A comoção entre nós, LGBTs, com relação às mortes por homotransfobia – como a de Samuel e João, e mesmo a relação aos suicídios de Reginaldo e Kaique – nos conduz sempre a pensar acerca da emergência da criminalização da homotransfobia. Afinal, compreendemos que estes e outros incontáveis casos possuem caráter fundamentalmente homofóbico, que são crimes de violência homotransfóbica. Assim como nos revoltamos e protestamos quando pessoas como Levy Fidélix são capazes de dizer, em rede nacional, que gostariam de nos ter longe, “em algum lugar” longe dele, da família dele, e de tudo que ele conceitua como família.
Por fervieira, no Revista Fórum
A fala de Fidélix me faz pensar em campos de concentrações nazistas, de antigos Sanatórios brasileiros como o do Juquery e o de Barbacena, dos Leprosários, e de tantas outras formas, geralmente clínicas, de apartar o diferente da convivência dos “normais”. O que nos leva a perguntar que mecanismos possibilitaram que ele fizesse uma declaração como essa impunemente. E porque a plateia reagiu com risos.
Antes de tudo, creio que é preciso termos em mente que a violência homotransfóbica vai muito além do homicídio perpetrado por um assassino e está muito além do ato de morte realizado por suicidas. Estes casos são apenas algumas manifestações mais extremas da homotransfobia, de uma homotransfobia que não reside no ato de morte em si, mas que antece ao ato. O assassinato é, pois, produto direto de uma cultura homotransfóbica. Dito isso, por que é importante refletirmos sobre esse assunto?
Bem, o primeiro ponto é compreendermos os mecanismos de silenciamento de crimes homotransfóbico e da homotransfobia – um processo de apagamento que banaliza ou relativiza a motivação do crime. Permitindo que essas vítimas sejam esquecidas com o tempo e percam nas estatísticas. Portanto, penso que é preciso identificar os mecanismos de apagamento:
1.Questão de “opinião”
A interpretação da homotransfobia como sendo apenas agressão-física, ou seja, desconsiderar o teor da violência quando esta se apresenta em formas verbais ou “simbólicas”. Podemos observar isso na reação de muitos que definiram a fala de Levy Fidélix como mera “opinião”, camuflando o preconceito sob o direito de dizer que não aceita. A violência se oculta, neste caso, por trás de um discurso de liberdade de expressão. Recurso usado no apagamento de muitos casos além dos homotransfóbicos. Usa-se tal recurso para disfarçar casos de racismo, machismo, gordofobia etc.;
2. Crime “passional”
Diluir a agressão no universo dos crimes passionais, relativos a condições internas da relação entre agressor e vítima, e relativos as subjetividades dos envolvidos. Desta maneira, o crime jamais é homotransfóbico e fruto de uma violência sistêmica, mas sim um desarranjo das relações afetivas entre os dois sujeitos envolvidos;
3. Culpabilização da vítima
Um mecanismo recorrente, podemos percebê-lo quando o “colunista” Rodrigo Constantino afirmou que João fora assassinado por estar fazendo sexo em um terreno baldio, por ter se colocado estar em “condição de risco”. Também presenciamos tática parecida quando condenam a travesti morta por ela ter se prostituído e ter se “exposto” a marginalidade – como se todas tivessem opções -, ou ainda, quando defendem que alguém “gay” mereceu alguma agressão por “ser espalhafatoso demais” ou por “dar em cima de todo mundo”. O mesmo se repete em casos de suicídio, quando costumamos ouvir o famigerado “quem manda ser fraco e não aguentar brincadeira na escola?”, ou o argumento de que “depressão é fraqueza”;
4. Ato isolado
Quando a homotransfobia é inegável, como no caso do homossexual queimado em um ritual de purificação de sua homossexualidade, então, a violência é subjetivada. A homofobia é transformada e atribuída apenas aos assassinos, ou seja, ela é considerada como um problema daquele indivíduo, que tem “ódio patológico a homossexuais”, ou “medo de homo e transsexuais”.
Com base nestas quatro possibilidades de apagamento, percebemos que existem duas formas de negação da homotransfobia sistêmica. A primeira é o apagamento representado pela negação direta: “não é homofobia” ( como mencionei nos itens 1, 2 e 3; o segundo é a negação direta da homofobia sistêmica, ou seja, o assassino ou o suicida são compreendidos como responsáveis únicos pela morte do jovem homossexual. O que me faz pensar que o temor esteja em admitir: “somos uma nação homofóbica”. Não admitimos, no âmbito do coletivo, da sociedade, que a homofobia estrutura nossas relações de poder e afeto.
O assassino, considerado doente, e individualmente culpado, é convertido naquele que inadvertidamente revelou o que todos escondem, ou seja, que de fato existe homotransfobia e que ela é sistêmica e não individual, por isso tanta agilidade em “patologizar o assassino”, pois se faz necessário negar que isso pertença ao âmbito da pólis e não somente da patós.
Quero que fique claro que não estou relativizando a culpa do assassino homofóbico. Estou apenas considerando que a mecânica e a motivação do crime homofóbico são produtos de uma violência sistêmica aprendida socialmente. Individualizar os responsáveis, removendo-os do contexto cultural no qual foram formados, é uma maneira perversa de imobilizar o combate a homofobia. Ao chamarmos de “loucos” os assassinos homotransfóbicos, os transformamos naqueles que vivem fora da sociedade, em seres que não sabemos quem são, e nem quando os iremos encontrar.
