Oposição ao regime em Cuba é negra, diz Carlos Moore

Salvador – Na condição de único dissidente exilado no Brasil por crime de subversão racial, o etnólogo e cientista político Carlos Moore, rompe o silêncio guardado a sete chaves por setores da esquerda brasileira, que evita tocar em tocar em temas incômodos ao regime cubano, e declara: “Os cubanos vivem sob um regime altamente repressivo, racista e discriminador. Em Cuba, ser negro e ser “criminoso” é a mesma coisa na perspectiva do regime. O fato realmente novo é o enegrecimento da oposição interna. E essa oposição é uma nova oposição, com características e demandas radicalmente diferentes da oposição externa – majoritariamente branca – de extrema direita”, afirma.

Em longa entrevista ao Jornalista Responsável e Editor de Afropress, Dojival Vieira, Moore, que foi assessor do líder negro norte-americano Malcoml X (com quem aparece na foto) nos anos 60, vive em Salvador e só pode voltar ao país com autorização do regime.

Ele falou da situação dos dissidentes que participam da nova onda de protestos – nas quais morreu o operário negro Orlando Zapata, após 85 dias de greve de fome, – e que é hoje mantida pelo jornalista Guilhermo Fariñas, cujo estado de saúde está bastante debilitado. Na entrevista também trata da crise do regime e dispara: “O sistema de governo e de economia em Cuba esta em uma crise terminal”.

Segundo Moore, em Cuba os termos “negrito”, “negrito de merda” ou “negro de merda” “são muito comuns, usados pelos brancos em conversações corriqueiras”. “Eles formam parte de todo um vocabulário que minimiza o negro e o equipara a nada mais do que um monte de excremento a ser varrido o mais rapidamente possível de todas as instâncias importantes”, acrescentou.

A Afropress postará a entrevista em três partes, a primeira das quais publica nesta terça-feira (04/05), e as demais na quinta (06/05) e no sábado (08/05).

Confira a primeira parte da entrevista.

Afropress – Na condição de exilado pelo crime de subversão racial, como está acompanhando o martírio de militantes de Direitos Humanos – na sua maioria negros – contra a violação à Direitos Humanos em Cuba?

Carlos Moore – A meu ver, aquilo que explica tudo o que está acontecendo em Cuba no momento, é o fato de estarmos diante de um sistema de governo e de economia totalmente falidos. O sistema de governo e de economia em Cuba esta em uma crise terminal. E, conseqüentemente, pela primeira vez em cinqüenta anos de Revolução o descontentamento da população é algo geral, tocando praticamente todos os setores do país.

É por isso que, sendo a população negra a maioria (algo como 72%), há uma preponderância de negros nos movimentos de oposição. Segundo Elizardo Sanchez, que monitora a violação dos Direitos Humanos na ilha, o número de dissidentes negros nas prisões é algo em torno de 60%. E, nos cárceres em geral, a porcentagem de negros é estimada em 85%.

Claro, ninguém fora ou dentro de Cuba, tem como confirmar essas estimações porque o regime proíbe o acesso a esse tipo de informação. Tudo isso é tabu em Cuba.

Em todo caso, a dissidência já é preponderantemente negra em Cuba. Isso nem sempre foi assim. Até 1985, que corresponde ao período de crise que levou à queda do bloco soviético, a grande maioria da oposição interna ao regime era branca.

Isso também se compreende, pois a oposição externa, – que é geralmente de extrema direita – também é branca. Oitenta e cinco por cento da população cubana exilada nos Estados Unidos é de ascendência européia. A própria filha de Fidel Castro, Alina, e a irmã dele, Teresa, formam parte desse grupo. Assim, o fato realmente novo é o enegrecimento da oposição interna. E essa oposição é uma nova oposição, com características e demandas radicalmente diferentes da oposição externa – majoritáriamente branca – de extrema direita.

Afropress – Em que se diferenciam essa oposição a que o senhor se refere, majoritariamente branca, de extrema direita, e a Oposição negra que entrou em cena?

Moore – Esta nova oposição não quer violência, nem quer o retorno da velha sociedade injusta e segregacionista de outrora. Ela quer uma transição pacífica para um regime que respeite os direitos fundamentais da população; ela quer eleições, a implementação imparcial da justiça; a liberdade de associação; a liberdade para a criação de movimentos sociais autônomos e de partidos políticos diferentes; enfim, a existência de uma imprensa livre. Ora, a novidade é que essa nova oposição tem reinvidincações totalmente inéditas, sobre raça, gênero, orientação sexual, e outras, que nunca foram formuladas anteriormente. Com efeito, um movimento especificamente negro tem se constituído nas últimas duas décadas para lutar contra a discriminação racial e o forte racismo que golpeia a população negra. O sexismo e a homofobia são fortíssimos no país.

