O fechamento de jornais e o jornalismo público

 

O fechamento dos jornais Tribuna da Imprensa e Gazeta Mercantil, além de agravar o problema do desemprego crônico de jornalistas, aumenta a também trágica concentração de informação na sociedade. A tragédia está em curso e não se escuta ainda uma proposta alternativa capaz de resolver uma das grandes dívidas acumuladas durante mais de século para com o povo brasileiro, a dívida informativo-cultural. O Brasil está em pior posição que o nível de leitura de jornal na Bolívia, país mais pobre da América do Sul. O artigo é de Beto Almeida.

 

Beto Almeida (*)

 

No mês passado foi a vez do fechamento do jornal Gazeta Mercantil, com 90 anos de história e deixando a marca de ter sido um periódico qualificado, avaliação partilhada até mesmo pelos discordantes de sua linha editorial, voltada para o público empresarial.

 

Antes havia ocorrido o fechamento do também legendário Tribuna da Imprensa, agravando o problema do desemprego crônico de jornalistas, já sem ter para onde correr, além de fazer aumentar a também trágica concentração da informação nesta sociedade.

 

Se olharmos para cenário internacional também registram-se sucessivos fechamentos de jornais, seja nos EUA ou na Europa. No Brasil, especialistas prevêem a continuidade desta trágica tendência de falência de jornais, de redução de postos de trabalho e de lamentável estreitamento das fontes informativas.

 

A tragédia está em curso e não se escuta ainda uma proposta alternativa capaz de resolver uma das grandes dívidas acumuladas durante mais de século para com o povo brasileiro, a dívida informativo-cultural. O povo brasileiro é vítima de indicadores raquíticos de leitura de jornal e revista, são trágicas as estatísticas da Unesco, estamos em pior posição que o nível de leitura de jornal na Bolívia, país mais pobre da América do Sul.

 

Comecemos nos indagando se o mercado será capaz de evitar o fechamento do jornais, o desemprego de jornalistas e gráficos e a concentração da informação em poucas empresas. Não tem sido. Ao contrário, o mercado tem se tornado cada vez mais cartelizado, cada vez menos concorrencional, inclina-se notavelmente para o oligopólio, devasta as esperanças dos que ainda sonhavam com um jornalismo com capilaridade, com regionalização, capaz de assegurar informação diversificada, plural e acessível a todo os brasileiros. Falemos do tamanho da tragédia: somadas, as tiragens de todos os pouco mais de 300 jornais diários brasileiros não atingem a marca dos 7 milhões de exemplares. Indigência democrática! O povo brasileiro está praticamente proibido da leitura de jornais, portanto, proibido de ter acesso a uma tecnologia do século XVI, a imprensa de Guttemberg.

 

Exército de diplomados desempregados

O mercado tem discutido alternativas a isto? As universidades? O movimento sindical? Não se registram debates sobre como assegurar a massificação da leitura de jornal e revista. Nem mesmo a Fenaj que acaba de ser derrotada na sua luta para manter a obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo apresenta – nem antes, nem agora – alternativas para evitar que estes profissionais não formassem apenas um imenso exército de diplomados-desempregados. É preciso regulamentar a profissão, mas também é preciso assegurar o fim da proibição à leitura de jornal. Também devemos elaborar políticas públicas – já que o mercado exibe sua incapacidade – para que os brasileiros assim como recebem do estado merenda escolar, remédios, camisinhas, dentaduras, bolsa família, também recebam jornais e revistas para a sua informação. Seria nada mais do que assegurar o cumprimento da Constituição quando esta estabelece a informação como um direito do cidadão. Para que , afinal, que isto não seja apenas retórica legislativa…

 

Para se avaliar como o sistema de proibição da leitura de jornal vigente contra os brasileiros é tão trágico e paradoxal basta informar que a indústria gráfica registra capacidade ociosa crônica de 50 por cento de suas instalações anualmente. E isto é crônico! Ou seja, povo sem ler, jornalistas e gráficos desempregados e indústria gráfica paralisada na metade do tempo!!! Por que não juntamos os tres ingredientes acima numa política pública de jornalismo para a sua superação da crise? Será que com a nossa indigência de leitura, com a nossa dívida informativo-cultural podemos nos dar ao luxo de ficar esperando indefinidamente por soluções de mercado, quando o este apenas nos sinaliza com freqüência exuberante a sua tendência de fechamento de mais e mais empresas jornalísticas, mais desemprego e mais concentração?

