Por uma escola multiculturalista

Vilma Homero

Imagem: Aleksandra Pawloff (Courtesy Photo)

“Meu nome é Tauana dos Santos, tenho 21 anos. Desde muito nova, fui vítima de preconceito por conta da religião a que pertenço, o candomblé, e pela minha cor negra.” O depoimento estampa uma das orelhas do livro Educação nos terreiros – e como a escola se relaciona com crianças de candomblé, de Stela Guedes Caputo, professora da Faculdade de Educação da Uerj, e reflete a forma discriminatória como, de uma forma geral, a prática do ensino religioso é feita nas escolas da rede pública.

O livro, publicado com apoio do Auxílio à Editoração (APQ 3), nasceu de uma reportagem “Os netos de santo” para o jornal O Dia, em 1992, ou seja, feita há 20 anos, quando Stela trabalhava como jornalista. Em 1996, mestranda da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) e aluna da professora Vera Candau, na disciplina “Cotidiano Escolar: questões de raça, gênero e violência”, Stela voltou ao terreiro. Para sua surpresa, algumas das fotos que usara na matéria de O Dia haviam ilustrado uma outra reportagem, de página inteira, no jornal evangélico Folha Universal. O título sintetizava o teor e o tom do texto: “Filhos do Demônio”.

Milhares de jornais com as fotos de Tauana dos Santos e Ricardo Nery, um menino de quatro anos que já naquela idade tocava um atabaque como poucos adultos, foram espalhados pela Baixada fluminense e por outras regiões do estado. À reportagem se seguiu a 13º edição do livro Orixás, caboclos e guias – deuses ou demônios, escrito pelo bispo Edir Macedo e mais uma vez reproduzindo as fotos das crianças. Nem é preciso dizer que a publicação resultou em vários episódios de discriminação. Mas tomar conhecimento de tudo isso também fez com que Stela se decidisse a analisar mais profundamente o assunto em sua tese de doutorado.

“Não tenho religião, mas defendo radicalmente o direito de qualquer pessoa de professar sua fé, ou nenhuma fé”, declara a autora. Para defender sua tese e escrever o livro Educação nos terreiros, Stela frequentou terreiros e escolas da rede pública, conversou com crianças e suas mães, entrevistou mães de santo e professores de ensino religioso das escolas da região para mostrar um quadro bastante real de como, na maioria dos casos, essas escolas repetem o mesmo olhar discriminatório que prevalece na sociedade quando o assunto são as religiões de matrizes africanas. Nas aulas de ensino religioso, facultativas na grade escolar, a ideia é abordar os aspectos culturais de todas as religiões, do judaísmo ao islamismo, do espiritismo ao catolicismo, das religiões neopentecostais às afro-brasileiras. Tudo isso sem proselitismo ou catequese.

Mas não é o que acontece nas escolas que a autora visitou. Muitos professores da disciplina são neopentecostais ou católicos, o que na maioria dos casos significa limitar as aulas apenas a essas duas abordagens. Sobre as religiões afro-brasileiras, apenas um enorme silêncio. Uma das professoras de religião entrevistadas admitiu que selecionava os textos para suas aulas, procurando o que havia de comum entre catolicismo e religiões neopentecostais. À pergunta se sabia que tinha alunos de religiões de matriz africana, ela apenas explicou: “Claro que sei. Mas eles leram o texto que passei, viram que estavam errados e vieram para o catolicismo.”

Situações como essas costumam fazer com que alunos praticantes do candomblé omitam sua religião, declarando-se católicos, escondam marcas e guias religiosos. Expor-se como adeptos do candomblé quase sempre significa ser chamado pelos demais estudantes de macumbeiro, no sentido pejorativo, ouvir declarações que desclassificam sua religião. Humilhações que levaram Luana, uma outra criança que também fez parte da pesquisa, a certa altura da adolescência declarar a Stela: “Quero ser crente. Na escola, só gostam dos alunos crentes.”

