PM Rafael dos Santos, barrado em restaurante, acusa gerente de racismo e caso vai parar em delegacia

Ministério Público Estadual (MP-BA) acompanha denúncia

Marina Silva:CORREIO

Bastou a lembrança vir à tona para a emoção dominar o homem de 1,92 m de altura e 103 quilos. “Naquela situação traumatizante, só pensei nos meus dois filhos. Luto hoje para que eles nunca passem pelo que eu passei”, declarou o policial militar Rafael dos Santos, 33 anos, ao CORREIO, na manhã desta terça-feira (12). Ele acusa o Restaurante Picuí, no Jardim Armação, de ter cometido racismo, ao ser impedido de entrar no estabelecimento na noite de Quarta-feira de Cinzas (6).

Segundo Rafael, ele foi ao encontro de um casal de amigos no local, quando a porta foi trancada logo na sua chegada – outras pessoas de pele clara não tiveram impedimento para ter acesso ao local, segundo o PM. Ele disse ao CORREIO que não tem dúvida: foi vítima de racismo.“Até então, isso nunca havia acontecido comigo, mas esperava um dia, porque infelizmente o Brasil é um país racista”, disse o policial, com os olhos marejados.

O caso foi parar na 9ª Delegacia (Boca do Rio) e é acompanhado pelo Ministério Público Estadual (MP-BA). Em nota enviada ao CORREIO, o Picuí negou a acusação (veja abaixo a íntegra da nota do Pícuí) e informou que a moto do policial foi vista circulando nas proximidades do estabelecimento em “atitude suspeita”.

Soldado do Batalhão de Guardas há quase oito anos, Rafael é lotado no Departamento Estadual de Trânsito da Bahia (Detran-BA). No dia 6, havia trabalhado o dia inteiro e, ao final da Quarta-feira de Cinzas, foi ao encontro de um casal de amigos, que já o esperava dentro do restaurante, na Rua Melvi Jones.

Ele chegou ao local às 19h, usando calça jeans, camisa branca com detalhes em azul, tênis, relógio prata e uma bolsa que atravessava o peito. O PM desceu da moto e seguiu em direção à entrada do restaurante. No trecho, falava ao celular com a amiga que já estava no local. Foi quando notou algo de estranho.

O restaurante, no Jardim Armação (Foto- Marina Silva:CORREIO)

“Percebi uma movimentação dentro do restaurante. Os garçons (negros e brancos) estavam agitados. Me olhavam de forma diferente. Daí pensei: ‘Será que está rolando um assalto?’. Quando me aproximei, encostei meu rosto na parede de vidro, vi um clima tenso e, então, fui para entrar e vi que a porta estava trancada. Bati com a chave da moto e nada. Chamei pelo gerente e ninguém apareceu para me atender. Ainda assim, queria entender o que estava acontecendo, gritava para chamar o gerente, e nada de ninguém vir”, contou Rafael.

Do lado de fora, Rafael disse que tentou falar com o gerente por mais de 10 minutos. Foi quando um amigo, também policial militar, filho de um coronel, desceu de uma Mercedes-Benz e foi até ele saber o que estava acontecendo.

“Nesse momento abriram a porta, e o gerente, Marcelo, um homem branco, veio falar comigo. ‘O que você quer aqui?’, perguntou ele. ‘Como o que eu quero aqui? Quero entrar’, respondi. ‘Tem alguém lhe aguardando aqui?’, perguntou novamente e rebati: ‘Não lhe interessa. Quero é entrar’. Foi aí que ele disse: ‘Sabe o que é, na semana passada assaltaram aqui e o senhor vem vestido dessa forma e trancamos a porta’. Então falei: ‘Quer dizer que você só abriu a porta porque meu amigo desceu de uma Mercedes-Benz?’”, relatou Rafael.

Ainda de acordo com Rafael, o racismo foi ainda mais evidente quando quatro pessoas de pele clara entraram sem sequer serem abordados. “Chegaram quatro pessoas brancas e ninguém indagou nada, não perguntou o que estavam fazendo ali, se esperavam alguém, diferente da forma que me trataram”.

Diante da circunstância, Rafael deu voz de prisão ao gerente. “Disse para ele: ‘Você acha que estou armado? Poderia estar, porque sou policial militar (exibiu o distintivo). Agora, você está preso por racismo. Ele tentou contornar a situação, mas eu disse que só sairia dali direto para a delegacia”, contou.

E foi o que aconteceu. Inicialmente, uma equipe da PM levou os dois para a 9ª Delegacia (Boca do Rio), mas, como não havia delegado, todos foram para a Central de Flagrantes, onde foram ouvidos pela delegada Celina de Cássia Fernandes. “Foram tomadas as declarações e a delegada achou por bem ouvir as partes e se aprofundar mais para não fazer juízo de valor”, explicou o advogado de Rafael, Dinoermeson Nascimento.

Processo
No dia seguinte, Rafael foi ao MP-BA, onde também relatou todo o ocorrido. A assessoria de comunicação do MP-BA informou que o procedimento já existe, mas por enquanto a promotora Lívia Vaz, coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção aos Direitos Humanos e de Combate à Discriminação (GEDHDIS), não vai falar sobre o assunto.

Mas Rafael não pretende parar por aí. Vai processar o Restaurante Picuí. “Quando contei o que houve para minha família, todos ficaram arrasados. Meus filhos (uma menina 12 anos e um menino 10) choraram muito. Meus pais, idosos, ficaram apavorados pensando que tinha acontecido algo de pior, porque parente de policial vive em constante tensão. Por isso, vou processar o restaurante”, disse o policial, que é formado em Administração pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e ogã de um terreiro em Simões Filho.

