Priorizar escolas significa reabri-las agora?

Enviado por / FonteUOL

Artigo produzido por Redação de Geledés

Em menos de um mês, as escolas brasileiras completarão meio ano de portas fechadas. Neste período, a omissão federal no combate à pandemia turvou o debate sobre o retorno às atividades presenciais. Fez submergir, no prolongamento da crise e do sofrimento, na ansiedade da falta de perspectivas e na crescente pressão empresarial, algumas premissas que não podem ser relativizadas. Pelo menos se o objetivo for proteger vidas e, ao mesmo tempo, não agravar desigualdades educacionais.

O debate informado sobre a reabertura das escolas já transcendeu há muito as elucubrações sobre a necessidade de priorizar investimentos em escolas públicas e de torná-las espaços saudáveis e seguros.

Nesta altura dos acontecimentos, não é difícil perceber que o orçamento da educação é insuficiente, que a possibilidade de ajuda federal foi vetada por Bolsonaro e que nenhum plano local de retomada prevê investimentos robustos para reverter, ainda que parcialmente, o quadro desolador da infraestrutura escolar. No estado de São Paulo, os investimentos para reformas e conservação de escolas caíram 75% entre 2014 e 2018.

Não é por acaso que os profissionais da educação e os usuários da escola pública são os que melhor percebem as diferenças entre a escola real e a escola imaginada do tapete sanitizante e besuntada de álcool em gel.

O secretário da educação do estado de São Paulo, Rossieli Soares, argumentou que “risco zero só com a vacina“. É difícil discordar, embora a sua fala insinue que a reabertura poderá custar algumas vidas. A questão mais séria que se coloca aqui é essa mesmo: para reabrir escolas, assumiremos o risco de acelerar taxas de infecção nas comunidades escolares, provocando surtos e mortes evitáveis?

Um estudo publicado no “Journal of Pediatrics” destaca que é maior do que se imaginava o papel das crianças na dispersão do SARS-CoV-2. Além disso, médicos apontam o aumento de casos da síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (Sim-P), cuja expansão vem sendo associada à Covid-19.

Mesmo em esquema de rodízio, a circulação massiva de pessoas para e a partir das escolas impactará os números globais da pandemia, assim como o fazem bares, shoppings e academias. O fato de estes estarem abertos – precipitadamente, na opinião de especialistas – não diz absolutamente nada sobre uma alegada falta de prioridade às escolas, como afirmou Julián Fuks em sua coluna no UOL Ecoa (15/08).

Manter as escolas fechadas significa, pelo contrário, que ainda somos capazes de dar alguma relevância à educação, aos educadores e às crianças, parcialmente resguardadas, até aqui, da roleta-russa que se tornou o convívio com a tragédia da Covid-19 no país.

O Simulador de Dispersão do Coronavírus em Escolas, resultado de um estudo do grupo interdisciplinar Ação Covid-19 e da Rede Escola Pública e Universidade, estima que, caso o plano de São Paulo para a reabertura seja seguido – começando com 35% dos estudantes por período nas escolas -, haveria dinâmica de infecção ainda que a maioria das pessoas seguisse os protocolos de segurança, higiene e distanciamento. O percentual acumulado de infecções seria obviamente maior nas unidades escolares mais adensadas dos bairros periféricos.

Todo mundo tem uma opinião a dar quando o assunto é “escola” ou “educação”. O senso comum educacional sabe bem que escola não é só lugar de ter aula ou de aprender o que está nos livros. Para o filósofo e educador Gert Biesta, escola é lugar de qualificação, de socialização e de subjetivação. No debate acalorado da reabertura, alguns pontificam que as crianças não estão aprendendo. Outros, que as crianças não estão socializando. Cada um elege a função da escola que mais convém à sua tese e, no geral, descomplexifica o restante.

A escola é lugar de produção deliberada de situações de ensino e de convívio. É essa intencionalidade que separa o que chamamos “educação” do espontaneísmo pedagógico praticado em casa nos últimos meses. É este que faz sofrer crianças, adolescentes, seus familiares e profissionais da educação. Sofrimento que, aliás, vem sendo documentado em textos críticos da mídia independente e em algumas boas reportagens dos grandes veículos desde o mês de março.

Para quem sempre defendeu as escolas públicas, é profundamente triste ter que lutar para mantê-las fechadas. Nisso Julián Fuks tem razão. Mas, também aqui, a insensatez apontada pelo escritor é apenas aparente, pois educação é direito social e projeto coletivo.

O Brasil tem quase 50 milhões de estudantes na educação básica, 80% em escolas públicas. Com todo respeito aos que sofrem ou que projetam nas crianças a própria tristeza, é forçoso dizer que o sofrimento por um semestre de escolas fechadas tem a dimensão de 1/4 da população brasileira. Todo alívio, portanto, tem dimensão de política pública.

Perder isso de vista pode induzir à disseminação, na educação, de um perverso jogo de desresponsabilização. Em lugar do dever estatal de proteger a vida de todos, o direito individual de escolha dos pais. Em lugar de decisões sistêmicas, a flexibilização da reabertura e a terceirização dos riscos.

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