Sororidade seletiva: travestis, transexuais e os limites da categoria mulher

DOC Galeria - Imagens para divulgação da exposição "Men de Sá, 100", com fotos de Ana Carolina Ferndes. (contato@docgaleria.com.br, 11 39380130, 11 996 142813, DOC Galeria Rua Aspicuelta, 662, Vila Madalena, SP)

Há algum tempo venho reparando um crescimento de discursos transfóbicos dentro dos espaços feministas (online e offline) nos quais circulo. E isso me incomoda, pra dizer o mínimo.

Por Luísa Loes Do Clitóris Livre

As Terfs, Trans Exclusionary Radical Feminist, como convencionou-se chamar aquelas feministas contrárias a inclusão de pessoas trans, parecem ofendidas com o fato de que pessoas não designadas mulheres ao nascer possam posteriormente se identificar como tal.

Elas satirizam tal identificação, tratando-a simplesmente como uma alucinação, uma escolha pessoal (num sentido individualista) sem maiores consequências, descolada de qualquer contexto. Vejo o ‘construcionismo caindo nas emanações radiantes do cinismo’, como diz Donna Haraway.

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Quando ressalto que todo gênero é desde sempre uma forma de construção profundamente real, para pessoas cis ou trans, as Terfs perguntam: “Ah! Então o que é ser mulher“? Muitas até admitem: “Ter buceta não determina o ser mulher. O que determina é a socialização que recebemos enquanto seres nascidos com buceta.”

Desloca-se o determinismo biológico para o social. Trata-se a tal ~socialização~ como uma entidade metafísica, sem nuances, sem diferenças, pouco sujeita as contingencialidades, universal, e com a qual nos relacionamos sem nenhuma possibilidade de reflexão e resistência.

É aquela velha história: só porque percebemos que as convenções de gênero tem um caráter ficcional não significa que elas são falsas. As construções de gênero não deixam de ser reais porque são construídas, no entanto, é importante que a gente reconheça a incompletude dessas construções, e como elas se dão de maneira distinta em cada contexto e como estão articuladas a outros regimes regulatórios e marcadores sociais da diferença, como raça, classe e sexualidade.

A categoria mulher está (e sempre esteve) em disputa e problematização dentro do feminismo, e ele ganhou muito com isso. Lembro do icônico e emocionante discurso de Sojouner Truth, mulher negra e conhecida oradora abolicionista, que perguntava: “Ain’t I a Woman?! (“Não sou eu uma mulher?”).

As mulheres negras denunciaram (e ainda denunciam) sua invisibilidade dentro dos discursos e movimentos feministas, mostrando como as reivindicações pautadas pela categoria “mulher” se pretendiam universais, mas na verdade, tinham muitas limitações e um centramento na experiência de mulheres brancas e euroamericanas.

Quando, por exemplo,as feministas falavam das dificuldades das mulheres quando “passaram a trabalhar fora” não se levava em conta as vivências das mulheres negras, que sempre trabalharam fora, e nos empregos mais precários. Esses questionamentos agregaram muito ao feminismo, enquanto teoria e prática política, e trouxeram novos deslocamentos na categoria “mulher”.

Com as mulheres transexuais e travestis acontece um processo parecido: elas trazem novos debates e experiências que nos fazem repensar o que é ser mulher e reconhecer a pluralidade de contextos e vivências que colocamos sob essa categoria. Por isso acredito que temos de enfrentar a suposição que o termo ‘mulheres’ denote experiências universais.

O que nos separa não são as nossas diferenças, e sim a resistência em reconhecer essas diferenças e enfrentar as distorções que resultam de ignorá-las e mal interpretá-las” diz a Audre Lorde.

Reconhecer a complexidade, as desigualdades e ambiguidades não tira forças da nossa luta, pelo contrário, isso amplia nosso espaço de contato e nos faz ter uma relação mais sincera com nosso lugar de fala.

Pessoalmente, não gosto, e acho um tanto patriarcal, dessa definição de mulher descrita pela falta, centrada no sofrimento, no silenciamento, na violência doméstica, ou no estupro. Não que essas coisas não aconteçam (e é muito importante falar sobre isso), mas acho um tanto problemático fazer disso uma essência. Há muita diversidade, resistência, luta cotidiana e criatividade que também deve-se celebrar. Muitas experiências distintas das minhas com as quais eu quero aprender.

E se não é a buceta, mas essas experiências de violência que conferem um status legítimo a vivência do feminino então, infelizmente, as travestis e transexuais são demasiado mulheres, já que o silenciamento, a violência doméstica e sexual fazem parte de seus cotidianos de forma tão repetida, que chega a ser dolorosamente naturalizada.

A cada vez que as Terfs reificam a anedota alucinante de que uma trans irá invadir os banheiros femininos para estuprar mulheres, eu sinto um aperto no peito. Lembro de muitas histórias que ouvi durante meu trabalho de campo: de travestis estupradas mais de 20 vezes por dia em uma cela de cadeia, espancadas por namorados, abusadas por clientes, violadas por familiares logo quando começaram a transformação.

Por isso dói tanto ver feministas chamando mulheres trans e travestis de “homens de saia”. O não-reconhecimento dessas pessoas e suas experiências, simplesmente por não se adequarem ao complexo normativo “vagina (original de fábrica)-mulher-feminino” é uma forma cabulosa de violência e opressão que nós, mulheres cis, podemos sim fazer. É muito importante reconhecer isso.

 

E eu sempre penso nessa citação da Butler: “Seria a construção da categoria das mulheres como sujeito coerente e estável uma regulação e reificação inconsciente das relações de gênero? E não seria essa reificação precisamente o contrário dos objetivos feministas?

Lembro de ouvir a Indianara Alves Siqueira dizer: “Eu não estou presa em um corpo de homem, estou presa nas concepções da sociedade sobre o que é ser um homem e uma mulher“.

Agora podem me chamar de ‘academicista‘, ‘agrada macho‘, ‘tá no time dos pirocos‘, e outras coisas que já ouvi. Continuo achando que genitalização, falocentrismo e argumentos de natureza humana são coisa do patriarcado.

Vanessa Sander tem 25 anos, é feminista de Belo Horizonte (MG). Mestranda em Antropologia Social na UNICAMP.

As fotos que ilustram essa matéria são fazem parte da série ‘Mem de Sá, 100′ o endereço de um casarão na região da Lapa no Rio de Janeiro, e tem esse nome pois trata de um ensaio fotográfico documental com as moradoras desta casa, prostitutas transsexuais. As fotos tem autoria de Ana Carolina Fernandes.

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