 

Uma oportunidade perdida

Não é que não existam tentativas de criar condições e instrumentos para que o povo tenha acesso à leitura e à informação cidadã e qualificada. Uma destas tentativas se deu quando em 1994 o professor Cristovam Buarque elegeu-se governador do Distrito Federal. Um grupo de jornalistas reunidos pelo Sindicato dos Jornalistas de Brasília apresentou ao recém eleito um elenco de medidas destinado a assegurar à população candanga o acesso a informações, a jornais etc. Propunha-se a criação de uma Fundação Brasiliense de Comunicação, com a participação e controle social, capaz de reunir a Rádio Cultura FM, montar uma tv a cabo mas com a democratização e popularização de tvs receptoras que superassem o confinamento sócio-econômico da Lei da Cabodifusão e um sistema de imprensa que se uniria à idéia da Agência Brasília de Notícias, que funcionou, embora sem muita repercussão.

 

Os jornalistas haviam feito um levantamento do número de equipamentos gráficos e de profissionais de comunicação disponíveis na estrutura do GDF para a edição de um jornal diário, que seria sustentado pelas empresas estatais locais, com distribuição massiva e possivelmente gratuita. Havia capacidade gráfica ociosa, havia jornalistas disponíveis, havia a proposta, havia e ainda há a necessidade social de democratizar a informação. Sonhava-se com um jornal de espírito público, plural, diversificado, chegando às grandes massas trabalhadoras, à população mais carente na periferia do Plano Piloto, havia disposição sustentar este sistema público de comunicação. Entretanto, não havia decisão política para implementá-lo.

 

A primeira reação da assessoria do novo governador foi: “Não vamos fazer um novo Pravda!” Ninguém havia proposto um jornal nesses moldes. A proposta previa participação social, haveria diversidade informativa, aliás, provavelmente superior ao jornalismo praticado pelo mercado, dado o grau de interferência do cartel de anunciantes na linha editorial, via departamento comercial das empresas, seu verdadeiro “editor”. Não era um pravda, mas a verdade é que faltou audácia, faltou acreditar nas utopias para além dos discursos.

 

A oportunidade foi perdida. Nem mesmo as antenas e torres de repetição do sinal da Rádio Cultura FM foram instaladas, com o que o sinal da emissora, que poderia inclusive ser uma cabeça de rede de rádios públicas, educativas e universitárias, continuou e continua até hoje alcançando sofrivelmente apenas o Plano Piloto. A TV educativa ou cultural do GDF até hoje não foi criada. E os 93 por cento dos recursos gastos em publicidade naquele período destinaram-se apenas à maior rede de tv e ao maior jornal local.

 

A amarga ironia é que a idéia do jornal de distribuição gratuita foi aproveitada, anos depois, por um grupo empresarial local, sendo hoje o jornal “Coletivo” um sucesso e uma das poucas possibilidades de informação a que tem direito o povo pobre do Distrito Federal. Setenta mil exemplares são distribuídos diariamente a cada fim de tarde na Rodoviária do Plano Piloto, chegando a todas as regiões do DF. Gratuitamente. Sustentado com publicidade das estatais locais. Descartada pela esquerda,a idéia foi assumida pelo empresariado. Ou seja, pelas mãos dos que sempre impedem e travam o desenvolvimento da comunicação pública, comprovando-se que a idéia do jornal público e gratuito era e é plenamente viável.

 

Será que nem diante do irreversível processo de fechamento de jornais nos tomamos de senso de realismo , de audácia e de responsabilidade para propor um programa público para a massificação da leitura de jornais?


Nascem jornais públicos, fecham jornais privados

Exemplos nos chegam a cada dia. Evo Morales, cansado de perceber que os jornais privados estão editorialmente comprometidos com a fragmentação da Bolívia, com os planos nacionais e internacionais de desestabilização da democracia, e que eram jornais inacessíveis à grande massa pobre de bolivianos, lançou o jornal “Cambio”, destinado a ser um órgão de informação de circulação popular, a preços populares. Também agora na Venezuela, quando praticamente todos os jornais encontram-se enfileirados na oposição ao governo eleito de Hugo Chávez, ressurge o jornal popular e público “Correio do Orenoco”, recuperando o nome original do periódico fundado por Simon Bolívar, no qual foi redator o General José Inácio Abreu e Lima, brasileiro que lá é considerado herói na luta de libertação contra o Império Espanhol.

