Política de Drogas, o racismo perpetuado

POR GUILHERME MICHELOTTO BÖES

Esse artigo vai abordar alguns aspectos sensíveis do cotidiano da sociedade. Relacionar racismo com drogas é um tema que, na maioria das vezes, não há como afirmar que a taxa de encarceramento dos condenados por drogas é negra. E isso a pesquisa coordenada por várias professoras relatam essa dificuldade, mas não nega que a maioria das pessoas presas por drogas são de baixa renda e moradores de periferia.[1]

Já sobre o racismo, no dia 20 de novembro foi comemorado o Dia da Consciência Negra no Brasil. Em que pese ser um feriado facultativo, não é difícil apontar que (no caso do Rio de Janeiro) a maioria da população negra não teve esse “feriado”, quem teve foram os brancos com boa renda salarial que aproveitaram as praias do RJ com toda mordomia de ter uma cadeira, guarda-sol, ou sua cerveja gelada sendo servida por negrxs.

Mas, vamos adiante, não é fazer um histórico sobre o racismo, ou casos de racismo. Objetivo aqui é problematizar a relação com a política de drogas e como ela é manifestada de forma higienista[2] e racista sobre as pessoas.

Para que possamos pensar nesse problema entre o racismo institucionalizado e as drogas, é necessário confrontar com o excelente relato sobre suas experiências de vida e nas pesquisas sobre drogas, do neurocientista Carl HART[3] no livro “Um preço muito alto”. Esse livro realmente leva aos leitores a desafiarem um novo olha sobre as drogas. Com uma linguagem clara e na forma de autobiografia o autor aborda essa visão distorcida que a sociedade aprendeu a divulgar sobre as drogas.

Ao falar sobre o uso de álcool por seu pai, ele [Hart], com uma grande força para retomar suas lembranças de quando era criança, conseguiu chegar a uma conclusão que a origem dos problemas familiares que eles (sua família) enfrentavam não se pode

atribuir a presença do álcool. “Como cientista, aprendi a desconfiar das causas atribuídas às dificuldades enfrentadas pela minha família, vivendo inicialmente numa comunidade operária e mais tarde numa comunidade pobre.”

Essa última frase não quer dizer que ele atribuiu à pobreza os problemas de sua família, mas sim um problema que se agrava quando se falamos de racismo. E o pior racismo é quando ele não tem rosto, não tem corpo para que possamos estabelecer de onde ele surge e de onde podemos direcionar as formas de enfrentamento desse problema. O pior racismo é aquele que se institucionaliza. É um racismo que se traveste como política pública. É o que se chama de guerra às drogas.

Esse racismo adia os verdadeiros problemas de violência, os problemas sociais e políticos das sociedades. Vera Andrade chama a atenção para os riscos do chamado eficientismo penal contemporâneo: mais leis penais, mais criminalizações e apenamentos, mais polícias, mais viaturas, mais algemas, mais vagas nas prisões(…)[4]. Embora haja um discurso na mídia de que as drogas atingem toda a população, as formas com que o tratamento é dado aos jovens, negros[5] e moradores de periferia podem ser consideradas como uma espécie de antessala para essa política criminal violenta e segregadora, auxiliada pelo discurso de uma‘Criminologia colaboracionista’, refém do modelo (neoliberal) de controle penal euro-americano (globalizado), sempre em busca da eficiência perdida.[6]

A política de drogas, do Brasil, seguiu o modelo de fórmula única de aplicação de políticas públicas. Isso decorreu da aprovação do Convênio sobre Substâncias Psicotrópicas (Viena, 1971). Carvalho salienta que, a partir desse convênio, as agências norte-americanas de “combate às drogas”, partiram para uma representação de que, principalmente, duas drogas, heroína e cocaína, constituíam o inimigo interno da nação americana. “Todavia, com a popularização do consumo de heroína e a criação dos programas de metadona, forma indireta de controlar e legalizar o consumo, o inimigo interno teve de ser substituído, projetando-se ao exterior.”[7]

Os reflexos dessa política dos mais destacados países “desenvolvidos”, são visíveis na América Latina. Assim, os inimigos internos desses países (desenvolvidos) são as “drogas” (ilícitas) e nos países em desenvolvimento, está no fato de que eles são produtores de drogas e permitem rotas de envio das drogas para os países consumidores, apenas reforçando o discurso de Guerra às Drogas.

