O que teria a USP a contribuir à democracia se seu processo eleitoral ainda vem da ditadura?

Acreditamos na democracia?

Foto: Gabriel Brito/Correio da Cidadania

Por Tomaz Amorim Izabel,

Helio Schwartsman, colunista da Folha de São Paulo, escreveu um artigo nesta sexta-feira contra as eleições diretas para reitor na Universidade de São Paulo, demanda principal dos alunos que atualmente ocupam a reitoria. O colunista considera que a escolha direta seria antidemocrática, justificativa sintomática sobre a idéia e prática contemporânea da democracia. Segundo ele, como o orçamento da USP é muito grande e vem de impostos, já que ela é pública, caso as eleições fossem diretas, ou seja, caso cada aluno, professor e funcionário tivesse o direito de votar no candidato que considera mais apto para dirigir a universidade – sem submeter sua escolha posteriormente ao governador do estado, como acontece atualmente – ela perderia seu caráter de universidade e se tornaria uma “associação corporativa”. O salto argumentativo é acrobático e, inclusive, mortal. O colunista segue propondo um modelo que seria mais democrático e que é, coincidentemente, o atual: que a Universidade vote da maneira que achar melhor, dando maior peso ao voto de professores mais antigos, e que em seguida, “para que o circuito da democracia feche”, a lista com os três mais votados seja submetida ao governador que escolherá de própria cabeça e coração, representante legítimo do povo que é, o reitor (mesmo que ele não tenha sido o mais votado, como é o caso atualmente).

A lógica de Schwartsman, se transportada para o plano nacional, significaria mais ou menos o seguinte: como o orçamento de um estado é gigantesco e vem de impostos (muitos deles pagos pelo resto do país), seria perigoso permitir às pessoas que moram no estado eleger seu próprio chefe de executivo. Deveríamos voltar a ter governadores biônicos e, já que se está mexendo na constituição, reservar o direito de voto a uma camada minoritária e mais velha da população (ou pelo menos garantir que a vontade deste grupo nunca fosse contrariada pela opinião do resto, a maioria). Como Schwartsman não fala em seu texto de uma categoria inteira e fundamental da universidade, os trabalhadores, assumimos que eles não teriam direito a voto, nem na universidade e, nesta hipótese, nem no estado.

Este exagero interpretativo tem por função evidenciar a seguinte questão: o que teria, uma das maiores e mais importantes universidades do hemisfério sul, a contribuir no debate público sobre cidade, administração pública, trabalho e democracia se seu processo eleitoral mais importante é regido por excrescências jurídicas da última ditadura? A função pública da universidade, para a qual são pagos os impostos, é principalmente refletir sobre a sociedade que a mantém. Neste sentido, há um descompasso histórico entre cidade e universidade que se tenta corrigir agora, a preço da legitimidade crítica desta última.

O velho argumento que exige a tutela do governador e de professores mais velhos tem por detrás um pensamento claro: a maioria das pessoas é irresponsável, principalmente aqueles intelectuais universitários, “descolados do real”, que não tem capacidade prática para dirigir uma grande instituição. Infantis, eles precisam de uma tutela na hora da “prática” (seja lá o que isto for). Por fim, que quando a decisão é sobre grandes quantias de dinheiro e poder, não cabe perguntar à maioria.

Este pensamento segue perfeitamente a linha tomada pelos governos europeus e estadunidense em relação à crise econômica atual: quando a coisa é séria, crítica, abre-se mão da democracia. Na Itália, não houve pudor em retirar um primeiro-ministro eleito (por pior que fosse) e colocar em seu lugar um tecnocrata da União Européia. Nos EUA, os criminosos de Wall Street foram blindados através de uma aberração jurídica e financeira apelidada de “too big to fail”, “grandes demais para falhar”. Seguindo a mesma linha de raciocínio, uma camada da população, alinhada ao partido que atualmente governa o estado e ao pensamento mais conservador e minoritário entre a comunidade acadêmica uspiana, deseja manter o faz-de-conta democrático: as crianças brincam de escolher o reitor e o pai governador escolhe quem melhor lhe convier. Afinal, a grana é alta demais para deixar na mão de qualquer um que possa ser eleito democraticamente (pior ainda se for por uma maioria de estudantes e funcionários). A diferença entre a aplicação deste pensamento a uma universidade ou uma cidade, estado ou país não existe.

A USP publica, mas não pratica, em público. O pensamento livre tem por pressuposto a autonomia. Isto foi deixado claro em 2007 por alunos, professores e funcionários das três universidades estaduais públicas que se manifestaram contra decretos que, na época, tentavam acabar com a autonomia de pesquisa. O modelo atual de eleição de reitor pressupõe um ceticismo absoluto em relação ao pensamento sem tutela e, de forma mais alarmante, à democracia. Se professores, alunos e funcionários desta universidade, imersos cotidianamente em ambiente fértil para o estudo e a reflexão, não conseguirem passar por um processo democrático sem serem corrompidos pela promessa de salários astronômicos ou de “lagosta no bandejão” (para citar o colunista), quem, neste país ainda miserável, conseguirá? A pergunta principal por trás destas questão e que nos cabe responder é: nossa sociedade ainda acredita realmente na democracia?

USP, UNICAMP e UNESP estão, infelizmente, atrasadas vinte e cinco anos em relação ao processo democrático do nosso país. Vale lembrar, a Universidade de Brasília, na capital do nosso país, já escolhe seu reitor paritariamente, sem que qualquer governador ou ministro escolha posteriormente entre os escolhidos. Este modelo se amplia aos poucos nas universidades federais do país. Na antiga capital, a Federal do Rio de Janeiro escolhe paritariamente seu reitor desde a redemocratização, na década de 1980. Felizmente, aqueles alunos que agora ocupam a reitoria, muitos dos quais estiveram na rua combatendo pela melhoria do transporte público nos últimos meses, estão atentos para a história e bradam dentro da universidade o grito que as gerações anteriores bradaram contra os ditadores: Diretas Já!

 

Fonte: Negro Belchior

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