 

Mas, não apenas em governos considerados de esquerda surgem iniciativas deste naipe, como alguns poderiam objetar. Também na França há sólidas experiências bem sucedidas de jornalismo público, como o periódico editado pelo sistema previdenciário francês que chega à casa de cada segurado, com informações sobre toda a realidade nacional e internacional, sobre a cultura e a economia, e não apenas sobre temática previdenciária.

 

Assim, há razões públicas defensáveis para que o governo salvasse um jornal de tradição de 90 anos como a Gazeta Mercantil. Não apenas porque provavelmente também estará em débito com os cofres públicos. Quantas vezes empresas jornalísticas em dificuldades financeiras recorreram aos cofres públicos para superar suas crises? E seguiram depois condenando editorialmente o papel do estado mas, na primeira dificuldade, batem novamente às portas do estado?

 

Por que ao invés de empréstimos, não pode o estado assumir o controle acionário de um jornal como o Gazeta Mercantil, ou como o Tribuna da Imprensa, aproveitando sua estrutura industrial, empresarial, seus recursos humanos, sua tradição informativa, sua marca social na sociedade e, com novos critérios administrativos, transformá-los em jornais de ampla circulação popular, com tiragens realmente massivas, de milhões de exemplares, a preços módicos ou mesmo distribuição gratuita, já que o direito à informação é um direito constitucional do cidadão?

 

O papel protagonista do estado

No início governo Lula, em 2003, divulgou-se a existência de um Proer da Mídia, pelo o qual as empresas de comunicação endividadas, tal como os bancos a que alude a sigla, recorreriam ao estado para escapar à ameaça de falência. Houve solicitação ao BNDES para reestruturação das dívidas das grandes empresas de mídia. Na época o então Ministro José Dirceu pronunciou a frase forte “a Globo é uma questão de estado”. Foi proposto então que a serem empregados recursos públicos no salvamento da empresa das dificuldades, que estes recursos fossem investidos como compra de ações, passando o estado a ser acionista destas empresas desvedoras, assegurando que os recursos não fossem empregados em vão, como já ocorreu, e em certas circunstâncias, mais de uma vez, com as crise repetindo-se.

 

Agora estamos diante de uma crise sem precedentes, crise internacional, até mesmo City Bank e a General Motors já se transformaram em empresas estatais, ocorrendo o mesmo com inúmeros bancos na Inglaterra, na Alemanha, na França. Aqui a Caixa Econômica anuncia que irá lançar um cartão de crédito próprio para não mais depender do cartel internacional que domina e impõe regras discricionárias ao segmento. Os exemplos estão aí. Será que mesmo assim não teremos capacidade, como sociedade, de realizar um debate sobre como garantir que o povo brasileiro tenha finalmente o acesso à leitura de jornal?

 

São muito positivas as iniciativas de comunicação partidas do campo público recentemente, seja o Blog da Petrobrás, as colunas O Presidente Responde, a criação da Empresa Brasil de Comunicação, além da convocação da I Conferência Nacional de Comunicação. Mas, o público ainda se queixa: “como sintonizar esta TV Brasil? Ela só pega na tv a cabo? Isto é pra quem pode pagar!” Da mesma forma que as colunas escritas diretamente pelo presidente, embora importantes, não chegam ao grande público, já que as tiragens de jornal continuam raquíticas e não existe ainda um jornal ou vários jornais populares de grande circulação, seja gratuita ou a preços bem módicos. Existiria alguma proibição escrita nas estrelas determinando que não se possa também uma política pública para a democratização da leitura de jornal no Brasil? Não é razoável que a EBC assuma também a publicação destes jornais? Não é razoável que o BNDES que tanto financia grandes empresas privadas e até transnacionais apoie um projeto de um jornal público, de massa, gratuito?

 

Enquanto isto, jornais fecham as portas e há prenúncios de que novas falências venham a ocorrer. Não é hora, portanto, de debater um programa público de massificação da leitura de jornal?

 

(*) Beto Almeida é presidente da TV Cidade Livre de Brasília

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