O despertar da consciência de uma catadora

FONTEReportagem Isabela Alves - Edição Kátia Mello
Michele da Silva Candido - Foto Isabela Alves

Michele da Silva Candido, de 37 anos, foi catadora por três anos na região de Ferraz de Vasconcelos, município paulista, sempre com muito orgulho de sua profissão. No ano passado, já durante a pandemia do coronavírus, ela ficou seis meses sem trabalho e passou a depender de cestas básicas para sustentar seus três filhos de 17, 8 e 6 anos. “Meu chefe passou a doar cestas básicas, porque todos na cooperativa ficaram desempregados. Mesmo assim, não dava para ficar sem fazer nada, porque todo mês vêm as contas de água, luz e aluguel”, disse.

Em 26 de novembro de 2020, para agravar ainda mais a situação, a catadora sofreu um acidente que a impossibilitou de vez de retornar ao trabalho. Neste dia, ao voltar para casa, um colega lhe ofereceu carona em sua Kombi e, em dado momento, a porta do carro se abriu, fazendo com que Michele fosse lançada para longe do veículo. “Eu não senti nada. Chegando ao hospital, o médico me disse que eu teria que amputar a perna direita. E aí falei: ‘Não faça isso, que eu tenho três filhos para criar’”, lembra. Michele não amputou a perna, mas esperou por um mês no hospital para reconstruir o joelho com um traumatologista. 

Para a catadora, a população negra sempre é esquecida e até no momento de receber auxílio médico, seus corpos são violados. As situações de racismo se perpetuam e ela conta uma delas. Michele se lembra da primeira vez em que foi retirar os pontos do joelho no hospital, quando viveu uma destas situações. “Um dos pontos estourou e minha perna estava sangrando. Duas moças brancas estavam na minha frente e não me deram a preferência. Eu não podia ficar com a perna abaixada e só uma senhora negra que trabalhava no hospital se preocupou e trouxe uma gaze para colocar em cima do ferimento”. O médico ainda a deixou esperando por meia hora para atendê-la.

Imagem de Michele ao lado dos seus filhos de 8 e 6 anos

Após a alta hospitalar, Michele passou a utilizar muletas para se movimentar. O médico que a operou ainda levantou a possibilidade de um dia ela desenvolver artrose. Em razão disso, ela avalia que seu futuro é incerto, uma vez que exercer o ofício de catadora exige muita força física. 

Forçada a ficar em casa nesta condição, sem ter como se deslocar, a catadora passou a refletir sobre a condição da população negra no País. “O preto é sempre esquecido e, com o atual presidente, a vulnerabilidade aumentou ainda mais. Mesmo com o auxílio emergencial, é impossível comprar alimentos básicos para a casa”, relata.

Com a pandemia do coronavírus, muitos catadores tiveram que mudar de profissão e se reinventarem. Algumas de suas colegas abriram as portas de suas casas para fazer as unhas ou cortar cabelo, iniciando uma nova clientela.

A reflexão de Michele pelo descaso governamental é traduzida em números no País.  Pesquisa do DataFavela, divulgada em março de 2021, revelou que 68% das pessoas que moram em favelas brasileiras não tiveram dinheiro para comprar comida ao menos por um dia nas duas semanas realizadas durante o levantamento. 

A pesquisa destaca ainda que nove em cada 10 pessoas moradoras de favelas no País receberam alguma doação durante a pandemia, sendo que oito em cada 10 famílias não teriam condições de se alimentar, comprar produtos de higiene e limpeza ou pagar as contas básicas caso não houvesse doações.

O acidente foi apenas mais um dos inúmeros obstáculos que Michele enfrentou ao longo de sua trajetória. “A minha vida daria um livro”, reflete. Nascida em Minas Gerais, Michele se mudou para São Paulo aos dois anos de idade. Seus pais sofriam de alcoolismo e por conta de intensa violência doméstica, ela acabou se tornando uma pessoa em situação de rua aos oito anos de idade.

Percalços 

Aos 10, ela foi resgatada por uma tia e passou a morar em Guaianases, distrito na zona leste de São Paulo. Para fugir das situações de violência, dois anos depois, ela se submeteu a viver com um homem à procura de uma vida melhor. Mas o que encontrou a então adolescente foi uma situação muito pior, com constantes abusos e vários tipos de violências.

No Brasil, o casamento infantil é uma realidade frequentemente ignorada, porém que atinge muitas crianças e adolescentes. De acordo com relatório do Fundo de População da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado em 2020, a taxa do casamento infantil no país (26%) está acima da média mundial (20%).

Imagem de Michele em seu quarto ao lado do filho mais velho de 17 anos

Aos 15 anos, a catadora conseguiu abandonar o marido abusivo para se tornar uma mulher independente e ajudar a família. Hoje a catadora, em um processo de conscientização libertária, sonha em fazer cursos profissionalizantes para criar projetos sociais em sua região, repleta de terrenos baldios. 

Michele gostaria que a Prefeitura de Ferraz de Vasconcelos se utilizasse destes locais no período pós-pandêmico para oferecer à população periférica programas culturais e oportunidades de emprego. “A nossa cidade precisa estar voltada para algo para nós. Aqui, só os brancos têm vez, os pretos não têm. É preciso um programa voltado para a população negra, aproveitar os terrenos baldios e levar a nossa cultura para outros lugares. Ferraz é conhecida pela Festa da Uva e por que esta festa não pode ser da nossa cultura negra?”, reflete.

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