Ser enterrada como homem é história que se repete entre as transexuais

Jennifer Gable teve os cabelos cortados, foi enterrada de terno pela família e chamou a atenção para uma situação mais comum do que se imagina. Uma carta pode evitar isso

Por Ana Ribeiro

Mais chocante do que ouvir uma história chocante é ouvir que ela é bem mais comum do que se pode imaginar. A transexual Jennifer Gable morreu em Twin Falls, Idaho, nos Estados Unidos, e sua família cortou os seus cabelos, a vestiu com um terno, divulgou um comunicado de óbito com seu nome masculino e a enterrou como homem.

“Tenho uma amiga que durante a vida toda sempre falava: ‘Quando eu morrer, vocês me enterrem de minissaia'”, diz a transexual Márcia Rocha. “Quando ela morreu a família não quis nem que fôssemos ao velório.'”

Não é exagero dramático o roteiro do curta “Os Sapatos de Aristeu” (2007), de René Guerra, vencedor do Grande Prêmio do Canal Brasil. Quando uma transexual morre em uma cidadezinha do interior, sua mãe e sua irmã seguem exatamente o mesmo roteiro da família americana de Jennifer Gable: vestem aquele corpo feminino com um terno, cortam o cabelo longo, abotoam a camisa branca por cima da prótese de seios, mantêm as amigas à distância. E a irmã ainda se revolta: “Você é a vergonha da nossa família! Foi embora e nos deixou sozinha para virar ‘isso’!”

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René Guerra conta que o curta estreou em 2007 e foi seu primeiro contato com o universo transexual. “Até hoje o filme me dá frutos”, diz. “É utilizado para iniciar debates em associações de travestis, mesas redondas na OAB, acabou se transfomando em instrumento de discussão da função política e social da identidade trans.” René conta que realmente a história de “Os Sapatos” é bem conhecida das atrizes do filme, transexuais mais maduras como Divina Núbia e Phedra de Cordoba, elenco que ele vai repetir no longa “Lili e as Libélulas”, a ser filmado no início do ano que vem.

“Na realidade, na primeira cena do “Sapato” (que mostra duas mãos bordando um vestido todo enfeitado de pedrarias), elas utilizam o vestido de uma amiga delas que morreu, aquela emoção é de verdade”, revela. “Todas vivem esse dilema. Para ‘cair no centro’, ‘cair na vida’, elas se afastam da família. A transição de sexo acontece longe, a família não acompanha o processo de hormonização, a transformação corporal. Elas mantém contato por telefone, mas quando o corpo volta, a família decide por uma reapropriação da identidade, por mudar o gênero pelas próprias mãos. Faz parte de um processo de luto em vida, já que a maioria renega a questão da identidade sexual.”

Comentando o caso da americana Jennifer Gable, René lembra que nos Estados Unidos a funerária é a responsável por preparar o corpo. No caso de Jennifer, como declarou o funcionário da funerária Magic Valley, a certidão de nascimento que apresentaram para ele era masculina e a indicação que ele teve foi de preparar o corpo como um homem.

A LIBERDADE DO OUTRO

René cita uma frase do poeta mexicano Octavio Paz que o guiou durante a concepção do filme: “É por não dizermos o que temos a dizer, é por não fecharmos os nossos ciclos, que a morte para nós ocidentais é algo tão sem sentido.” “A geografia de uma transexual é ser barrada na rua, jogada fora da família, renegada na escola, abusada, violentada, surrada. O momento da morte poderia ser de reparação, de amor, de reencontro, e é o contrário. Enterrar uma trans como homem é não reconhecer a liberdade do outro nem nesse momento.”

“O momento da morte poderia ser de reparação, de amor, de reencontro, e é o contrário. Enterrar uma trans como homem é não reconhecer a liberdade do outro nem nesse momento (René Guerra)

Márcia Rocha já viu esse tipo de situação vezes demais para ainda se abalar com ela. “É difícil para a família aceitar e entender a transexualidade. Minha mãe me aceita, eu a frequento, a gente sai junto, mas me chama de Marcos, não tem jeito. Em muitos casos a família continua tratando os transgêneros no masculino ou no feminino.” René lembra de algumas mulheres transexuais que visitam a mãe de madrugada. “As mães só permitem que elas as visitem vestidas de homem e de madrugada, para que os outros não vejam.”

Com o que ela chama de “postura light no ativismo”, Márcia diz que vai ficar um pouco ridícula com “esse peitão” se decidirem enterrá-la de terno, mas que não vai perder o sono por conta disso. “Eu já morri, que se dane, façam o que quiserem. A gente tem de se preocupar enquanto está vivo, depois que morreu que se dane.” Mas ela entende que, mesmo não se incomodando pessoalmente, essa situação é uma agressão para as outras trans. “Se minha família mostrar que não me reconhece como mulher, está indiretamente dizendo para o mundo que não me aceitou a vida toda. O velório é um momento de demonstrar uma postura para a sociedade”.

“Se minha família mostrar que não me reconhece como mulher, está indiretamente dizendo para o mundo que não me aceitou a vida toda (Márcia Rocha)

Márcia se lembra de uma situação recente que aconteceu no velório de um amigo gay. “Na hora do enterro os amigos colocaram uma bandeira do arco-íris em cima do caixão. O irmão dele foi lá e arrancou. Mais do que com o morto, é um desrespeito com a comunidade LGBT. A gente precisa combater e lutar contra, mas tudo tem de ser feito devagar, nada acontece de uma hora para a outra.”

UMA SOLUÇÃO IMEDIATA

René acredita que os Estados Unidos estão muito à frente nessa discussão, mas que mesmo lá as transexuais são desrespeitadas a vida inteira e seguem sendo desrespeitadas na hora da morte. “Durante a vida tem todas aquelas maldades cotidianas, de gente que se recusa a chamá-las de mulher, dos banheiros que elas não podem usar, da inadequação no hospital. Na morte, muitas são enterradas pelas amigas ou como indigentes, porque as famílias não clamam o corpo. A esse ser humano é negado desde o seu nascimento até a trajetória final o direito de ser ele mesmo. É muito importante esse caso ter acontecido lá para chamar a atenção.”

“Muitas trans são enterradas como indigentes porque as famílias não clamam o corpo. A esse ser humano é negado desde o nascimento até a trajetória final o direito de ser ele mesmo (René Guerra)

Quem traz uma boa notícia é Dimitri Sales, advogado especializado em causas LGBT. Ele diz que há sim uma maneira legal de garantir que o enterro seja feito conforme a vontade da transexual. “Tem que ser feito um documento registrado que estabelece tal situação. O Condicilo, antigo artigo 1881 do Código Civil, estabelece que ‘Mediante escrito particular seu, datado e assinado, pode fazer disposições acerca de seu enterro… como deseja ser enterrado, quem vai cuidar do corpo, um ato de vontade'”, explica ele.

Trocando em miúdos: é preciso escrever uma carta, que pode ser de próprio punho ou digitada, datar, assinar e registrar no cartório. Nela pode estar indicado quem vai cuidar do corpo, que a vontade expressa é ser enterrada como mulher, com maquiagem, que não gostaria da presença de alguém no enterro e até quem vai ficar com as coisas de menor valor, que não entram no inventário, como roupas, móveis, livros e bijuterias.

“As pessoas não costumam usar o Condicilo, não se socorrem desse direito”, diz Dimitri. “Mas é um instrumento de garantia.

 

Fonte: iGay

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