Por isso, esse novo movimento negro combina a denúncia e a luta contra essas três formas de opressão. O protagonismo das mulheres negras cubanas nessas correntes de oposição é também algo totalmente novo.

Essa nova oposição tem raízes fortes na juventude por causa do crescimento dos movimentos de Hip Hop, de Rap e dos grupos Rastafaris que agora são numerosos no país.

O mais famoso dentre os grupos de Rap, Los Aldeanos, é idolatrado pelos jovens. Eles são tão radicais, que nas suas canções pedem abertamente que os Castros saiam do poder junto com todo seu governo. A imensa popularidade dos Aldeanos se explica pelo fato que estão exprimindo o que a população pensa, mas não pode expressar por causa da repressão. Cuba conta hoje com mais de oitocentos grupos de Rap e Hip Hop em toda extensão da ilha, e a quase totalidade sao opositores estridentes do regime.

Praticamente todos os grupos de Rap, de Hip Hop e de Rastafaris estão sob vigilância, fichados e em risco de serem aprisionados à qualquer momento. No referente à economia, essa nova oposição quer uma mudança de sistema, mas conservando o sistema de socialização da saúde e da educação. No entanto, não há consenso no que diz respeito a que fazer com os meios de produção (a terra, as fábricas), ou que fazer com o sistema financeiro, etc.

Não há unanimidade sobre o que concerne as mudanças estruturais. É ali que diferentes opções se opõem, algumas delas preferindo uma forma de economia de mercado, e outras opções se opondo a ela, mais sem saber como substituir o atual modelo de comunismo de estado. De todos modos, o que vemos é que nos últimos vinte e cinco anos tem surgido uma nova oposição, bastante heterogênea, conformada por marxistas dissidentes, social-democratas, gente da esquerda liberal mas sem bandeira ideológica especifica, socialistas decepcionados com o regime, e também gente de centro direita que advoga pela democratização.

O novo bloco opositor interno é bastante fluido e diversificado politicamente como em qualquer outro país. Por exemplo, entre as formações de esquerda, temos o Partido Cristão Democrático de Cuba, a Corrente Socialista Democrática Cubana, o Partido Democrático Social-Revolucionario de Cuba, o Partido Democrático da Solidariedade, o Partido Liberal de Cuba e a Coordenação Social-Democrática de Cuba.

Afropress – O que explica o crescimento dessa oposição interna?

Moore – São muitos os motivos e de natureza diferente. Os cubanos enfrentam enormes problemas no dia a dia para se alimentarem; para encontrar moradia (é proibido mudar de domicílio sem a permissão da polícia); para se deslocar de uma província para outra e se fixar lá, é necessário ter uma autorização da polícia; para ser atendido em um posto de saúde; para obter trabalho (o desemprego em Cuba é massivo); para se vestir corretamente (a não ser que se tenha família nos Estados Unidos que mandem roupas); para entrar nas universidades; para viver em bairros salubres, etc.

É tudo isso que está causando uma irritação crescente e que já se tornou oposição popular. O pior é que tudo isso acontece em um clima de forte discriminação racial contra as pessoas de origem africana, e em todos os níveis, e não somente na interação interpessoal. As denúncias do racismo já são impossíveis de serem ignoradas e a situação é cada vez mais incontrolável.

O próprio Raul Castro reconheceu o 20 de dezembro de 2009 – num discurso pronunciado perante o parlamento cubano – que a situação era grave. Ele disse que tinha “vergonha” de reconhecer a existência do racismo e da discriminação racial em Cuba após cinquenta anos de Revolução. Negou ter sido o estado quem discriminava os negros e diz que se tratava de “resquícios” de períodos anteriores à Revolução que tinham ressurgidos com força por causa da crise econômica e do bloqueio ianque. Claro, todo mundo sabe que isso é não é verdade, mas, pelo menos, ele reconheceu os fatos.

Afropress – Na sua opinião, o que deseja o povo cubano?

Moore – Os cubanos vivem sob um regime altamente repressivo, racista e discriminador. Eles não têm nem o direito de viajar fora do seu país, nem o direito de viajar no interior do seu país sem autorização da polícia. Também não têm o direito de constituir associações ou partidos. E, claro, não têm direito a organizar eleições livres para eleger seus dirigentes. Eles são governados por um partido único – o Partido Comunista de Cuba – e por dirigentes únicos: a dupla formada pelos irmãos Castro e os homens que lhes são fiéis.

