Persiste a ideia, equivocada, de que as peles mais escuras estão “protegidas” do câncer. O assunto acaba ficando em segundo plano em campanhas de alerta e as pessoas de pele negra se deparam com uma dificuldade extra: a falta de fotoprotetores sob medida para suas necessidades – o que aumenta o risco do fotodano, que são os estragos causados pela exposição solar. Quem dá uma aula sobre o tema é a médica Julia Rocha, especialista pela Sociedade Brasileira de Dermatologia, que fez pós-graduação no Instituto de Dermatologia Prof. Rubem David Azulay, na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, e tem fellowship no Mount Sinai Hospital, em Nova York.
Na sua opinião, persiste a ideia de que as peles mais escuras estão “protegidas” do câncer?
Infelizmente, sim. Acredito que as estratégias de difusão do conhecimento deveriam ser intensificadas. O primeiro ponto é entendermos e capilarizarmos o conhecimento de que todas as pessoas são suscetíveis aos danos das radiações. Indivíduos com fototipos elevados (cuja pele é mais escura) possuem na epiderme uma maior proporção de eumelanina e feomelanina, que são subtipos da melanina, do que os com fototipos mais baixos. A eumelanina, especialmente, consegue atuar como um filtro natural da pele contra os raios ultravioleta B (UVB), responsáveis por queimaduras e vermelhidão após a exposição ao sol. De forma precipitada, poderíamos entender que essa proteção é completa para UVB, o que não é verdade. Tal proteção, dita “natural”, também não é efetiva para os raios ultravioleta A (UVA) e para a luz visível, que é a radiação que somos capazes de enxergar.
Os cuidados visando à proteção devem ser os mesmos para todos os tipos de tonalidades de pele?
Sim, a fotoproteção tem que ser inclusiva visando à saúde de todos. Quando pensamos nas manifestações do fotodano, indivíduos com fototipos elevados vão se queixar com menor frequência da presença de rugas e linhas de expressão. Em contrapartida, as desordens pigmentares estarão mais presentes. Ainda que menos prevalentes, as neoplasias cutâneas malignas também acometem indivíduos negros, e os riscos inerentes ao desenvolvimento das mesmas não devem ser negligenciados. Uma demanda trazida de forma constante por pacientes negros, principalmente aqueles de pele mais retinta, é que os fotoprotetores com cor disponíveis no mercado não são compatíveis todos os tons de pele. Há anos se faz presente a reivindicação da oferta de protetores que não deixem a pele com aspecto esbranquiçado ou acinzentado. O desconforto estético pode levar à não utilização ou à utilização de forma inadequada do protetor solar.
É mais difícil perceber uma lesão na pele negra? Que sinais devem ser observados?
Em nossa formação, nós dermatologistas devemos aprender a nos familiarizarmos com particularidades clínicas das lesões em pacientes de todos os tons de pele. Entretanto, durante o processo de aprendizagem, treinar o olhar para que façamos o diagnóstico correto, independentemente do fototipo, muitas vezes não recebe a relevância que merece. Na detecção em pacientes negros, ainda concorrem dificuldades por conta da variação de coloração e pigmentação – o que habitualmente ocorre em menor proporção em pacientes caucasianos. Adicionalmente, é indispensável realizar o exame clínico completo, visto que alguns tipos de câncer de pele, sobretudo em indivíduos negros, se apresentam em sítios anatômicos não fotoexpostos, como plantas dos pés, palmas das mãos, região subungueal e mucosas.
Embora o melanoma seja mais comum em quem tem pele clara, há prevalência maior do melanoma acral, ou acrolentiginoso, entre os negros. Por que o diagnóstico precoce costuma ser um desafio, impactando as chances de cura?
O câncer de pele é estatisticamente menos prevalente em pessoas com fototipos elevados. Por outro lado, quando ocorre a detecção de alterações cutâneas malignas nessa parcela da população, elas são diagnosticadas num estágio mais avançado e apresentam um pior prognóstico. Fatores socioeconômicos, como o pouco acesso ao sistema de saúde, são barreiras para o diagnóstico precoce. O screening, que é o rastreamento periódico das lesões, e as formas de prevenção do câncer de pele são mais limitados entre os pacientes negros. Deveria haver um esforço maior das campanhas públicas de prevenção sobre os riscos existentes para todos os tipos e tons de pele. Particularmente em relação a indivíduos negros, é preciso instruir sobre a importância do autoexame não apenas nas áreas expostas ao sol, mas também em locais menos expostos, como as palmas das mãos, plantas dos pés, unhas e mucosas.