A partir disso, busca-se uma transferência de sentimento de segurança para a população. Começa um “[…] Processo de demonização do tráfico de drogas que fortalece os sistemas de controle social […].”[8] Esse controle que se institucionaliza no seio da população e reforça uma pergunta de Hart: “Porque estamos sempre pronto para culpar as drogas ilícitas por problemas sociais como criminalidade e violência doméstica?”

Conseguiríamos responder a isso sem reforçar o racismo que a política de drogas atual se auto-manifesta? Creio que não. Ao ler novamente sobre sua história, Hart faz uma descrição da política sulista que o ex-presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, programou. Uma política que “explorou o medo dos brancos e o ódio aos negros. Ela [a política implementada] transformou palavras como ‘crime’, ‘drogas’ e ‘urbano’ em códigos denotando “negros”, aos olhos de muitos brancos.”[9] Aumentando o índice de encarceramento de negros e a negação aos direitos civis.

Ao realizar essa análise Hart consegue perceber de que como a separação da sociedade por pessoas “de cor” foi associada (inclusive por negros) que ser negro estava associado ao seu “mau” comportamento. Uma forma de impor uma alta violência sobre as pessoas negra, criando um impacto sobre a própria imagem de sua condição de ser negro.

Se, foi com esse impacto sobre a sociedade, a possibilidade de divulgação da política de drogas cada vez mais seletiva com as próprias autoridades do sistema de justiça criminal ao associar essa imagem do negro como condição de seu comportamento. Não se é por isso que a própria sociedade aprendeu a estabelecer essa distinção Ora, eu jovem branco, de olhos claros, morador de bairro (e não gueto ou vila), percebo de longe essa imposição. E você que aqui está lendo esse artigo também percebe isso? Quantas vezes você já foi abordado pelas autoridades, quantas vezes você levantou suspeitas dos seguranças em estabelecimentos privados?!?!

Aprendemos a divulgar esse racismo de forma institucionalizada, as prisões, as vilas, as favelas. A forma da política de enfrentamento das drogas passa na segregação dos espaços e do condicionamento estrutural de seus frequentadores. E quando vemos esses excluídos do sistema social frequentando, ou se comportando, em lugares onde aprendemos a dizer que não pertence a eles, aplicamos um racismo com rosto e corpo e como diversas vezes ocorreu aqui no Brasil. Justiceiros, racistas, fascistas começam a divulgarem todo seu ódio.

Basta de aplicarmos uma política de drogas ultrapassada, que utiliza da “forma legal” a perpetuação de um racismo e escravidão que ainda teima em existir no Brasil e no mundo. Precisamos pensar em políticas que se preocupem com uma integração social e, que tudo, seja colorido.

Guilherme Michelotto Böes é Doutorando em Ciências Sociais PUCRS (bolsa FAPERGS/CAPES. Mestre e Especialista em Ciências Criminais. Pesquisador do GPESC/PUCRS.

[1] http://participacao.mj.gov.br/pensandoodireito/wp-content/uploads/2012/11/01Pensando_Direito.pdf
[2] “Historicamente, no Brasil, as leis repressivas sobre drogas foram influenciadas pelo discurso médico mais do que por grupos religiosos, como ocorreu nos EUA. E foi somente partir do século XX que o tema ganhou importância no espaço público nacional de discussão na perspectiva de ‘saúde pública’ ”. BOITEUX, Luciana. Drogas e cárcere: repressão às drogas, aumento da população penitenciária brasileira e alternativas. In: Drogas uma nova perspectiva. Sérgio Salomão Shecaira (org.) São Paulo: IBCCRIM, 2014. (Monografias; 66)
[3] HART, Carl. Um preço muito alto: a jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas. Tradução Clóvis Marques. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2014.
<[4] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: REVAN, 2012. p 111.
[5] Para discussão sobre a mídia e drogas sugiro a leitura do capítulo 12: “Ainda e sempre um neguinho”do citado livro de Karl Hart. Igualmente as dissertações de mestrado: PETUCO, Dênis Roberto da Silva. Entre imagens e palavras: o discurso de uma campanha de prevenção ao crack. 2011 e BÖES, Guilherme M. Crack nem pensar: um estudo sobre mídia e política criminal. 2011.
[6] Idem. p. 111.
[7] CARVALHO, Salo. A política criminal de drogas no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 19.
[8] BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: drogas e juventude pobre no Rio de Janeiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 135.
[9] HART, Karl. op. cit. p.27.*

 

Fonte: Justificando

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