Como os demais povos oprimidos, os cubanos querem muitas coisas, mas acho que poderíamos resumí-las da maneira seguinte: o fim da discriminação racial e das práticas racistas, liberdade, comida adequada, moradia decente, democracia, uma melhor qualidade de vida, acesso à internet, possibilidade de viajar para fora de Cuba, e também no interior da ilha, etc. Ou seja, coisas que o comum dos mortais têm em países como a Argentina, o Chile, o Brasil ou a Costa Rica. Não vou nem falar dos direitos que têm as populações em países como a França, a Noruega, a Holanda, a Suiça ou a Dinamarca, pois esses são direitos e condições de vida inimagináveis para os cubanos.

Os cubanos ficariam super-contentes, por exemplo, com os direitos que usufruem os brasileiros, a pesar das enormes desigualdades sóciorraciais que existem aqui.

Afropress – Essa situação que o senhor descreve não é conhecida no exterior?

Moore – Muitos o sabem, mas se calam por medo de ofender os sacrossantos deuses revolucionários cubanos. Outros o sabem, mas não se importam. E ainda outros nem querem saber. A população não aguenta mais as condições econômicas e sociais precárias nas quais está obrigada a viver, especialmente num contexto de ausência quase total daqueles direitos fundamentais que os cidadãos de qualquer país – mesmo o mais paupérrimo – usufruem.

Mas, até hoje a única resposta do regime tem sido a repressão, mesmo em violação das próprias leis constitucionais ditadas por ele. Para citar somente um exemplo prático com impacto imediato sobre as vidas dos cubanos: a “Ley de Peligrosidad” (Lei da Periculosidade), que acho que nenhum outro país tem. Essa lei encontra-se na Seção XI, Capítulo I, Artigo 72 do Código Penal de Cuba, e dispõe o seguinte: “Se considera estado perigoso a especial proclividade na qual se encontra uma pessoa para cometer delitos, demonstrada pela conduta que observa em contradição manifesta com as normas da moral socialista”. Qual “moral socialista”?

Como determinar que uma pessoa é “proclive” (propenso) ao crime? Simplesmente, isto quer dizer que na Cuba de hoje você pode ser detido porque o regime suspeita que você tem a intenção de atentar contra a “moral socialista”. Ou seja, que as autoridades podem deter e aprisionar qualquer pessoa “suspeita” de ser “suscetível” de cometer um ato contra o estado. Não é preciso que se cometa um delito em Cuba para ser detido; basta a suspeita da “intenção” de cometê-lo.

Em Cuba, você é detido por “presunção”, não necessariamente por ter cometido um ato contra a “moral socialista” (seja o que for que o regime entende por isso). Assim, os jovens negros são detidos todos os dias na rua, por serem “suspeitos” de ter a proclividade, ou seja, a “propensão”, a cometer um crime. Essa é a situação que enfrenta a maioria negra em Cuba e isso contribui para que o 85% da população penal atual seja negra. A meu ver, a “Ley de peligrosidad” é muito mais do que uma aberração dos Direitos Humanos; é um instrumento fascista, pois ela condena a pessoa sem ela ter cometido delito algum.

Afropress – Em uma declaração recente do governo cubano, se referindo à oposição interna, a qualificou de “contra-revolucionários pagos pelos Estados Unidos e seus aliados para desacreditar à Revolução”. Como o senhor vê isso?

Moore – Criminalizar o oprimido é uma constante na história das sociedades pós-escravagistas, trata-se de uma arma ideológica das elites dominantes para desmoralizar, desacreditar e eliminar aqueles que se opõem a elas. Segundo o regime cubano todos aqueles que, dentro ou fora de Cuba se opõem as coisas inaceitáveis que estão acontecendo lá, seriam “contra-revolucionários”, “mercenários do imperialismo”, “agentes da CIA” ou “escória social”.

Se o opositor for de raça negra, então ele é também qualificado de “criminoso” e de “delinquente”. Segundo esse alucinante esquema oficial, a gente decente, boa, revolucionária e democrática, se encontra somente no poder – e, claro, são todos brancos! O próprio Abdias Nascimento foi qualificado recentemente de “contra-revolucionário” pelo regime, devido às críticas que ele fez, em Outubro de 2009, do racismo lá. Desde a escravidão para cá, os negros rebeldes sempre foram qualificados de “criminosos”.

No Brasil, os capoeristas, os adeptos do Candomblé, enfim, toda a cultura de resistência, foi qualificada de “criminosa”. Tratándo-se de una sociedade onde predomina a ideologia da supremacia branca, não se deve estranhar que as pessoas negras sejam tão fácilmente rotuladas de “delinquentes” e de “criminosos”. Tem sido assim ao longo da escravidão, no após abolição, e continua sendo-o nos nossos dias.

Para a  – aliás, como no Brasil -, todos os negros são suspeitros, pois potencialmente “criminosos”. Assim funciona uma sociedade racista! Não deve surpreender, portanto, que aos olhos do regime, todos aqueles negros que não se submetem à ditadura sejam considerados como “criminosos” e “delinquentes”.

 

 

Fonte: Afropress

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