MILLY
Emprestei esse título de um texto publicado no NY Times semana passada. O autor, Nicholas Kristof, tenta entender se a atual onda racista nos Estados Unidos pode ser também colocada na conta de todos nós que condenamos o racismo.
O raciocínio é bom e vale para o Brasil – e para qualquer outro lugar que ainda testemunhe práticas racistas.
Ele começa listando alguns fatos.
O primeiro: um recente estudo mostrou que negros e hispânicos que são tratados por uma perna quebrada, por exemplo, receberam menos medicação do que brancos tratados pela mesma coisa.
Depois: Professores suspendem três vezes mais alunos negros do que brancos.
E por fim: A polícia prende quase quatro vezes mais negros por porte de maconha do que brancos, embora pesquisas já tenham indicado que negros e brancos consomem maconha em taxas similares.
Kristof diz então que tanto esses médicos quanto os professores provavelmente acreditam em igualdade, e ainda assim são capazes de atitudes racistas. A partir daí ele pede que todos nós nos incluamos na crítica e tentemos entender nosso papel.
Ninguém com dois neurônios funcionando vai ser capaz de negar que o racismo é uma realidade e um crime. E, claro, todas as pessoas com as quais eu falo sobre o tema e sobre os recentes acontecimentos racistas comentam os episódios com um “que horror–que abusurdo”.
O problema é que ficar no “que horror–que absurdo” não está fazendo com que as coisas melhorem muito. Então, faço como Kristof e peço que todos nós olhemos para nossas atitudes e para como podemos agir para que o cenário mude.
Vou falar do meu mercado. Um de meus seguidores no Twitter levantou a questão: quantos narradores negros existem? E repórteres? E âncoras? E estagiários?
As perguntas são retóricas, claro, mas se não cairmos na tentação de apenas nos defender delas e chutar a bola para arquibancada seremos obrigados a pensar a respeito. Todos nós que corremos para condenar a grotesca atitude racista da torcida do Grêmio com o habitual “que horror-que absurdo” talvez devamos sair do discurso e cair na prática.
Existe ao nosso redor toda uma cultura que promove a agressividade de jovens negros, como explicou na mesma matéria o professor Joshua Correll, da Universidade de Boulder no Colorado. “Em nossas cabeças, negros jovens estão associados com perigo”, ele diz.
Exatamente por isso, ver cada vez mais negros como âncoras, narradores, repórteres etc ajudaria a quebrar esse imaginário e a construir um novo – e mais justo. O mesmo vale para as redações de revistas e jornais. Um passeio por qualquer uma delas fará você entender que é uma indústria dominada pelo homem branco (e, nesse contexto, fica mais difícil promover qualquer discurso que não seja precisamente o do homem branco).
Inundar o cenário midiático-esportivo com rostos negros, por exemplo, seria um passo para ajudar a implodir essa cultura que associa o negro ao perigo e que faz parte de nosso inconsciente. E colocar mais jornalistas negros nas redações colaboraria para que “a notícia” deixasse de ser interpretada apenas pela voz do “homem branco”.
Para medir o efeito da imagem do negro associada ao perigo sobre a qual muitas vezes agimos inconscientemente, Correll criou um game que você pode jogar online (o link está abaixo). Nele, pessoas brancas e negras se alternam na tela segurando armas e coisas inofensivas e temos que, numa fração de segundos, escolher em quem vamos atirar.
Suas tabulações indicam que somos, todos nós, inclusive os “que horror– que absurdo”, mais dispostos a atirar em um negro do que em um branco. Eu joguei e, em completo horror, notei que não fujo à regra.
Não é fácil encarar o racismo desse jeito, eu sei. Mas se quisermos realmente viver num mundo no qual a igualdade vai além do discurso, e onde todos – a despeito de cor, gênero, sexualidade, classe social e credo – temos os mesmos direitos e benefícios, então é hora de mudarmos o foco e perguntar o que podemos fazer para ajudar.
Não apenas porque é errado e nocivo e criminoso, mas porque, como disse o goleiro santista Aranha na saída do jogo contra o Grêmio em Porto Alegre, quando foi chamado de macaco: “dói, dói, dói”. Quem nunca foi vítima de preconceito talvez não tenha o completo entendimento do que Aranha estava sentindo naquela hora. Mas o fato é que, além de doer, trata-se de uma dor que, ao contrário da dor física, não passa nunca, apenas se aprofunda e vai se esconder em um lugar muito escuro e frio dentro de você.
Deixo vocês com as palavras de meu seguidor tuítico Bruno Cesar Santos Oliveira, Professor de Filosofia e Literatura (@GaloFuturismo):
“Acredito que o jornalismo crítico e a imprensa, enquanto instituições, são fundamentais para ajudar na construção de uma sociedade justa e igualitária. Mas há um descompasso gigante entre o discurso e a prática. Basta ligar a TV para observá-lo. Se hoje a TV e a internet são os principais mediadores na configuração da comunidade, então elas devem tomar consciência de seus limites e de suas práticas.
Se o jornalismo e a imprensa são ou expressam a consciência crítica da comunidade – ao apontar as mazelas sociais, diagnosticar os sintomas da desigualdade etc – é preciso que a imprensa autocertifique-se sobre suas práticas para que o discurso não seja inócuo. Autocertificar-se significa realizar a autocrítica e autoverificação de suas práticas institucionalizadas.
Na realidade, o discurso é uma prática. O discurso condiz com a prática? Por que um determinado campo, o futebolístico talvez seja o mais dramático, é apropriado apenas por homens, sobretudo brancos? Se você reparar, a Band, Fox Sports, o Sportv e a ESPN, principais empresas no ramo televisivo esportivo, têm um número ridículo de negros e mulheres. É um ramo dominado por homens brancos.
Por que no imaginário da TV esportiva, apenas homens dominam e se apropriam deste discurso? Qual é o interdito aos negros e às mulheres? Porque não há voz e rosto de negros e mulheres? Porque negros e mulheres não são narradores, apresentadores e comentaristas – para mim, é a principal função no meio esportivo, pois são formadores de opinião por excelência.
Qual a contribuição do espectador nesta construção de um circuito: Esporte-TV-Homem Branco-Discurso. Seria interessante realizar uma arqueologia do discurso da imprensa a partir do caso Aranha, a fim de desconstruir o discurso da imprensa futebolística, reforçando que, se de fato a imprensa é contra o racismo, sexismo, preconceitos etc, ela deve aprofundar o problema”
Fonte: Blog da Milly