No caso de Ricardo Nery, cujo depoimento começa na segunda orelha do livro, é ele mesmo quem conta: “Sou a criança da contracapa. Senti o preconceito desde muito cedo. (…) O efeito da matéria publicada na Folha Universal foi arrasador. Me senti excluído por muitos amigos do colégio onde estudava e essa é uma fase da infância que procuro até hoje esquecer”, declara o ogã de Xangô, função que, com orgulho, ocupa até hoje, aos 24 anos, no terreiro de Mãe Palmira, em Mesquita, na Baixada fluminense.

“Nesses 20 anos que levei na pesquisa, não vi nenhuma mudança de comportamento, seja de maior tolerância religiosa ou de uma diminuição no racismo. Acho que a discriminação é profunda, que ou invizibiliza o que é diferente, não enxerga negros ou praticantes de candomblé, ou enxerga e discrimina. O que são apenas formas diferentes de preconceito”, esclarece Stela. Ela viu que, no espaço da escola, a maioria das crianças se diz católica. “Não é culpa delas. Professores que são de candomblé também são discriminados. Recentemente, uma professora da rede pública foi proibida de usar em suas aulas o livro Lendas de Exu, também da Editora Pallas, com que procurava mostrar às crianças a mitologioa africana. Há muito obscurantismo. Afinal, na escola, estão presentes as mesmas tensões, o mesmo racismo existentes na sociedade.”

Apesar de toda essa discriminação, pelo que Stela pôde observar, não houve, entre as crianças, quem se afastasse do candomblé nesses 20 anos. Pelo contrário. “No candomblé, elas têm um aprendizado muito rico, e gostam muito disso. Nos terreiros não há crianças infelizes. Nunca vi ninguém carregando à força uma criança para o terreiro, obrigando a freqüentar. Só permanece quem quer. Elas ficam tristes é na escola, com a discriminação por que passam”, pondera Stela.

 

Segundo a autora, seu livro, que está sendo lançado na Uerj esta semana, vem tendo boa aceitação, embora reconheça, que às vezes, entre acadêmicos, o tema seja visto com certa desconfiança. “Tem gente que torce o nariz. Até já me perguntaram o que candomblé tem a ver com educação. Mas o candomblé é uma religião que tem muito a ensinar à educação. Educação como rede de conhecimento, em que as crianças aprendem a língua yorubá, conhecem os mitos, as ervas, são ensinadas sobre o respeito à natureza. Tudo isso é um conhecimento importante. É também uma religião que não discrimina ninguém por raça, por orientação religiosa ou sexual, nem as famílias formadas a partir disso. Aprender conteúdos é importante na escola, mas, para mim, aprender a não ser racista, não discriminar religiões ou a ser homofóbico, por exemplo, é um aprendizado mais importante do que matemática, português, química. E é isso que o candomblé faz.”

Para Stela, toda essa discussão tem que fazer parte do curso de formação de professores, que é onde se forma aqueles que ensinam. “Também acho que não pode haver ensino religioso em escolas públicas. A religião é bem-vinda na escola, mas é mais um desafio ao professor reconhecer as diferenças, aprender a conviver. O que não se precisa é de uma disciplina de ensino religioso, com hegemonia católica e neopentencostal”, critica.

Enquanto não há mudanças visíveis por este lado, a pesquisadora percebeu transformações bastante palpáveis do outro. “Vejo isso no comportamento de alguns adeptos do candomblé. Crianças que, no início, não queriam ser identificadas, com medo da discriminação, no decorrer desses anos, mudaram o comportamento. Passaram a de assumir mais, a militar nos movimentos sociais, sem vergonha de sua cor nem de sua cultura.” Tauana é uma delas. Se no começo da pesquisa, preferia ser identificada como Michele, agora afirma com orgulho: “Sou ekedi, que é a minha função no terreiro, sou negra, tenho cabelo crespo e sou percussionista do grupo Orumilá.” E quando a pesquisadora pergunta o que a ajudou a mudar, se foi a escola, ela responde de imediato: “Não, pelo contrário. Se dependesse da escola, eu continuaria com vergonha da minha cultura e da minha cor. O que ajudou mesmo foram os movimentos negros e, claro, o terreiro.”

Fonte: Faperj

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