Em “A Realidade do Virtual”, o filósofo Slavoj Zizek classifica nossa época como “A Era Cínica”, nas qual nossas crenças são apenas pressupostos do outro, ou seja, não nos identificamos de fato com aquela crença ou ideologia, mas agimos social e individualmente segundo essas crenças. Neste sentido, o avanço das pautas de direitos humanos, e, sobretudo, o avanço das pautas LGBT, tem conduzido muitas pessoas ao cinismo politicamente correto: o que seria isso? A incapacidade de reconhecer-se enquanto ” “preconceituoso” se dá pelo temor da rejeição que segue o rótulo de preconceituoso. Este temor faz com que as pessoas, sabendo-se homofóbicas e se expressando com homofobia, a neguem sempre. De modo que, “se existe” (e sim, infelizmente muitos negam a existência), ela está no “outro”, numa terceira pessoa não-identificável.
Isso posto, torna-se evidente que há um esforço para negar a existência da homofobia. Então, me pergunto: de onde vem a aparente necessidade de negação da homotransfobia? Éis que me recordo da criação, no século XIX, como relata Michel Foucault, do termo homossexual como o outro patológico – consequência de termos como: invertidos ou sodomitas.
Há a necessidade de estigmatizar o homem homossexual (neste texto me refiro principalmente a homossexualidade masculina). O filósofo Guy de Hocqueguehem nos diz, ao mencionar (e criticar) a “teoria lacaniana” do espelho: “ataco no outro, no homossexual, minha própria homossexualidade”. Como Guy bem elucidou, não é a “homossexualidade do homofóbico que é atacada como num espelho” e sim, o rompimento da “norma” que aquela homossexualidade revela. O rompimento da norma e a destruição de um número de crenças e valores que estruturam a maneira como lido com o real. Ou seja, o ato de homofobia, quando convertido em ato de violência física, é também o ato de destruir o elemento desestruturante da fictícia e arbitrária norma da heterossexualidade.
Com isso quero afirmar que a homofobia estrutura as relações entre os homens heterossexuais. A homofobia é o suporte da heterossexualidade enquanto regime de poder. Neste caso é preciso que eu esclareça. Como a homofobia “sustenta” a condição de poder da heterossexualidade masculina? Simples: diferenciando a homossexualidade e homoafetividade da homofilia- relações de amizade entre homens, não erotizadas.
Estereotipar o gay, marcá-lo e persegui-lo irá distinguir o agressor. Ele dirá, e evidenciará o seu não pertencimento àquele grupo”, e isso o libera para viver a homofilia, ou seja, o libera para viver a proximidade e intimidade das relações de amizade entre homens. Deste modo, ridicularizar o “gay” na sala de aula, é libertar-se para participar dos ritos de masculinidade nas brincadeiras de vestiário, nas brincadeiras de “agarra” e nos abraços durante jogos de futebol. Marcar o outro é também a ação de distinguir-se dele. Com isso percebemos a homofobia como um perverso fator de sustentação da intimidade masculina, assim como todo o processo de guetificação de homossexuais, travestis e pessoas trans, ou seja, desviantes da norma cis-sexo-política.
Recentemente um amigo heterossexual me disse: “sempre me convidam para masturbação coletiva” (assistir filme pornô e ficar se masturbando), ao que eu disse: “uma pena que nunca me convidaram para isso”, então ele respondeu: “acho que não convidam gays para isso”. Essa frase me foi extremamente reveladora. A presença de um homossexual, no compartilhar desta intimidade, poderia poluir toda a heterossexualidade presente naquele espaço.
É sempre importante lembrarmos que a sustentação da heterossexualidade masculina, enquanto regime de poder, está profundamente associada a sustentação do poder patriarcal, afinal, o homem do patriarcado, não é afeminado, não é gay. Ele é másculo e heterossexual.
Quero então que percebamos que a homofobia precisa ser combatida, não apenas nos seus atos fatais, mas enquanto ordem sistêmica, ou como diria Zizek, enquanto violência sistêmica.
Qualquer regime de poder precisa de elementos que o estruturem, a homofobia compõe e sustenta o regime de poder da heterossexualidade. Regime este, que bem sabemos, é inaugurado a partir da concepção natalista, tão bem exposta pelo Levy Fidélix – “órgão excretor não reproduz” -, entretanto, a homofobia não se associa apenas a atual incapacidade reprodutiva das relações homossexuais (afinal, sexo anal hétero e sexo com camisinha tampouco reproduzem), mas na necessidade de sustentar um estado de coisas.
Os risos em relação a fala de Levy Fidélix e a possibilidade de isso ser dito em rede nacional sem punição é exemplo do cinismo. Tolera-se socialmente a homofobia, pois ela representa um elemento estruturante.
Quero dizer aos meus amigos heterossexuais, que esta não é uma crítica a vocês, não personalizo a homofobia e não a diluo em atitudes individuais. Minha crítica é a heteronormatividade, ou seja, aquele regime de poder que define como “normal”, “aceitável” e “natural” apenas as relações heterossexuais. Marginalizando e patologizando as demais possibilidades de manifestação do desejo.
Não adianta nos comovermos por esta ou aquela morte isoladamente. É preciso por em questionamento todo o sistema cis-heteronormativo. Do contrário, a comoção será tomada pelo cinismo e convertida em instrumento de perpetuação da própria ordem homofóbica, como quando, por exemplo, candidatos claramente homofóbicos aproveitam-se da pauta para angariar votos. Nossa luta e questionamento não pode se resumir a criminalização da homofobia, deve ser uma luta de resistência somática contra a própria norma heterossexual. Não há possibilidade de assimilação.