Quase um ano depois, servidora negra exonerada pela UFPE não reaveu cargo e relata meses de incertezas e vulnerabilidade

A bióloga Nívia Tamires de Souza Cruz viu sua nomeação em cargo público da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) ser anulada no dia 7 de outubro de 2021, mesmo após três anos do chamado estágio probatório. A coluna Negras Que Movem contou a história da bióloga em fevereiro deste ano. Hoje, após quase um ano da exoneração, ela nos relata o andamento do processo, informando que não reaveu o cargo e apontando racismo estrutural no caso em questão. 

Veja, abaixo, o relato de Nívia:

Entre 2014 e 2015 dediquei e organizei minha vida e da minha família para passar em um concurso público e assim construir uma vida estável para mim e para meus filhos. Nesse movimento de muito gasto de energia e de tempo, passei em três concursos públicos. Inicialmente assumi como professora na rede municipal de Jaboatão dos Guararapes e na rede estadual de Pernambuco. Em novembro de 2016 fui convocada para o cargo de Bióloga, nível superior, pela Universidade Federal de Pernambuco onde passei em 1° lugar, através da política de cotas raciais. Para admissão na instituição, exonerei dos cargos supracitados, objetivando atender a exigência de não acúmulo de cargos públicos. Por fé pública ingressei como servidora na UFPE.

Em três anos desempenhando a função de bióloga pude construir uma rotina e um planejamento familiar. Neste período ingressei no mestrado em Sociologia nesta Universidade para estudar o impacto do racismo ambiental na vida da mulher pescadora de Serrambi/PE, resultado da consciência racial desenvolvida e o desejo de possibilitar um retorno social.

O processo de exoneração que me destituiu do cargo de servidora pública estável em 2021, mesmo após o estágio probatório, destituiu por completo meu direito legítimo de dignidade humana, lançando-me numa situação de vulnerabilidade socioeconômica. Essa conduta do Estado, exercida por um funcionalismo heteronormativo branco, sob a égide da “imparcialidade” e “legalidade” incide sobremaneira sobre à população negra.

A cota racial através da qual ingressei no serviço público federal é o reconhecimento do racismo estrutural que constitui a sociedade brasileira e a busca em reparar as atrocidades cometidas pelo Estado. A exoneração por mim sofrida agride diretamente a política de cotas, a minha e outras trajetórias de vidas negras, indo em sentido contrário a construção de uma sociedade menos desigual.

Entendo como incoerentes, e, de certo modo perversas, as ações praticadas pela  Universidade. A começar pela produção de discursos “bonitos” e bem articulados de uma gestão democrática que prioriza as políticas afirmativas. Paralelo a isso, sou exonerada enquanto funcionária efetiva, tendo minhas conquistas e possibilidades e aspirações econômica, profissional, acadêmica e principalmente pessoal/maternal arrancadas, amparadas em interpretações e/ou argumentações técnicas e demasiado ambíguas.

Entramos com os embargos sobre o qual houve uma audiência pública na Justiça Federal. Nela estiveram presentes a Articulação Negra de Pernambuco (ANEPE), Movimento Negro Unificado (MNU), União de Negras e Negros pela Igualdade (UNEGRO) e Comissão de Direitos Humanos, Sindicato dos Trabalhadores das Universidades Federais de Pernambuco – SINTUFEPE e Comissão Cidadania, Direitos Humanos e Participação Popular (ALEPE). Nessa audiência, o juiz deu prazo de 30 (trinta) dias ao procurador da AGU e da UFPE para manifestarem intenção de acordo, objetivando a solução do meu caso.

Não houve nenhuma manifestação da UFPE mesmo tendo o Ministério Público Federal emitido um Termo de Recomendação orientando a minha reintegração. Seguimos agora para o TRF5 para um novo julgamento, ou seja, sigo numa batalha que parece não ter fim. Nas reuniões com as entidades e movimentos antirracistas que vem me acompanhando a  universidade afirma estar sendo obrigada a cumprir ação judicial e que tem interesse na manutenção do meu cargo. No entanto, diante da justiça, a Instituição deixa de agir.

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