Precisamos falar sobre Andrei Apolônio. Você o conhece? Ele tem grandes olhos amendoados, doces e de fundo límpido, em que se vê, sem esforço, o brilho da coragem. O lado direito do rosto está esfolado e sobre ele há uma camada de sangue de ferida recente. Na testa, escoriações, uma ou outra, assim como nos braços e nas pernas. A fala articulada, ainda que vacilante, nos prende a atenção e, às vezes, ficamos em suspenso, esperando uma lágrima, parece que ele vai chorar, mareja, mas não chora. Parece que vamos chorar, quase choramos, alguns choram. Perdeu um dente, o que imprime ainda mais fragilidade à sua aparência de menino de 20 e poucos anos. Dá uma tristeza vê-lo tão desamparado. Seria ele indefeso, carregando dores que não sabemos quais? Seria ele um bravo que expõe seu drama como a exigir que o olhem e sorvam, a cada palavra, todo o desencanto que roubou a felicidade de seu jovem coração de estudante? Seria ele um menino, só um menino?
Por Carla Rocha Do O Globo
Andrei é um grande homem. Sua família, seus amigos, seus professores devem saber disso. Mas a valentia desse universitário da UFF se tornou pública e presta um grande serviço a todos. Precisamos falar sobre o que ele fez, sem pretender fazer nada além do trivial. Andrei foi registrar, numa delegacia de Niterói, o furto de seu celular. Era para ser uma rotina anônima, como a de milhares de vítimas desse tipo de crime no estado. No final da história, caberia, quem sabe, dar graças a Deus, sentir-se sortudo, porque, em qualquer esquina, pode-se morrer na mão de um assaltante ou na rota de uma bala perdida. Esse é o Rio que estamos levando dentro de nós, em almas aprisionadas e apreensivas, que mal conseguem enxergar a paisagem ou celebrar a vida, o que seria normal, nesse paraíso decaído, cercado de belezas e de caos. Perdemos, entre muitos direitos que foram ficando pelo caminho, o direito à contemplação.
Nesse cenário, Andrei bateu à porta da delegacia de madrugada. Gay, não pensava nisso, pelo menos não naquele momento em que, certamente, só queria cumprir a prosaica obrigação de avisar ao estado que fora roubado. Coisa simples: usurpado em seu direito à segurança, ele cumpria o dever burocrático de entrar para a estatística criminal. Mas ele não sabia que sua opção sexual, que afinal está sempre conosco, aonde quer que vamos, desafiaria as rasas convicções humanas de um policial. Andrei contou ter sido espancado durante uma hora pelo menos, relatou xingamentos homofóbicos e tapas na orelha. Fiquei imaginando, enquanto via e ouvia Andrei contar os detalhes das agressões, o tamanho da covardia, mas não dei conta. Quando comecei a divagar, me perguntando se Andrei tentou correr, se pediu para que cessassem de esmurrá-lo, se suplicou, eu me encolhi. Esse suposto agente da lei humilhou todos nós. Só não humilhou Andrei. Não vou dizer que a violência o dignificou porque, menino bonito, alunos promissor de uma universidade pública, ele não precisava ter passado por tudo aquilo. Mas vou dizer, sim, que Andrei nos dignificou pela forma como enfrentou a brutalidade.
Ele não se calou. Em frente a câmeras de TV, Andrei foi falando, como se fosse uma confissão, tudo que lhe aconteceu. Em alguns momentos, parecia entender bem, apesar de estar diante do inominável, em outros, parecia não entender nada. E eu, sem desviar um minuto minha atenção, ia acompanhando as oscilações desse entender e não entender, cheio de confusas emoções: medo, indignação, assertividade, dúvidas. Senti doer o estômago, senti apertar o peito, senti gelar as mãos. Pensei nas minhas filhas, nos filhos dos meus irmãos, nos filhos dos meus amigos. Senti ódio do policial, senti ódio do sistema que não prepara e não pune os maus servidores, senti ódio da sociedade ignorante que acredita que uma polícia violenta pode conter o avanço da barbárie. Eu parei para ouvir aquele menino, não, aquele homem, parei para ouvir o que Andrei tinha a nos dizer. O que seria uma queixa de roubo, não mais que um inconveniente numa vida cheia de futuro pela frente, virou um vergonhoso pesadelo. O texto dele, feito de improviso, mas cheio de ética e verdade, nos encantou e nos assombrou. Queria abraçar Andrei, colocá-lo no colo, deixar ele chorar e dizer que é normal chorar quando nos sentimos impotentes e a estupidez se impõe.
Andrei quase chorou – acho que vi seus olhos molhados -, mas não chorou. Ele sentiu medo, mas não sentiu tanto medo a ponto de paralisar. Andrei falou e nos redimiu e nos encheu de esperança. Andrei é um herói. Ele nos ensinou sobre resiliência cidadã e, principalmente, sobre humanidade. Ao expor a desumanidade do policial, ele nos provocou a pensar no contraponto, que é a generosidade. Ao expor sua humanidade, ele nos fez pensar em quantas vezes não a omitimos ou não nos omitimos frente a uma injustiça, mesmo quando ela é flagrante.
“Eu sei que estou fazendo o correto, de não baixar a cabeça para a injustiça e a maldade alheia. Eles vão para cima dos outros e eu não sei se estes outros vão ter coragem de fazer o que alguém tem que fazer. Alguém tem que mostrar e dizer: temos uma coisa errada e, se tem algo errado, temos que melhorar para consertar. Ninguém é obrigado a passar pelo que eu passei. Ninguém”.