Teatros de guerra

Só nos bastidores financeiro-empresariais se entrevê a verdade nada teatral da paz como etapa lógica da partilha elitista do roubo

Os russos ainda usam a expressão “teatro de guerra” para o conjunto das suas operações militares. Isso se liga a um jargão chique de generais, o “theatrum belli” do século 17 e dos escritos de Von Clausewitz, o pensador da morte dos outros, para quem “só o vencedor é sempre amigo da paz”.

Nada disso, porém, serve mais para designar o que a imprensa vem chamando de guerra. Não à toa o próprio Vladimir Putin proibiu a mídia local de dar esse nome à invasão da Ucrânia. Na mente de lobos predadores de carneiros, o fundamento da política não é a agregação de homens por deliberações racionais, mas a divisão violenta entre amigos e inimigos, portanto, a guerra. Só que Putin busca um nome mais palatável para a violência.

No viés imperial do bilionário autocrata, os ucranianos não deveriam ser considerados inimigos, e sim súditos virtuais da potência invasora. É o que especialistas chamam de “guerra de escolha”, essa que não visa à defesa de um território, mas à agressão por motivos escusos.

No caso da Ucrânia, o maior país europeu, com o primeiro lugar em reservas de urânio, há o motivo do roubo. Esse tipo de ataque se faz para dominar e explorar, como sempre aconteceu, aliás, com todas as guerras coloniais europeias e com os atuais massacres americanos no Oriente Médio. Não há mocinhos.

A novidade é que o alvo de agora é um “exterior próximo”, como definiu Putin, e branco. Do lado agressor, reaviva-se, na figura de um miliciano no poder, o nacional-imperialismo dos czares, que não engoliu a independência ucraniana. No agredido, a excepcional resistência, que seria em princípio o sentimento pátrio frente ao ressentimento russo.

Na verdade, é também a exasperação da direita radical que se enriquece no governo (Volodimir Zelenski é um dos cem bilionários do escândalo financeiro dos Pandora Papers, em 2021). Uma das unidades militares ucranianas de elite, denominada Azov, assume-se como nazista. No êxodo, proliferam relatos de discriminação contra quem não tem cor branca nem olhos azuis. Sofrimento do povo à parte, nenhum dos dois lados é flor que cheire a democracia.

Na fábula do lobo e do cordeiro, ganha o mais forte. O que não mais subsiste é a imagem midiática do teatro da guerra dirigido por generais. Fingindo que não servem a mafiosos, eles continuarão nas salas de mapas, narrando a morte alheia, pois outra não é a dramaturgia das armas.

Apenas nos bastidores financeiro-empresariais se entrevê a verdade nada teatral do que se encenou: a paz não como amor à vida, mas etapa lógica da partilha elitista do roubo.


Muniz Sodré

Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “A Sociedade Incivil” e “Pensar Nagô”.

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