O lazer de pessoas idosas: por que é tão difícil?

Talvez uma das atividades mais difíceis para muitas idosas e idosos e algumas pessoas que estão para envelhecer, ainda que não tão complexa, seja pensar o seu próprio lazer.

Histórica e culturalmente, o lazer não foi algo dado ou muito menos ensinado e transmitido amplamente de geração para geração. Ainda mais se a família, em algum momento da sua história, passou por alguma situação de precariedade ou ausência de comida, falta de trabalho ou não teve o dinheiro do aluguel.

Para essas pessoas, lazer é algo que nunca foi pensado, planejado ou dado alguma importância. Entendendo que o Brasil envelhece de forma acelerada e a expectativa de vida tende a crescer nos próximos anos, talvez com um retardo decorrente da pandemia, o lazer passa a ser ainda mais importante porque faz bem, melhora a possibilidade de criatividade, traz bem-estar e reduz adoecimentos como transtornos mentais e inatividade física.

Para aprofundar o assunto, é necessário entender o que significa lazer. Esta palavra, que se origina do latim, significa licere, isto é, ser lícito, ser permitido. Corresponde ao nosso tempo de folga, ao nosso passatempo, ao ócio, ao descanso, à distração ou ao nosso entretenimento.

Diz respeito também ao que se faz de livre vontade e que não é trabalho ou algum tipo de obrigação familiar ou social. É uma necessidade humana, uma dimensão da cultura e que faz interface com a ciência, saúde, economia e educação.

Lazer nos ajuda a não ter apenas a execução mecânica e automatizada da mesma atividade laboral como um propósito maior da nossa vida, sem ter cogitado fazer algo diferente e tão importante quanto.

Para muitas pessoas idosas, a palavra lazer chega a ser quase como um insulto, como algo que não é para essa vida ou encarnação, mas que pode ser pensado talvez para filhas, filhos, netas e netos, gerando um autoimpedimento, quase uma autopunição.

O que parece é que no Brasil a possibilidade de pensar e executar o lazer sofre a influência dos marcadores sociais de gênero, étnico-raciais e etário.

A intersecção desses vai reduzindo as chances de um lazer usufruído sem culpa, constrangimento ou aquele sentimento de que se poderia ter doado ou destinado a quantia financeira e a energia para outra finalidade, religiosa e socialmente mais aceita.

No contexto da vida de idosas e idosos percebemos que muitas das atividades relacionadas ao lazer mantêm mulheres trabalhando. Isso ocorre nas férias da família, quando idosas estão cuidando de netas e netos ou fazendo uma “comidinha” para a família toda.

“Ah, mas ela gosta de fazer isso!”, diria alguém. Mas o fato é que aceitamos naturalmente que todas e todos possam estar descansando enquanto nossa mãe ou avó ainda continua no fogão, picando alimentos, montando os pratos ou lavando algumas “roupinhas” no tanque.

Já o homem velho sai mais cedo para buscar pão, para acompanhar netos e netas nas atividades externas. “É lindo vê-los brincar!”, diriam outras pessoas.

Sim, mas também deveria ser legítimo o idoso fazer o que quisesse também e não ser delegado uma atividade que não traz mais prazer ou que seja fisicamente desgastante e sem tantos sorrisos associados.

Na perspectiva étnica e racial, o Brasil nunca permitiu que pessoas negras tivessem as mesmas oportunidades de lazer se comparadas às pessoas brancas.

Nosso país teve a Lei da Vadiagem, de 1941, que impedia que pessoas, em geral as negras, ficassem reunidas nos espaços públicos.

Nessa lei havia um artigo que incluía vadiagem como “entregar-se habitualmente à ociosidade”. Como se não bastasse, teve (ou ainda tem) ações que impediam a realização de diversas manifestações culturais a céu aberto, como a capoeira e, mais recentemente, os bailes funk.

Na coluna da jornalista Cris Guterres, há uma comparação extremamente emblemática e dolorida sobre possibilidade de festejar de pessoas negras e de pessoas brancas: a polícia bate e depois pergunta o que acontece nos espaços onde estão muitas pessoas negras reunidas em festa, e isso vem desde antes da pandemia.

E, nos espaços de lazer onde não há tantas pessoas pretas e pardas, a polícia pede licença e, muitas vezes receosa e envergonhada, aceita insultos sem uma resposta física violenta e exagerada. Percebe a diferença?

As pessoas idosas negras sabem bem o que isso significou para as suas vidas e, de forma consciente ou não, ensinaram seus mais novos a fazer o mesmo: trabalhar, trabalhar e, quando possível, estudar. Lazer? Nem pensar!