“Não há dúvida de que o restaurante será processado. Dinheiro nenhum vai pagar o que ele sofreu, mas é para que isso não se repita não só no restaurante, mas em todos os ambientes”, complementou o advogado da vítima.

Em nota, a Polícia Militar informou que ” foi acionada pelo militar no dia da ocorrência, na última quarta-feira (6), e fez o encaminhamento dos envolvidos para a Central de Flagrantes, onde o fato foi registrado”. A assessoria de comunicação da Polícia Civil disse que foi instaurado inquérito com base na Lei de Racismo na 9ª Delegacia (Boca do Rio), mas, até o momento, não informou as diretrizes do inquérito daqui por diante.

“Seremos resistência sempre. Que casos como estes não fiquem na impunidade”, disse o policial.

Recorrência
Este é segundo caso em que um estabelecimento é acusado de cometer racismo em menos de 15 dias em Salvador. No dia 19 de fevereiro, o empresário Crispim Terral, 34 anos, acusou a Caixa Econômica Federal de racismo, após ter sido expulso de uma agência e retirado à força pela Polícia Militar, que atendeu ao chamado da gerência da unidade, no Relógio de São Pedro, na Avenida Sete de Setembro.

A ação foi toda gravada e as imagens divulgadas em uma rede social do empresário. Crispim é proprietário da Farmácia Terral, em Salinas das Margaridas, no Recôncavo baiano. Em contato com o CORREIO nesta terça-feira (12), Crispim disse, no dia 26 de fevereiro, foi ressarcido da quantia de R$  2.056, que requeria da Caixa Econômica desde novembro.

“Eu continuo movendo minha ação na Justiça, até o fim. Todas as medidas cabíveis já foram tomadas e agora é aguardar para ver o que vai acontecer”, disse.

A reportagem tentou contato com a Caixa Econômica, mas não obteve retorno.

Veja íntegra da nota do Picuí

“O restaurante Picuí, com mais de 30 anos no mercado, jamais impediu a entrada de clientes no estabelecimento, tampouco orientou seus funcionários a procederem com conduta discriminatória de qualquer natureza. Pelo contrário, sempre pautou suas atividades ao público em geral, destacando-se na excelência do atendimento à clientela.

O fato ocorrido no dia 06 de março do ano corrente, na quarta-feira de cinzas, por volta das 21h, em hipótese alguma caracterizou a alegada postura preconceituosa. O que se verifica é que a atitude adotada pelos colaboradores derivou de um procedimento padrão de segurança, em razão das circunstâncias envolvidas no caso, que, frise-se, absolutamente nada teve a ver com a cor da pele do sr. Rafael dos Santos.

Na ocasião, a motocicleta dirigida pelo sr. Rafael circulou pelos arredores do estabelecimento em uma atitude suspeita, antes de estacionar nas proximidades. Ali ainda ficou parado por alguns instantes sem que o capacete fosse retirado. Tal comportamento aliado ao horário e a baixa circulação de populares na região, por conta do fim do recesso de carnaval, redobrou a atenção da segurança, sendo perceptível, inclusive, aos clientes de dentro do restaurante. O receio de eventual investida despertou, portanto, o dever de agir com o único objetivo de resguardar a integridade física e patrimonial dos consumidores.
Ressalte-se que ao se aproximar da porta principal, já sem o capacete, foi devidamente franqueada a entrada ao sr. Rafael dos Santos e demais clientes.

É público e notório a recorrente prática de delitos perpetrados por intermédio de motocicletas, dada a facilidade no deslocamento e dificuldade na identificação do agente em razão do uso do capacete.
O racismo é uma conduta inaceitável, e o Picuí sempre se manteve atento à sua responsabilidade ética. Deste modo, o estabelecimento se coloca à disposição para o aclaramento dos fatos, informando que o episódio está sendo devidamente apurado pelos Órgãos competentes e em momento oportuno serão apresentadas as filmagens e demais elementos comprobatórios da inexistência do alegado – e repugnante – ato discriminatório”.

+ sobre o tema

Hamilton Borges

Objeto de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), a...

Amarildo, jamais te esqueceremos! A Criminalização da pobreza

A polícia protege o patrimônio do grande capital...

MRE decide manter candidato que se autodeclarou afrodescendente em concurso

Brasília – O Ministério das Relações Exteriores, Itamaraty,...

para lembrar

Polícia do RJ apreende menor por ofensas a filha de ator na internet

Filha de Bruno Gagliasso foi alvo de ofensas racistas...

Black is King, ancestralidade e afro futuro

O rei Leão foi lançado pela primeira vez em...

Indicação de Ketanji coloca no radar a falta de juízes negros na bancada dos EUA

Como a nomeação de Ketanji Brown Jackson para a Suprema...
spot_imgspot_img

Felicidade guerreira

Já se perguntou se você é… racista? Indago porque pessoas negras costumam ouvir com indesejável frequência perguntas iniciadas com um "Você é… (três pontinhos)" se estiverem...

Educação antirracista completa 20 anos no papel com obstáculos na prática

Em 2024, o Brasil completa duas décadas de publicação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História...

Uma vida dedicada a proteger mulheres nos EUA, na África do Sul e na Índia

"O patriarcado é tão profundo que se torna normalizado, invisível. Ele está sistematizado na forma como nossas sociedades tratam as mulheres", ouvi da feminista...
-+=