aos pais, pois sabem que se contarem terão reprovação. Eu sendo negro, consigo voltar pra casa e reclamar sobre um ato racista, mas antes de me assumir eu tinha os mesmos medos que muitos LGBTs ainda têm hoje em dia. Se eu sofresse algum tipo de humilhação e ou agressão por causa da homofobia, não tinha pra quem falar. Muitos LGBTs não têm pra quem contar dentro de casa suas dores e alegrias”, diz Samuel, hoje homem feito, com 28 anos.
Sim, aquele momento com o pai é um exemplo do que Samuel encarou ao longo da vida para se descobrir e se aceitar. Negro e homossexual, além de todo o preconceito da sociedade no geral, ainda precisou lidar com a pressão que vinha da igreja: ex-evangélico, durante muito tempo foi visto como uma excrescência em seu meio e tinha certeza que o inferno lhe aguardava.
Todo esse processo de descoberta, superação, autoaceitação e plenitude enquanto indivíduo que o jovem narra agora no livro “Guardei no Armário”, que publica pela Pragmatha. A obra é o desdobramento da experiência que Samuel, designer gráfico e ativista de causas LGBTs, já desenvolvia em seu blog, que também chama “Guardei no Armário”, e em seu canal no Youtube, no qual representantes de diversas minorias falam sobre suas experiências de vida.
Homossexual e evangélico
Nascido e criado na periferia de São Paulo, crescer dentro do meio evangélico não foi uma escolha para Samuel, mas um caminho imposto pela família que lhe soava como natural. No entanto, no livro fica claro o quanto aquele ambiente onde o homossexualismo ainda é visto como um grande problema acabou impactando de maneira bastante negativa no psicológico do jovem, que, ainda assim, acredita que a instituição teve um papel importante em sua vida.
“Hoje, percebo que ter crescido dentro de uma igreja me permitiu fazer parte de um grupo. Pertencer a esse grupo deu algum sentido à minha vida, pois quando você cresce na periferia, se você não é evangélico, não usa terno e está com uma Bíblia embaixo dos braços, dificilmente você será respeitado. Acredito que a igreja tem ajudado muitas pessoas a encontrar essa paz que tanto procuram, mas precisamos prestar atenção sempre nas questões individuais. Na minha vida, a igreja perdeu o sentido a partir do momento em que percebi que ali eu não era representado, a partir do momento em que comecei a questionar a posição subordinada da mulher. Do homem negro não ter direito a conhecer a sua cultura e origem, pois tudo que não está na Bíblia, consequentemente, é condenado. A minha sexualidade foi só mais um fator dentro de tantos outros. Desde que saí de lá, pude conhecer outras igrejas, religiões, outras formas de enxergar o mundo e conheci muitas pessoas que não precisavam de um Deus para serem felizes”, conta. “Me coloco como ex-evangélico pois acredito que todos têm o direito de acreditar ou não acreditar em quem quiser”, completa.
Preconceito hoje
Entretanto, a discriminação, o racismo e o preconceito não é apenas pretérito na vida de Samuel, que se incomoda com o fato de muita gente ver nele um modelo a ser temido. “Sou negro, uso barba, tenho dreads e isso já me coloca numa posição na qual eu não gostaria de estar, a de suspeito. Sou formado, fiz vários cursos de especialização, nunca deixei de pagar uma conta ou faltei com respeito com alguém, mas nada disso importa. Quando estou andando na rua, independentemente do bairro, mas geralmente nos mais elitizados, percebo que as pessoas apertam os passos, seguram suas bolsas com mais força e me olham com medo. Infelizmente, alguns ainda associam sua segurança à cor da pele de alguém. No meio LGBT, onde o negro é sexualizado, é visto apenas para sexo e fetiche”, conta.
Dentre os episódios mais absurdos que já vivenciou, Samuel lembra de uma clínica onde foi fazer uma sessão de acupuntura. Quando chegou no lugar e foi responder a um questionário para ser atendido, surpreendeu-se negativamente. “Ao contrário do que eu já estava habituado, enquanto estava respondendo as perguntas sobre a minha vida, a doutora começou a dar opiniões pessoais sobre o que eu falava. Ela perguntou se eu era casado e eu respondi que tinha um namorado, o rosto dela mudou de fisionomia na hora”, lembra.
Quando falou de seu livro que a situação piorou de vez. “Ela me interrompeu imediatamente e disse: ‘Eu acho tudo isso uma perda de tempo. Racismo e homofobia só existem porque vocês ficam caçando. Eu mesmo já sofri racismo reverso. Todos temos direitos iguais, eu batalhei muito pra chegar até aqui. Tenho mais de 60 anos e tenho certeza das coisas que falo’”.
O resultado foi uma discussão em pleno consultório. “Isso me deixou muito desconcertado, comecei a debater com ela, mostrar que os pontos de vista dela estava completamente distorcidos. Ela começou a me falar de meritocracia, racismo reverso e eu fui ficando cada vez mais tenso e espantado. Nunca imaginei passar por isso, ela praticamente anulou naquele momento toda a minha história de vida, todas as pesquisas e a realidade do Brasil, pois acreditava cegamente no que dizia. Por isso, sempre digo, precisamos nos colocar no lugar do outro. Eu consegui entender a posição dela como mulher, branca e da classe média alta, trabalhando em Pinheiros, mas ela não conseguiu entender a realidade de um negro, periférico e gay”.
Papel da internet
Ao longo do processo de se autoconhecer e aceitar, uma ferramente fundamental para Samuel foi a internet. Principalmente em blogs que começou a encontrar pessoas que escreviam sobre situações semelhantes à que passava, algo importante para que se sentisse representado e tivesse com quem dialogar – papel que, a seu ver, hoje é desempenhado por muitos youtubers.
“A força que tem uma mulher negra empoderada no Youtube ou a força de um LGBT que fala sobre sexualidade é muito maior do que muitos pensam. Quando eles atingem o coração de um jovem que tem a sua autoestima tomada desde cedo pelo medo, eles dão forças a esses jovens e mostram que é possível vencer tudo o que os aprisionam. Os pais, professores e líderes religiosos muitas vezes não sabem como agir em alguns casos. Acredito que hoje vivemos no tempo da identificação e essa é a famosa representatividade. Na minha época, olhávamos para os ídolos e falávamos ‘quero ser ele’, o que me fez muito mal, pois o que via na TV era só gente branca e eu sou negro”.
Aprofundando esse comparativo entre internet e a televisão, principalmente a aberta, afirma que a primeira está muito à frente da segunda. “Temos drag, lésbica, mina gordinha, negro, mulher, trans, bi… e por aí vai, com canal no Youtube, publicando textos maravilhosos na internet, criando arte, fazendo música, poemas, ensinando a cozinhar. Tudo isso dá conforto a quem procura, ajuda, tira um sorriso de esperança e faz com que muitos adquiram conteúdo”.
E, claro, Samuel lembra que a literatura nacional também fica devendo quando o assunto é representatividade e diversidade. Apoia-se em uma pesquisa de Regina Dalcastagnè sobre personagens de livros brasileiros contemporâneos para reforçar a queixa. “Mais de 72% dos escritores são homens e mais de 90% são brancos. Mais de 80% dos personagens na literatura nacional são heterossexuais, quase 80% são brancos. Mais de 70% são homens e a maioria dos personagens que não são homens brancos têm papel coadjuvante. Um dado ainda mais assustador é que mais de 55% dos romances nacionais sequer tem um personagem que não seja branco. Enquanto isso, mais de 55% dos adolescentes negros retratados nos romances brasileiros são dependentes químicos”.