O povo, o kardecismo e o racismo

Sempre incomodou-me muito o excesso de religiosidade do povo brasileiro. Principalmente porque isto implica em uma exagerada resignação a determinadas situações. Porém, após entender um pouco mais esta questão que é bem complicada, consigo vislumbrar não só um sentido, mas um “jogo” de sentidos como afirma Muniz Sodré para definir cultura. A religiosidade no Brasil tem muito mais uma significação cultural – como um jogo de sentidos – que uma adesão ideológica (embora esta não possa ser também descartada) a uma doutrina.

Um texto conhecido de Allan Kardec – “Perfectibilidade da raça negra” – publicado em 1862 em uma revista de artigos da doutrina espírita na França, causou furor entre intelectuais pró e contra o criador da doutrina do espiritismo. Trechos abaixo citados em um artigo do prof. Orlando Fedeli (Orlando Fedeli – “Allan Kardec, um racista brutal e grosseiro” )

“Mas, então, porque nós, civilizados, esclarecidos, nascemos na Europa antes que na Oceania? Em corpos brancos antes que em corpos negros? Por que um ponto de partida tão diferente, se não se progride senão como Espírito? Por que Deus nos isentou do longo caminho que o selvagem deve percorrer? Nossas almas seriam de uma outra natureza que a sua? Por que, então, procurar fazê-lo cristão? Se o fazeis cristão, é que o olhais como vosso igual diante de Deus; se é vosso igual diante de Deus, porque Deus vos concede privilégios? Agiríeis inutilmente, não chegaríeis a nenhuma solução senão admitindo, para nós um progresso anterior, para o selvagem um progresso ulterior; se a alma do selvagem deve progredir ulteriormente, é que ela nos alcançará; se progredimos anteriormente, é que fomos selvagens, porque, se o ponto de partida for diferente, não há mais justiça, e se Deus não é justo, não é Deus. Eis, pois, forçosamente, duas existências extremas: a do selvagem e a do homem mais civilizado.” (Allan Kardec, “Perfectibilidade da raça negra” Revue Spirite, Abril de 1862)

Ou este outro:

“O progresso não foi, pois, uniforme em toda a espécie humana; as raças mais inteligentes naturalmente progrediram mais que as outras, sem contar que os Espíritos, recentemente nascidos na vida espiritual, vindo a se encarnar sobre a Terra desde que chegaram em primeiro lugar, tornam mais sensíveis a diferença do progresso(sic!). Com efeito, seria impossível atribuir a mesma antiguidade de criação aos selvagens que mal se distinguem dos macacos, que aos chineses, e ainda menos aos europeus civilizados” (Allan Kardec, A Gênese)

Ou então mais este:

“6 –Por que há selvagens e homens civilizados? Se tomarmos uma criança hotentote recém nascida e a educarmos nas melhores escolas, fareis dela, um dia, um Laplace ou um Newton? “Em relação à sexta questão, dir-se-á, sem dúvida, que o Hotentote é de uma raça inferior; então, perguntaremos se o Hotentote é um homem ou não. Se é um homem, por que Deus o fez, e à sua raça, deserdado dos privilégios concedidos à raça caucásica? Se não é um homem, porque procurar fazê-lo cristão ?”

Não pairam dúvidas sobre a concepção de ser humano de Kardec, cuja doutrina é toda baseada nos princípios do darwinismo social e do positivismo. Mas então porque o Brasil, um país de maioria negra, é considerado a nação com maior número de praticantes do espiritismo do mundo e ainda por cima, foi onde nasceu a umbanda, religião que articula as tradições africanas com o kardecismo?

Penso que isto é explicado pela perspectiva de trânsito da cultura popular brasileira em que determinados princípios – como a sacralização do real que é tido como profano na clássica divisão cartesiana das tradições judaico-cristãs – atuam como elementos norteadores de um movimento de jogo de sentidos. O que importa para este sujeito é ir ao encontro de lugares em que este sagrado possa se aproximar o máximo possível da sua existência “mundana”, seja no centro espírita com a mediunidade, seja na umbanda, seja no candomblé e até mesmo nas festas populares católicas em que o santo caminha junto por meio de imagens e até recebe uma dose de cachaça ou uma xícara de café.

Por isto, a militância religiosa brasileira se coloca muito mais no engajamento nos eventos sociais (organização de festas, campanhas beneficentes, entre outros) e se centra na oralidade do que na prática sistemática de aprofundamento teórico na doutrina, coisa que fica mais para um segmento mais intelectualizado da população. O que chama a atenção, entretanto, é o crescimento da doutrina espírita entre uma classe média intelectualizada que pouco comenta ou discute este pensamento abertamente racista de Kardec. Estranho, principalmente pelo fato dos kardecistas se autodenominarem como praticantes não de uma religião mas de uma “doutrina científica” a qual sempre riem de forma arrogante e superior dos que dela discordam (como pretensos intelectuais desdenhando de ignorantes) esquecendo que teorias cientificas sempre são passíveis de serem questionadas e discutidas e não impostas como verdade absoluta (pois aí se transformam em dogmas). Uma pena, pois perdem com isto justamente o aspecto mais rico da apropriação popular da religião que é este jogo de sentidos o que permite estas reinvenções. Tomar o kardecismo acriticamente como uma doutrina científica, é ressuscitar a idéia de raça superior, do racismo científico e da eugenia – isto é, nada mais, nada menos, que um pensamento de cunho nazista.

Fonte: Blog do Denis

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