E, se pensar, que seja sempre com um documento na mão, legitimando que são pessoas com registros e um número que as identifica e mostra que são cidadãos e cidadãs iguais a outras pessoas e fazendo tudo aquilo que a maioria das pessoas faz, mesmo que não gostem tanto e tirando a espontaneidade e o prazer que o lazer pode proporcionar.

A escritora bell hooks, em seu livro “Olhares Negros”, apresenta um capítulo sob o título “Rediscutindo masculinidades negras”, e lá mostra que em muitas culturas africanas e indígenas o ócio é um momento de sonhar acordado e de contemplar.

E faço uma análise de que é uma linda forma de enaltecer a função do lazer e que poderia trazer um sorriso fácil para uma pessoa idosa, homem ou não, que tanto fez e hoje poderia estar usufruindo de uma situação que seja agradável para si.

Historicamente, há um grupo social que procurou disseminar a mentira de que pessoas negras e indígenas são vagabundas e preguiçosas. Na construção de identidades negras e indígenas, tal aspecto social foi incorporado na expectativa de que tais corpos precisassem ser mais aceitos e caberia a cada um, de forma bem individualizada e sempre trabalhando muito, mostrar o contrário.

E assim, percebe-se o perigo da linguagem mal interpretada e da narrativa única, na qual foi ensinado a não se sentirem tão à vontade com esse não fazer nada que, na perspectiva capitalista, é não estar trabalhando, e cerceou a liberdade e o direito ao bem-viver de boa parte da população brasileira que envelheceu e vem envelhecendo, muitas vezes doentes, sem benefícios sociais adequados e com pensões ou aposentadorias insuficientes para as suas despesas diárias, o que inviabiliza ainda mais o lazer.

E, mesmo quando essa pessoa idosa tem condições financeiras para fazer o lazer, ou seja, que tem dinheiro acumulado e até uma casa no campo, na praia ou em algum lugar, esse velho ou velha não se permite usufruir de forma regular, como merecedora ou merecedor daquele lazer.

E, muitas vezes, fica mais fácil alugar esse imóvel. É um não lazer sem fim e que se justifica como a herança que será deixada para as próximas gerações, como uma proteção para que não sofram como eles quando eram jovens.

Esse tem sido um dos focos dos meus estudos sobre envelhecimento. Na pesquisa divulgada em 2018, com todas as comprovações estatísticas que fiz, pessoas idosas pretas e pardas da maior capital do país não tinham por hábito sair de casa para visitar amigos e tampouco receber visitas em casa, o que seria uma forma barata e simples de lazer com outras pessoas.

Essas pessoas idosas sempre trabalharam, mesmo doentes, para não ficar devendo ou não ter onde dormir ou algo para comer.

Lazer é também um problema de saúde pública e que não é tratado como tal, já que permitiria uma sociedade mais inclusiva e reduziria os impactos negativos da condição de morar sozinha de pessoas idosas e também de doenças como a depressão.

No aspecto subjetivo, pode-se ainda pensar que pessoas idosas não conseguem se olhar no espelho e permitir um riso decorrente do lazer que dá possibilidades para uma respiração mais funda que revitaliza e melhora as estratégias para enfrentar o dia a dia tão cheio de desafios, incertezas e de novos medos.

O lazer pode ser, para muitas idosas e idosos, perda de tempo, algo de menor relevância, que não gera rendimentos ou algum tipo de produtividade, reforçando a manutenção de uma estrutura econômica que falha ao reforçar estereótipos negativos da velhice e enaltecendo que é algo para ser feito enquanto jovem, principalmente.

Da forma como se vive hoje no Brasil, há valores socialmente construídos que impedem muitos velhos e velhas de sonhar e de contemplar livremente o seu próprio lazer.

Fazer o lazer de forma consciente e livre é uma bandeira que precisamos levantar e pensar conjuntamente tanto para quem é idoso, idosa e também para quem será.

Nossas práticas atuais e valores não incorporam devidamente essa dimensão tão importante da vida. Sabemos ensinar muito bem as formas de sobrevivência, de resistência e de responsabilidade.

Nossa forma de interpretar o lazer desconsidera seus significados nas diferentes culturas presentes no Brasil, como as africanas, orientais e indígenas, o que é um erro grave e que restringe a cidadania de muitas pessoas idosas. Precisamos incluir nas formas de tratamento, nas agendas pessoais e nas políticas públicas a necessidade da naturalização do lazer.

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